Artesanato Poético: a Valorização da Periferia

 

Fernanda Rodrigues de Figueiredo*

Glauber Reggiani Ribeiro**

 

Você é letra de lápis.
Criança desprevenida.
Futuro de toda flor.
Doce de milho.
Você é meu voo banido.

 

Allan da Rosa tem trazido a público uma obra diversificada: poemas, contos e peça teatral. Vale destacar, de início, que sua escrita mostra, por traço essencial, reproduzir a fala coloquial, valorizar a cultura popular brasileira, a vida simples e as pessoas à margem da sociedade. O escritor usa recursos interessantes para a reprodução precisa da fala: a supressão de vogais, consoantes e até silabas inteiras. Além disso, utiliza o alçamento de vogais pretônicas e postônicas, a aglutinação de palavras e a reprodução de sons através da onomatopeia. O efeito é uma aproximação com o real, dando força às expressões traçadas como um número performático que se desenha aos olhos do leitor, como nos exemplos abaixo:

Professora – Tra.Tra.Tra.Tre. Prestenção no som, Dona Filomena. [...]

Filomena – mas o anúncio não tava falando que era quarto e sala. [...]

Filomena – É? E cê trabalha com o quê?

Moça - Camelô. Uma barraca lá no largo da Dadivosa. To vendendo com toda mercadoria. Quer ir lá ver? Se a gente fechar negócio junto com a casa, dá pra fazer um desconto legal prucê.

Filomena – Ta bom fia. Vamo sim. Tá certo o dinheiro?

(Da Cabula, p.13-19, Grifos nossos).

Vale observar os termos de fala cotidiana que são usados pelas personagens. Esse tipo de recurso perpassa toda a peça teatral. Rosa lança mão de diferentes tipos de grafia, algumas reproduzem a escrita cursiva dando maior ênfase a uma obra artesanal como se houvesse produzido livro a livro com o cuidado de um artesão, um artista popular.

Concentra-se. Demonstra a dificuldade em segurar o lápis, que cai constantemente.

FILOMENA - E essas regras humilhando?... Vou entender nunca... Só serve pra arrochar com a cabeça da gente. Se escrevo 'as faca não tá na cara que é mais de uma faca? Já tô falando 'as'. Mas não, tem que meter um S lá no fim da outra palavra, obrigação de complicar. E as letra?! Tem cada praga indecisa: já viu o H? Tem vez que silencia, fica ali só de enfeite. Outra hora vem e chia. Depois chega rouca. Dobra a língua. Vich... Nem comento do J e do G, do X e do C... Vou tentar não passar do chão da linha, não tremer o lápis.

Na peça teatral Da Cabula: istória pa tiatru, de um único ato, o narrador descreve o cotidiano de Dona Filomena da Cabula. Negra, analfabeta, e cheia das marcas do preconceito. Como tal, sente na dura vida que leva, os reflexos de uma alforria que, ao invés de consertar o ato abominável da escravidão, buscou uma solução política, o que lançou na rede social milhares de pessoas sem possibilidade real de se integrar de forma justa à sociedade. Marginalizados socialmente, os herdeiros deste processo vivem em sua maioria, as injustiças de uma sociedade preconceituosa.

Adelaide – Calvino, ela quer aprender a ler, quer saber de contrato, viajar em estória, em livro.

O marido mastiga tom de desdém, e fala alto, quer ser ouvido lá longe por Filomena.

Calvino – [...] Teve um amigo de vovô, papai que contou: o negão lá queria ler, essa mesma conversa aí... Ele arrancou as pálpebras do cabra, faca afiadinha, não mandou ninguém não: foi e fez... Ué, não queria ver a luz? Então, ficou arregalado noite e dia. (2005, p.11)

Analfabeta. Submetida às provações e privações sociais por ser mulher e negra, Filomena da Cabula ainda sofre por não conseguir decodificar o que representam as letras e os números. Ela busca incessantemente sua liberdade, representada pela realização do sonho de ler, verdadeira alforria das limitações causadas pelo analfabetismo.

A peça se passa no microcosmo de milhões de pessoas como Dona Filomena. Quase cativa na casa de seus patrões, ela rompe suas amarras e busca vida nova. Aliada ao sonho de ler, a busca de vida nova impulsiona Filomena que logo se depara com a realidade do universo a sua volta. Muda-se para uma casa de um cômodo numa favela, de difícil acesso e limitada aos horários de ônibus que estão sempre lotados. Numa barraca de camelô encontra trabalho, mas ali acaba vislumbrando uma janela para os diversos mundos que coexistem em nossa sociedade. A Violência doméstica, o desprezo dos socialmente privilegiados, a correria do dia-a-dia, os transeuntes, os ônibus que passam zoando derrubando as barracas, o descaso, a amizade, os diversos tipos, enfim toda gama de pessoas, sentimentos, emoções, situações. Filomena resolve sair do trabalho onde era humilhada e resolve mudar sua vida, seguir seus objetivos: estudar, ter um “cantinho” e um “negocinho” seus.

Filomena – Ai, que delícia. Pena que não conheço ninguém aqui pra esses canto, pra comemorar comigo. Beijar, abraçar. Me dar os parabéns. Se tivesse cinema eu ia pra comemorar, mas melhor que nem tem, aí eu nem gasto o dinheiro...E passar carão? De frente pro cartaz e perguntar o nome do filme? Quanto é? Que hora começa? E o bilheteiro apontando com o dedo aquelas tabela tudo doida, aqueles cartaz que não entendo nada. Perguntando se eu não sei ler, não... mas deixa estar...Agora Filomena da Cabula vai viver. Deus me dando saúde... (2005, p.20).

A busca de ler e escrever ainda a motiva, mas as dificuldades passam a deixar o caminho mais tortuoso. Apesar dos progressos com a leitura, ainda é difícil pegar ônibus correto. Filomena mora longe, ir para a escola demanda tempo e dinheiro e o cansaço acaba por vencer. Violência policial, violência social, mas a vida na comunidade tem suas compensações.

No passado, a personagem viveu o que muitas mulheres e mães viveram e vivem: um companheiro com problemas de alcoolismo e violência doméstica. Mas sua coragem se mostrou maior, o trabalho tomou-lhe o tempo e Pauline, sua filha, engravidou. Foram-se os sonhos da menina, foi-se o namorado ao saber da notícia. Gravidez na juventude, reflexo de uma sociedade que pelos mais diversos motivos vê seus filhos crescerem como ervas daninhas, entregues a si próprios. Filomena ficou ao lado, como mulher e mãe lutou, mas viu sua filha e neto partirem. O parto num hospital caótico demonstra a realidade cotidiana da maioria dos brasileiros que no momento que mais necessitam de um tratamento enfrentam a dura realidade do nosso sistema público de saúde.

Mas Filomena da Cabula manteve-se viva e a busca pela alfabetização alimentava suas esperanças. Escrever sua redação era mostrar-se viva, capaz. Allan da Rosa descreve nossa sociedade de maneira emblemática, contundente e simplesmente real. É um retratista da periferia, suas faltas e glórias escondidas sob o véu das margens. Mulher, negra e analfabeta vive nossa realidade. Negligenciada por ser mulher. Discriminada por ser negra. E excluída por ser analfabeta.

Referências

DA ROSA, Allan. Da Cabula. São Paulo: Edições Toró, 2005.

DA ROSA, Allan. Da Cabula. 2a ed. São Paulo: Editora Global, 2008.

 

* Mestre em Literatura Brasileira pela UFMG; professora de língua portuguesa e literatura nas redes particular e pública de Belo Horizonte; coautora de Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula (2014).

** Glauber Regiane Ribeiro é graduado em história pela PUC-Minas.

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