Cortes abissais e costuras periféricas

nos textos de Allan da Rosa

Gustavo Bicalho*

Vista do topo dos arranha-céus empresariais e antenas televisivas da Avenida Paulista, a periferia de São Paulo afigura-se como uma enorme e indistinta malha de pequenas e precárias casas de tijolos amarelados. Desta posição, salientam-se os contornos de uma linha que recorta o tecido urbano entre duas realidades opostas, duas cidades dentro da mesma, espacialmente entrelaçadas no tempo mesmo em que são segregadas. Afere-se, daquele ponto, onde começa e termina a São Paulo megalópole, grande centro de concentração do capital nacional e multinacional e símbolo da emancipação financeira, de onde se regulam os índices econômicos do país. O que não pode ser captado pelo olhar panorâmico ali fixado, porém, é a São Paulo “do outro lado da linha”, a imensa cidade que ultrapassa os limites da região central. Para tanto, o olhar precisaria deixar, por completo, os escritórios do centro urbano e arriscar-se a cruzar as barreiras de segurança que, apenas aparentemente flexíveis, determinam rigidamente as fronteiras entre os dois espaços. Travessia que implicaria deixar-se atravessar e trespassar-se por uma ampla variedade de olhares periféricos, subjetivamente carregados das marcas profundas de processos sócio históricos fundados no signo da segregação.

Ao longo do século XX, a partir de investimentos industriais concentrados em si, a metrópole paulista, desprovida de mão de obra, tornou-se polo atrativo de migrações oriundas da área rural de vários Estados do Brasil - principalmente os do Nordeste - além de algumas provindas de outros países. Atrás de melhores condições de vida, os migrantes, descendentes de escravos em sua maioria, chegaram à capital paulista para oferecer força de trabalho barata, sem que lhes fosse dada a assistência adequada para sua instalação na cidade como moradores, além da função de servidores. Silviano Santiago (2004, p. 51) comenta o lugar ocupado por esses novos habitantes nas metrópoles pós-modernas, da qual São Paulo não é exceção, a partir das migrações:

Graças à democratização dos meios de transporte, o horizonte do camponês deserdado da terra e de cuidado dos animais, foi ampliado. Acenaram-lhe com a possibilidade da emigração fácil para os grandes centros urbanos, tornados carentes de mão de obra barata. Os pobres [migrantes] são anacrônicos [...] no contraste com o espetáculo grandiloquente do pós-moderno, que os convocou nas suas terras para o trabalho manual e os abriga em bairros lastimáveis das metrópoles.

Esses novos contingentes populacionais acabam por se instalar nas bordas da região central de São Paulo, na qual, via de regra, são impedidos de transitar fora do período de trabalho. Tais condições, estabelecidas processualmente e intensificadas por uma conjuntura social típica das metrópoles globalizadas, fazem com que a geografia paulistana concretize, entre centro e periferia, o traçado de uma “linha abissal” (SANTOS, 2008), espécie de cinturão que separa a cidade em duas realidades distintas. Simultaneamente, a linha realiza-se de maneira abstrata, invisível, ao reafirmar as bases de um pensamento abissal e cartesiano, de ascendência colonial, dividindo a imagem do real entre

o universo "deste lado da linha" e o universo "do outro lado da linha". A divisão é tal que "o outro lado da linha" desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível (SANTOS, 2008).

De acordo com Boaventura de Sousa Santos (2008), o “pensamento abissal” simbolizado primordialmente no que chama de “era colonial”, pelo traçado da linha de Tordesilhas, persiste no espaço pós-colonial, com sutis reconfigurações. Apesar de sujeito às mobilidades do espaço global contemporâneo, tal pensamento perpetua, conforme afirma Santos, a lógica dicotômica da “regulação e emancipação”, do lado “de dentro” da linha, e da “apropriação e violência”, do outro lado. Dessa forma, toda e qualquer forma de conhecimento, sabedoria ou existência produzida “do outro lado da linha” estaria sujeita à regulação violenta, sendo considerada folclórica e clandestina. Indo mais além, pode-se pensar, ainda, que o traçado da linha abissal determina a existência de outras linhas, decorrentes da mesma lógica de pensamento, mas que acabam por operar de maneiras mais ou menos independentes, conforme o contexto em que estão inseridas. Tal parece ser o caso, por exemplo, da “linha de cor” (color line), através da qual W. E. B. DuBois (1999) define a segregação racial nos Estados Unidos do século XX. Se considerarmos, portanto, o crescimento da capital paulista sob o signo do pensamento abissal, devemos entender que as existências culturais periféricas, captadas pelo olhar de quem as observa a partir do centro, estão sujeitas à folclorização e a adquirirem o status de contravenção.

A obra em construção do escritor Allan da Rosa coloca-se como uma espécie de entrave à lógica do pensamento abissal. Em oposição aos olhares televisivos que constituem a periferia a partir de uma perspectiva central, seus textos percorrem os bairros que excedem tal fronteira através da apreensão da vida de seus moradores em suas angústias, desafios e ambições reais, não-folclóricos. A existência cultural que se depreende dos viveres periféricos é, assim, tecida em sua pluralidade, ao mesmo tempo em que expõe e revolve as feridas deixadas pelo corte abissal a que vêm sendo submetidos desde, pelo menos, o período colonial. O que pretendemos trabalhar neste artigo é justamente a forma pela qual Allan da Rosa salienta os aspectos violentos do traçado da linha que deseja impor-se entre centro e periferia e, por outro lado, como o autor procura explorar os tecidos culturais e existenciais que se costuram dentro e para além do abismo que separa os dois lados. Partindo do texto literário, nosso artigo quer-se desenvolver a partir das noções de “corte” como ruptura e ferida, caríssima para o autor, e de “costura”, entendida aqui como processo de textualização, interligamento, pelo traço inaugural da escrita, de uma rede de possibilidades antes inimagináveis.

O livro de poemas Vão (2005) coloca, desde o título, as marcas do abismo. Há, na obra, uma infinidade de temas que o circunscrevem, sempre a serem explorados, que impedem a estagnação dos sentidos através de qualquer interpretação totalizadora. O poema em prosa que nomeia o livro – e, sugestivamente, ocupa suas páginas centrais – é exemplar, nesse sentido. Nele, lê-se:

De frente pra matança, pra gramática, pra realidade representada do digital. De frente, de lado, de ponta cabeça. Poemas mandingueiros. [...] Na fenda do não-entendimento, na rachadura que rasga a parede do tempo milagroso. Dos tempos. Ali, na profusão entre o sonho e a pele, entre a rua e a cama. O vão. (DA ROSA, 2005, p. 73).

A poesia de Vão nasce do espaço abissal, das costuras que se tecem por baixo do véu que determina o espaço da “apropriação e violência” e que, por vezes, faz parecer serem “em vão” os esforços para superá-lo. Nas páginas amarradas à mão pelo próprio autor, preenche-se o abismo com mandingas poéticas, corpos gingantes, performáticos. Do caldo grosso cultural que habita o interior do vão, ouvem-se vozes que, movimentadas pelo banzo, denunciam, através do lamento espiritual, os signos da segregação secular:

Mamilos de sangue, viração no mangue

Gravidez menina, banzo alucina

Desespero de barro, quebranto no jarro

Corte no umbigo, livre pro castigo

(Caldo Grosso, DA ROSA, 2005, p. 21).

O “corte no umbigo” que aliena os moradores da periferia de suas origens culturais não é capaz, assim, de impedir que elas aflorem no vão dos enfrentamentos do cotidiano, nas rachaduras do tempo. Melânia, figura feminina que dá título a um dos poemas do livro, carrega essa capacidade de remexer o “caldo grosso” e tecer por entre as frestas:

Crochezando as matemáticas coloridas,

entre patadas e relinchos do mundo. [...]

Proseando trancada pra fora das salas atormentadas

Bordando mitos em teu cachecol, infinito como a Noite paulistana

Em qual alicerce, das senzalas de tua presença,

estala solta a algazarra do mundo? (DA ROSA, 2005, p. 22).

Melânia: tecido negro, de lã ou seda; característica de tudo aquilo que tem cor negra, escura, se tirarmos o acento circunflexo. Aparentemente aprisionada, expulsa do centro, Melânia desnovela-se por entre labirintos e tocaias, revolvendo o mundo que a sufoca:

Melânia fagulha, faz um rebu na casa.

Nadando no vazado do choro seco, amorna angústias

dos ceguetas que cultivam sarnas. (DA ROSA, 2005, p. 22).

As figuras marginalizadas tecidas nos poemas de Vão movimentam-se no abismo, negando a deriva própria do vácuo em que se encontram. Os poemas, em si, carregam a consciência da característica paradoxal de buscarem a representação algo efêmero, que não se pode deter por completo, e que está, por outro lado, sujeito à natureza estática e totalizadora do papel e do livro. Em Danação, poema que encerra Vão, lê-se:

Quem lê meus poemas

Conhece apenas uma ou duas frestas

da minha poesia[...]

Quem segue minhas linhas

Se depara

a penas

Com sangue coagulado. (DA ROSA: 2005, 141).

Sangue coagulado em frestas, os poemas desse livro parecem exigir leituras que ultrapassem o papel e os reposicionem, reflexivamente, nos interstícios do mundo além-livro, onde seus sentidos encontrariam abertura para fluir.

É também nesse espaço intersticial que afloram os sentidos significantes de Da Cabula, texto para encenação teatral publicado pela primeira vez em 2006, através do selo Edições Toró, criado por Allan da Rosa. Nele, o autor prepara terreno para a encenação da história de Filomena da Cabula, “mulher negra do povo, dona do sonho e do direito de aprender”, nas palavras de Conceição Evaristo, que compõem o posfácio e orelha das edições de 2006 e 2008, respectivamente. Da Cabula trata dos desafios enfrentados por Filomena em seu cotidiano, no trânsito complicado ao máximo entre periferia e centro. Trata, sobretudo, das frustrações, angústias, desejos e ambições de uma negra que busca insistentemente cruzar a linha e é sucessivamente remetida ao vão.

Logo na primeira cena da peça, exibe-se a oposição entre os lados da linha, a “geografia de um cruel apartheid que divide os dois espaços” (EVARISTO citado por DA ROSA, 2006). O interior da casa de uma rica família de empresários, primeiro ambiente de trabalho de Filomena, afigura-se como uma espécie de reedição atualizada da casa grande escravocrata: riqueza e ostentação materiais opõem-se, pela via da separação radical, ao pequeno quartinho em que Filomena encontra-se acuada, vítima da violência moral explicitada na cena. O diálogo entre o patrão e sua esposa, bem como a decoração da casa, com “estatuetas e motivos folclóricos” (DA ROSA, 2006, p. 10), e o nome das duas personagens, desvelam as marcas contraditórias de um preconceito violento com o qual Filomena será incapaz de compactuar por toda a peça.

Movida pelo desejo, a personagem busca incessantemente transpor o abismo que a isola em ambientes de completa degradação. A notável repetição do ato de escovar os cabelos com furor em frente ao espelho aponta para a dupla consciência adquirida de que, perpassando o abismo, salienta-se uma “linha de cor” (DUBOIS, 1999), condenando à absoluta segregação os traços fenotípicos que ajudam a definir uma identidade negra ou afro-brasileira. O anseio por apagar as marcas que determinam seu isolamento étnico esbarra, porém, no reconhecimento da resistência simbólica dos pelos pubianos:

(Pega um frasco de alisante, vira meio tubo na

mão e no cabelo. Dá uma coçada no púbis, mãos por

dentro da saia. Olha pra baixo e diz, fazendo graça

sem graça.)

FILOMENA – Esses daí... não têm creme,

escova, chapinha... esses são os resistentes, os

teimosos. (DA ROSA, 2006, p. 45).

No entanto, é nas tentativas de aprender a ler e escrever que o desejo de recusar, transpor ou transgredir os efeitos da linha se mostra com maior força e, por outro lado, onde ele encontra os maiores obstáculos. Filomena frequenta um curso de alfabetização, no início da peça, mas vai, aos poucos, sendo obrigada a cabular as aulas e, por fim, largá-las de vez. Extremamente cansada ao fim do expediente, em seu novo emprego de feirante no Largo da Dadivosa, a personagem acaba sempre por pegar o ônibus errado, não podendo chegar à escola. É, assim, obrigada a buscar novos caminhos para o aprendizado das letras. Nos brevíssimos intervalos de seu cotidiano, tenta redigir textos, treinar a escrita, mas o cansaço e a ausência da professora limitam-lhe o progresso e fazem-na adormecer. No espaço intersticial do sono, entretanto, o desejo é capaz de libertar-se e se expressar em plenitude. No vão do tempo, onde a rigidez do cotidiano é fraturada, a sonâmbula Filomena passa a escrever com perfeição em seu caderno. Entra em cena, então, a Entidade Flores Vermelhas, vestida de “uma indumentária como aquelas de mergulhador, que cobre dos pulsos até o pescoço, porém toda coberta de flores vermelhas”, para ler em voz alta as redações. A Entidade é figura essencial da peça. Sua mediação performática é responsável por transmitir e significar à plateia os textos dos sonhos de Filomena. À margem dos discursos abissais do cotidiano e, de certa forma, à margem do próprio andamento da peça, Flores Vermelhas opera como entidade significadora, jogando com seus sentidos. Aproxima-se, assim, de duas figuras da tradição afro-americana: Exu e o Macaco Significador, sendo que, para Henry Louis Gates Jr. (1994: 207), o segundo seria “um equivalente funcional no discurso profano afro norte-americano” do primeiro, uma espécie de tradução fabular da figura sagrada. Vejamos um trecho lido pela Entidade, para que a relação com tais figuras fique mais clara:

Jururu uma dondoca lustrava vidraça, carregava bacia, capinava as daninhas do quintal, limpava escarros [...] Cantarolando, eu fiz um negro convite: “Larga isso, vamo comigo visitar minha filha. Ver meu neto.” A magnata se desfez do avental, do espanador descabelado. Passeávamos lado a lado, usufruindo do dia. (DA ROSA, 2006, p. 48).

É possível notar, no trecho acima e nas intervenções da Entidade, a presença de elementos que compõem o núcleo comum de uma teatralidade particular da cultura negra das Américas, conforme observação de Leda Maria Martins (1995): o “artifício dialógico”, que define “um diálogo intertextual e intercultural entre formas de expressão africanas e ocidentais”; um “sentimento de comicidade irônica”, fruto, no caso do trecho citado, da inversão de papéis entre a mulher negra e pobre e a madame branca; a assimetria estética, simbolizada aqui pelo lirismo gingado com que Filomena/Flores Vermelhas narra a pára-história do sonho. Tais elementos instauram no texto

o jogo da aparência e da representação, que é também o jogo do olhar, da ironia, da sedução, o jogo do andar e dos sentidos na tradução da diferença, em que não se cristalizam verdades absolutas mas, sim, “práticas de fala, jogos discursivos, espaços ritualísticos de linguagem.”

(MARTINS, 1995, p. 56).

Tanto Exu quanto o Macaco Significador são figuras que sintetizam esses elementos de jogo. São tricksters, cuja mediação do discurso de outrem ressignifica-o, desestabilizando-o pela via do jogo com as palavras. Acerca desta relação, aponta Gates Jr.:

Ao contrário de seus primos exus pan-africanos, o Macaco Significador não é, no discurso da mitologia, um personagem da narrativa e sim o veículo da própria narração. (1994, p. 207).

No papel de mediador, Flores Vermelhas está entre os dois, pois, se por um lado, atua e contracena com as outras personagens da peça, a exemplo de Exu, por outro, é transporte narrativo indispensável, tal como o Macaco Significador, dos textos de Filomena da Cabula.

Através dos jogos proporcionados pela Entidade nos entre-lugares do cotidiano, a vida da personagem principal vai sendo preenchida de sentidos desestabilizadores, rasurando os limites que a emparedam numa existência desarmônica e solitária. Assim, Filomena vai abrindo com dificuldade, ao decorrer da peça, espaços para que seus desejos possam florescer: na nona das treze cenas da peça, afirma à sua amiga feirante o desejo de “ser o mar”. Mais tarde, tranca-se na barraca e, pela primeira vez, consegue escrever uma redação, sem adormecer. Pelo contrário, escreve “atiçada, vivíssima, não deixa o lápis cair nem um instante” (DA ROSA, 2006, p. 68). Ao final da peça, Filomena abre um rombo no cotidiano: dorme tarde para tentar ver o sol raiar, deixa-se acordar “depois da hora do almoço” e chega tarde ao Largo da Dadivosa. Chegando lá, resolve não trabalhar e avisa, decidida:

Filomena (saindo de cena): Raimunda, prestenção: pódeixar minha banca aí que ninguém vai perturbar não. Vou pro Jabaquara, vou descer a serra, que hoje vai fazer lua cheia e eu quero ver o sol desabrochar no mar!!! (Da Rosa, 2006, p. 48).

Dessa forma, Da Cabula estabelece, através de jogos representativos e performáticos, um corte fulminante na lógica que determina a linha abissal. A travessia de Filomena da Cabula é a própria significação desse corte, realizada por meio das tessituras nos interstícios do cotidiano, à margem do pensamento abissal. O destino da personagem é retraçado a partir da escrita do sonho, costurando as feridas abertas pelos cortes do dia-a-dia:

Quem é aquele professor de barbicha, olhos de poeta, floreando? Aquele nego lindo de bata? Médicos, dançarinos, navegantes, músicos, tecelãs, pedreiros engenheiros. Gente que sabe das folhas, das melodias, das matemáticas. A forra. Patrão não é mais patrão: sem lâminas não decepa ninguém. Piloto não atropela cadela nem banca. Marido sem pancada. Filha, genro, neto. Patota toda na eletricidade da ciranda (DA ROSA, 2006, p. 76).

Aos poucos, a peça vai destacando a capacidade libertária da escrita ficcional, espaço onde a violência afiada do real está sujeita à eterna possibilidade de ressignificação e subversão. Os papiros desenrolados ao fundo do palco durante as leituras performáticas de Flores Vermelhas compõem uma espécie de mise en abyme no palco, obrigando o espectador a confrontar o universo textual com a “realidade” encenada e, por fim, com sua própria realidade. Através desse jogo, a dimensão abissal da linha e a profundidade inicialmente insuperável do corte perdem parte de sua rigidez e de seu poder de produção de sentido, deixando espaço para o trançado de novas linhas determinantes da realidade.

A simbolizar e sintetizar os significados aí contidos, a edição de 2006 para o texto da peça, feita pelo próprio autor, traz uma malha cuidadosamente entrelaçada encobrindo a margem do livro. Um búzio costura-se a essa malha, reafirmando a força significativa do título: “cabula”, segundo Nei Lopes (2003), é termo de origem banta, nome de uma antiga seita afro-brasileira, além de um ritmo tocado em alguns candomblés. A ilustração da capa, feita por Marcelo D’Salete, segue no mesmo caminho, pois delineia letras do alfabeto nas bordas do vestido de Filomena, que parece mirar e admirar os sentidos encruzilhados no chão quadriculado a seus pés. Na contracapa, a ilustração mostra a mesma Filomena, com o vestido de letras, porém com o olhar voltado para cima, contemplando, talvez, as possibilidades de um voo para além das linhas abissais que lhe limitam o espaço ao longo da peça.

Zagaia (2007), romance infanto-juvenil escrito nos moldes da literatura de cordel e publicado pela Difusão Cultural do Livro em 2007, segue por caminhos bastante semelhantes. O protagonista, dessa vez, é um jovem migrante, vindo do Norte de Minas junto à família, que se vê obrigada a instalar-se em Diadema, periferia de São Paulo. Zagaia é o nome da personagem principal do romance versado, e sua colocação no título do livro, assim como em Da Cabula, amplia as possibilidades de leitura. O termo, conforme o autor e também Nei Lopes, é de origem Kikongo e remete a um afiado instrumento de caça, tendo passado a denominar, na linguagem popular, alguns tipos de faca. Da Rosa comenta:

[Zagaia] significa “faca de ponta” ou “lança”, é instrumento de caça e de revide. Nalgumas ocasiões, espingardas escravistas foram combatidas com as zagaias afiadas, arremessadas ou de espetar de perto. Ainda hoje no Nordeste do Brasil ou até mesmo nas periferias paulistanas e cariocas, em feiras, presídios e em turnos operários de linhas produção, nas bocas do subúrbio zagaia significa faca artesanal. (DA ROSA, 2007, p. 42).

No “outro lado da linha”, sob o véu, o termo zagaia traz, portanto, a marca do corte observado em Da Cabula e Vão e, simultaneamente, do revide astuto a ele. O protagonista carrega em si as marcas da dupla diáspora representada pela migração forçada, do deslocamento que aprisiona o sujeito, mas que impede sua estagnação. Por ser jovem, Zagaia é aprendiz do ambiente periférico, do lugar diaspórico, onde a esperteza é arma valorosa para escapar das lâminas afiadas do cotidiano:

O moleque é Zagaia

Filho de presidiário

Ardida fera ligeira

Criada sem horário

Aprendiz da Lua Cheia

Veneno de serpentário

(DA ROSA, 2007, p. 7).

Ao aprendizado das ruas alia-se o da capoeira, impedindo-o de cair nas tocaias do crime e dos ilusórios reclames da televisão. Transtornado pelo contraste social latente e pelas inúmeras injustiças que dele derivam, o jovem ardiloso logo sente necessidade de “partir pro mundo”:

Não se juntar à podridão

Galopar, ativar, pulsar

Seriedade, diversão

Batalhar, aprender, voar

Zagaia querendo ação

Presença de relampear

Decidiu partir pro mundo

(DA ROSA, 2007, p. 18-19).

Na estrada pela segunda vez na vida, em busca da inversão dos efeitos aprisionadores do movimento diaspórico, Zagaia incorpora outros ritmos da cultura popular afro-descendente: calundu, carimbo, “répi”, samba de roda, todos eles aperfeiçoavam-lhe a capacidade de gingar e se esquivar dos perigos. Durante a viagem, o universo mágico se interpõe e se confunde com a realidade, de forma a posicionar Zagaia como protagonista de uma espécie de Alice no país das desigualdades, estas destacadas pelo uso frequente de oxímoros rimados e pelo contraste entre preto e branco das gravuras de Marcelo D’Salete. Em meio ao cenário de injustiças sociais, figuram-se seres fantásticos, como um gato malandro, jogador de bilhar, que o desafia com uma charada e um “velho pimpão”, que o entrega uma semente mágica, a ser semeada no momento apropriado.

O desfecho do livro remete imediatamente ao espaço intersticial do vão e a seu potencial de improvisação reconstrutora e libertária, já sugerido nos outros dois livros aqui trabalhados. Já quase sem esperanças do sucesso de sua busca, Zagaia ouve uma música vinda de um “corguinho lixento”, ao fundo do qual é levado pelo fruto da semente misteriosa que recebera do velho - uma “semente de estima”, segundo o texto. Sob o véu do lixo, no vão da sociedade de consumo, nas profundezas do abismo da linha, vislumbra-se uma “Cidade sem cativeiro”, preenchida de signos e símbolos africanos. Realizado, Zagaia encontra-se no lugar do viver harmônico, onde se cultivam sonhos e amores:

Com a guerreira cultivou

Buquês fervuras e planos

Pintaram versos e gingas

Teceram preces e panos

(DA ROSA, 2007, p. 36).

Assim como em Da Cabula, o protagonista é transformado pela harmonia vibrante semeada no vão, passando a modificar sua própria realidade a partir da nova experiência. Quando é arrancado do espaço utópico pela face dura da morte, prestes a levar sua mãe, Zagaia deita-a no cangote e numa ginga final, como num golpe de capoeira, carrega a adoecida mulher:

Rumo à vila submersa

Que arregaça tristezas

E que nunca se dispersa. (DA ROSA, 2007, p. 36).

Apesar de manter o final da história em suspenso, o autor parece sugerir o surreal como lugar de reencontro da unidade perdida no processo da diáspora. E é somente através dele que se torna possível a harmonização de uma temporalidade até então fraturada pelas tensões históricas com que o grupo identitário representado por Zagaia teve de conviver. Considerado esse ponto de vista, pode-se afirmar que, em conjunto, Vão, Da Cabula e Zagaia compõem uma paradoxal unidade. Seu ponto de contato reside justamente na constatação da incompletude da existência periférica e da impossibilidade de sua harmonização na ausência do espaço do sonho.

Morada (2007), livro realizado em conjunto com o fotógrafo Guma, acrescenta-se a esses três, explorando o caráter improvisado através do qual tal espaço tenta estabelecer-se. Poesia, fotografia e escrita ensaística unem-se para dispensar olhares sobre a resistência do desejo de harmonia e liberdade concentrado nas casas, becos, pontes e barracos dos bairros da periferia paulistana. Ao lado da fotografia que revela um beco estreito onde uma plaqueta, escrita à mão, diz “vende-se uma casa”, o poema questiona: “O céu cabe num contrato?”. À lógica de mercado que submete a residência à especulação imobiliária, opõe-se a morada, lugar onde um “abraço de nenê” ressuscita as esperanças de superação da linha. “Morar nas bordas da cidade”, afinal, “é sonhar abrir uma birosca na entrada, colada no portão”, sugere Allan da Rosa na abertura do livro. O signo do desejo improvisado na precariedade pulula nas “quebradas” fotografadas e escritas, fazendo com que estas operem como metonímia da multiplicidade de viveres sufocados, porém insistentes, de seus habitantes. Filomenas da Cabula, Zagaias, Melânias que agonizam, mas sorriem e deleitam-se nos intervalos, resistindo:

Quebrada

pena mas resiste

Ginga e sorri

na sua ladeira triste

Arriada

inda ensaia o dedo em riste

Voando em gaiola

bicando bocadinhos de alpiste

(DA ROSA; GUMA, 2007).

O improviso ainda sobressalta-se nas pontes estreitas sobre os “córguinhos de lixo”, nos varais sobre as lajes, nos conduítes dependurados nas paredes. Todos eles caminhos precários buscando cruzar o abismo que os encara: “O corpo um Córguinho. O olhar, ponte bamba”, diz o poema intitulado ‘Xente. Atravessar é, também aqui, tecer caminhos gingados nas entrelinhas da realidade cortante, trespassar a si mesmo e ir de encontro ao desejo, que urge. Os retratos fotográficos e literários que constroem e são construídos pelas moradas desejosas são preenchidos de sentidos em devir. Definem, assim, pela incompletude, identidades em processo, portadoras de uma “memória varada” sempre a reconstituir-se. Identidades que se movimentam, estrategicamente, conforme a necessidade de esquivar-se dos cortes certeiros que as fragmentam.

Se, em conjunto, aos quatro textos até aqui estudados complementam-se e se entrecruzam, cabe agora voltarmos os olhos para um quinto, que, a nosso ver, sintetiza os temas, sentidos e movimentos comuns a eles, enriquecendo sua compreensão. “A Ladeira de Gererê”, conto publicado no trigésimo volume da série Cadernos Negros, em 2007, expõe a violência do corte nos níveis epistêmico e geográfico – abstrato e físico - que definem a periferia como “outro lado da linha”. A própria narrativa apresenta-se esfacelada em pequenos fragmentos, por entre os quais se desenha, aos poucos, uma linearidade contestadora da rigidez aguda da linha abissal. O conto gira em torno da tensa relação entre dois habitantes de um bairro fictício da periferia: o jovem MininuZú e Gererê, o mais antigo morador do alto do morro. A imagem do corte faz-se presente como elemento definidor na vida das duas personagens. Gererê era pai de Neném, que aos doze anos travestia-se para prostituir-se na Estação da Luz e aos vinte e um arrancara a canivete o silicone que havia implantado, em si mesmo, aos treze. Logo depois, morreria espancado sobre uma mesa de bilhar. A morte de Neném, narrada com violência, processa uma das várias incisões na narrativa, inaugurando as lágrimas de Gererê, que escorrem ladeira abaixo e empoçam na casa de MininuZú. Entre o garoto e a TV, a poça de lágrimas é também recipiente para significantes gotas que caem do teto, como lâminas:

Começa formando uma gota, uma giletinha, que já já vira navalha. Crescente, a gota rapidinho mostra uns dentes de serra, é faca de pão. Mais uns segundos e já é punhal. Pra adiante, pendente do teto, a goteira se completou, tá no fiapo de um talhinho pra cair: é uma peixeira, zerada. Vaza na queda e o MininuZú, matreiro, nessa hora se esquiva da lâmina que pingou. (Cadernos Negros v. 30, 2007, p. 23).

MininuZú é apresentado como um jovem acuado pelas lâminas da realidade, condição sintetizada pela precariedade de sua morada gotejante. A TV opera como uma “babá quadrada luminosa”, que lhe mantém alimentado do vazio resultante da abissal distância entre o mundo nela representado e sua realidade. Se a abertura de um canal televisivo negro (MNOÇA) faz brotar no garoto a esperança de uma possível identificação, esta é logo derrubada pela constatação de um novo terreno de ilusões:

Mas só fuleiragem: fofocas áfricas. Malhação aeróbica pixaim. Auditório de palmas comandadas. Vedete vídeo corrente de ouro, novelhas patifarias nas gravatas e na maquiagem, ornamentados de efeitos especiais: mais do mesmo, mais da mesma leseira laser. (Cadernos Negros v. 30, 2007, p. 29).

Entre a desesperança e o desespero, porém, a relação entre Gererê e MininuZú encontra espaço para desenvolver-se. O desamparo mútuo converte-se, pouco a pouco, em afeto. MininuZú, agora servindo-se da “didática do ninho, na festa do afeto” da casa de Gererê, toma gosto pelo aprendizado das linhas e letras. Gererê, por sua vez, vê reacender em si a abafada inclinação à olaria:

No abandono de se querer, na largação da saúde, o espelho de Gererê oxidou ferrugens, gaguejantes fins de caminho, repetidos nunca mais e nunca mais e nunca mais, que sempre recomeçavam com as feridas que colecionava nas estátuas e vasos de argila. Mas com MininuZú colando ali no barraco, não havia mais pranto pra umedecer massinhas de modelar. (Cadernos Negros v. 30, 2007, p. 28).

Retomando a tradição cultural afro-brasileira, barro e escrita passam, portanto, a representar, uma gênese renovadora na vida das duas personagens. Gererê vê em MininuZú aquele que finalmente saberá ler a beleza de seus vasos de argila, enquanto o garoto enxerga na escrita a possibilidade de reconciliação com o outro lado da linha, representado, em parte, por seu professor de geografia. A busca de tal reconciliação, no entanto, é respondida pelo professor com um corte fatal. MininuZú submete a sua avaliação um mapa, que realizara com capricho e perfeição, “sem lanho de erro”, esperando o reconhecimento da capacidade e talento desenvolvidos junto a Gererê. A resposta do geógrafo, cuja repulsa em relação ao outro lado da linha se faz evidente em mais de uma passagem do conto, é, no entanto, de total descrença:

O professor apreciou a perfeição do trabalho em segundos meticulosos. E vociferando desdém, deitou em vermelho maiúsculo sua avaliação: DUVIDO!

MininuZú segurou a lágrima na beira, como quem segura vômito.

(Cadernos Negros v. 30, 2007, p. 31).

A caneta vermelha que finda por talhar o desenho perfeito de MininuZú reforça o traçado da linha, agora mais profunda e nítida que nunca. Impõe novamente a geografia abissal que separa as duas cidades e redesenha, do lado externo da linha, a sombra do véu que cai sobre a face de seus moradores, definindo uma diversidade de barreiras. Submetido à violência desse corte derradeiro, MininuZú é remetido ao vão. De volta a sua casa, mergulha, junto aos anunciantes ilusórios da televisão, no “mar empoçado” da sala, onde, em seguida, “cai de ponta um facão” do teto. Gererê, no alto da ladeira, desgostoso com a solidão gerada pela ausência de MininuZú, deixa-se morrer, corroído pela úlcera.

Apesar do desfecho trágico do conto, que parece contribuir para seu poder de concisão, deixam-se abertas algumas lacunas. As rupturas incisivas sobre as vidas das personagens e sobre o próprio ritmo do conto permitem ao leitor imaginar novos traçados nas cavidades por elas abertas. Como exemplo, citamos o outro mapa desenhado por MininuZú, não entregue ao professor:

Outro de linhas de desejo, invenção contemplada em sério brinquedo, adequada pra sorrir em quintal de sol, pra colorir e legendar sempre de novo. (Cadernos Negros v. 30, 2007, p. 31).

O mapa alternativo ensaia outras geografias, novas linhas que sobrevoam os cortes. Essas, não foram submetidas à avaliação e nem poderiam ter sido, pois não se deixam captar pela divisão preestabelecida entre centro e periferia de uma educação calcada no pensamento abissal. É o traço da diferença, rabiscada a despeito das orientações do professor. Representa a recusa de uma conciliação forçada, a negação de MininuZú ao ver o chapéu do professor ao chão: “Entregar nada não. Mor fuleiro, fica tirando a gente”. As lacunas do texto pedem o preenchimento do revide, sendo, muitas vezes, o próprio texto o responsável por preenchê-las, como no caso explícito de Da Cabula e também do mapa de MininuZú, se entendermos texto em seu sentido amplo, como sugerimos no início de nosso trabalho.

A literatura, enquanto texto e costura, ocupa, portanto, na obra de Allan da Rosa, os sulcos deixados pelo traçado profundo da linha. Para superar a desigual dicotomia centro-periferia, o autor parece costurar um tecido multicultural periférico. Através desse entrelaçamento, o autor confronta a lógica binária do pensamento abissal com a multiplicidade de caminhos, ainda que improvisados, que escapam a ela. Busca operar, assim, por meio do texto literário, rupturas no traçado da linha, “efeitos transruptivos” (HALL, 2006, p. 65) capazes de deslocá-la e permitir novas costuras, mais maleáveis e adequadas ao caráter multicultural da cidade de São Paulo.

Os textos de Allan da Rosa abrem espaço para se pensar na linha abissal, por analogia, como uma enorme linha de pipa no céu, banhada em cerol, a dividi-lo em dois e a manter elevados aqueles que dela se beneficiam e a ela dão sentido. Quaisquer outras linhas que dela tentam se aproximar, ou atravessá-la, estão sujeitas à violência de seus cortes, sendo lançadas à deriva e, em seguida, ao chão. Por ser o céu infinito, porém, e por saberem gingar os meninos que soltam pipas, há sempre a possibilidade de novos vôos, como parece sugerir o poema Desbicando:

tirando laça com o Futuro

somos pipas voando nos ventos do Ontem

com as linhas cortantes do Presente

(DA ROSA, 2005, p. 14).

Costurando à margem da linha, “desbicando” no céu arriscado, Allan da Rosa vem tecendo uma obra que propõe novos caminhos e possibilidades para os moradores da periferia, bem como para produção literária afro-brasileira. Lança, assim, desafios para uma compreensão renovada do lugar da literatura no espaço e tempo contemporâneos.

Referências

Cadernos Negros vol. 30 – contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2008.

DA ROSA, Allan. Vão. São Paulo: Edições Toró, 2005.

DA ROSA, Allan. Da Cabula. São Paulo: Edições Toró, 2005.

DA ROSA, Allan. Da Cabula. 2a ed. São Paulo: Editora Global, 2008.

DA ROSA, Allan. Zagaia. São Paulo: DCL: 2007

DA ROSA, Allan; GUMA. Morada. São Paulo: Edições Toró, 2007.

DU BOIS, W.E.B. [William Edward Bughardt]. As Almas da Gente Negra. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999.

GATES JR., Henry Louis. A escuridão do escuro: uma crítica do signo e o Macaco Significador. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque (Org.). Pós-modernismo e política. 2 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

HALL, Stuart. A questão multicultural. In: HALL, Stuart. Da diáspora. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p. 49-94.

LOPES, Nei. Novo dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995.

SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. Eurozine, 14 de fev. de 2008. Disponível em: <http://www.eurozine.com/articles/article_2008-02-19-santos-pt.html> Acesso em: 01 fev. 2009.

 

* Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG; membro do grupo interinstitucional de pesquisa “Afrodescendências na literatura brasileira”, vinculado ao NEIA-UFMG.

 

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