Adão Ventura e o (Con)texto Afro-Brasileiro*

Maria José Somerlate Barbosa**

No período subsequente à abolição da escravatura negra no Brasil, alguns grupos concentraram seus esforços em elaborar formas de resistência cultural capazes de lutar contra a discriminação racial, social e econômica sofrida pelo negro brasileiro.1 Surgiram, então, sociedades recreativas, grupos jornalísticos e algumas manifestações reprimidas pela polícia. Mas é só a partir de 1930 que o movimento “A Frente Negra Brasileira” congregou um número elevado de participantes que tentaram fundar um partido político. Este grupo foi dissolvido pela ditadura do Estado Novo em 1937 (CUNHA JÚNIOR, 1992, p. 74-91). Depois do silêncio imposto pela ditadura de Vargas, os anos cinquenta testemunharam a tarefa difícil de redimensionar raízes africanas e afirmar uma identidade negra, num país que se quer moreno, ideologicamente embranquecido. A segunda metade dos anos sessenta se alterou com a repressão que a censura impôs. Nos anos setenta, o recrudescimento do regime militar com sua Lei de Segurança Nacional tornou-se um dos fatores responsáveis pelo silêncio da comunidade afro-brasileira (KENNEDY, 1988, p. 89).

O golpe militar de 1964 teve por objetivo estabelecer o que foi denominado de uma “nova ordem” para evitar que o “caos, a corrupção e o comunismo” se infiltrassem por todo o país. Nesse contexto, os temas e/ou levantes raciais tornaram-se uma ameaça à “ordem e progresso”. Fez-se, então, o silenciamento a ferro e fogo de qualquer representação popular que viesse a significar uma mínima ameaça à chamada “pacificação” do país. O grande desenvolvimento dos meios de comunicação nos anos setenta, a propaganda e a publicidade nacionalistas, aliadas à censura, funcionaram como veículos de um esquema altamente repressor. E, alheia e indiferente aos subterrâneos do regime militar, grande parte do povo brasileiro se comprazia com muito riso e pouco sizo, muito carnaval e pouco questionamento. Nesse clima, permitir que questões raciais viessem à tona seria abrir espaço para outros tipos de reivindicações sociais, políticas e econômicas. Assim sendo, falar em discriminação racial na euforia do “Ame-o ou deixe-o” tomava-se um crime de subversão (GONZALEZ, 1982, p. 11-17). Por isso, o início da “abertura política” efetuada no final dos anos setenta, também significou uma maior liberdade para que “quilombos” culturais2 se manifestassem mais claramente. Desde então, grupos culturais e literários afro-brasileiros têm sistematicamente se organizado para desenvolver uma consciência crítica na população brasileira e para questionar e desmantelar desigualdades raciais, sociais e econômicas.

Esses grupos culturais e literários interessam-se principalmente por fazer uma re-leitura cultural e uma recuperação do espaço histórico, social, ético e étnico do Brasil negro. Situados nos maiores centros urbanos, eles têm se preocupado em resgatar e redimensionar o espaço do negro na sociedade e na literatura brasileiras. Esses grupos põem em xeque a “aculturação” racial, mostrando que as relações raciais no Brasil, quando examinadas num eixo horizontal (linear e superficial) confundem cor com posição e classe sociais. As convicções etnocêntricas dos brasileiros advêm de urna consciência falsa da realidade racial em que se acredita que: a) o “negro não tem problemas no Brasil”; b) a índole do povo brasileiro não aceita a barreira social; c) as oportunidades de acumular riquezas são iguais; d) “o preto está satisfeito”; e) os problemas de miséria e desajuste social são “efeitos residuais” que serão eliminados com o passar do tempo (FERNANDES, 1978, p. 256).

A produção literária dos grupos culturais e literários tornou-se um canal alternativo de reconstrução do passado histórico, veículo de conscientização da população negra e branca e instrumento de desmascaramento da chamada “democracia racial brasileira”. As obras literárias e a crítica produzidas pelos escritores afro-brasileiros avaliam tais parâmetros e perspectivas. Analisam também as vozes, pausas e silêncios da literatura negra no contexto da literatura canônica brasileira. Por exemplo, ao traçar uma visão panorâmica da situação do negro no discurso dominante da literatura brasileira, Cuti (Luiz Silva) desmistifica, entre outros pontos, a visão do Modernismo brasileiro, como aquele estilo de época em se elevou o elemento preto a uma verdadeira categoria de herói nacional: “[c]om o Modernismo começa o mulatismo pejorativo e idealizante, que chega até os nossos dias com Jorge Amado. Aqui, a crença de que o negro vai, num futuro próximo dissolver-se no branco, é que dá o tom.... E a fobia do embranquecimento” (CUTI, 1985, p. 18-19). Portanto, ainda que o Modernismo brasileiro tenha proporcionado uma liberdade estética capaz de impulsionar vozes marginalizadas a se destacar, num âmbito geral, manteve-se preso à ideologia dominante. Pelo menos inicialmente, não estendeu seus ideais estéticos a “setores mais abrangentes da população” (ABDALA JUNIOR, p. 195).

Muitos dos ensaios críticos e antologias escritos por escritores afro-brasileiros nas últimas décadas distinguem-se de trabalhos previamente publicados sobre a produção literária afro-brasileira,3 pois são escritos por negros, sobre assuntos negros, com uma voz e perspectivas afro-brasileiras. Figuras isoladas também têm reavaliado e redimensionado o conceito de raça e raízes africanas no Brasil. Mesmo quando os escritores afro-brasileiros não se inserem nas organizações quilombinas, eles costumam exercer outras funções dentro do contexto cultural brasileiro. Adão Ventura Ferreira dos Reis,4 por exemplo, foi coordenador do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira na Secretaria do Estado da Cultura de Minas Gerais e do grupo “Palmares” em Brasília. Desde 1970, tem publicado a sua poesia tanto individualmente quanto em antologias.

Os críticos, mesmo os que muito admiram o talento de Adão Ventura, analisam os seus dois primeiros livros apenas como uma “sobrecarga metafórica” de “engajamento surrealista” (Rui Morão), e “uma linguagem surrealista e simbólica” (Afonso Romano de Sant'Anna) acreditando que os temas afro-brasileiros da poesia de Ventura aparecem apenas em A cor da pele. As características apontadas pelos críticos sobre os seus dois primeiros livros não constituem uma novidade para a época pois foram escritos e publicados sob os olhares da ditadura militar no Brasil. A censura dominante impelia autores e compositores a buscar a via oblíqua da metáfora e do simbolismo como uma forma de burlar a censura e de expressar um Brasil surrealisticamente caótico, vivendo as leis da “ordem e progresso” e da “segurança nacional”. Tal paradoxo é amplamente representado tanto na poesia, na prosa e na música. É inegável que a censura não impediu que autores como Oliveira Silveira publicasse sua poesia negra. Houve, no entanto, um esforço contínuo por parte do aparatus militar para desestimular (especialmente pela censura) qualquer manifestação que pudesse constituir uma ruptura nos padrões vigentes. Muitos escritores optaram por evitar um confronto e enveredaram pela denúncia camuflada.

Percebe-se na poesia de Adão Ventura que mesmo que raça e raízes africanas não constituam o eixo condutor dos seus primeiros poemas, a preocupação com a posição sócio-cultural do negro no Brasil e com repressão/liberdade está também presente nos seus versos iniciantes. Ao lado do aparente desprezo pelos encadeamentos lógicos e construções “refletidas” surge uma (des)ordem centrada na denúncia das condições econômicas, políticas, raciais e sociais no Brasil. Ventura busca definir-se como poeta, ao reconstruir a sua própria história através da cor da sua pele e da trajetória afro-brasileira. Como a análise que se segue indica, em se examinando toda a obra de Adão Ventura, verifica-se no campo formal uma preocupação do poeta de trabalhar as palavras e a estrutura do poema. No entanto, Ventura intercala essa visível preocupação laboriosa com um poetar surrealista, derivado do fluxo de consciência, estabelecendo também uma correlação com fatos históricos. A seleção de poemas aqui discutidos evidencia exatamente essa conexão entre o poetar onírico de Ventura e a denúncia que ele faz dos problemas sociais e raciais brasileiros.

Seu primeiro livro, Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul (1970) se desenvolve em forma de poesia “proseada” e os poemas numerados de 1 a 15 têm os títulos listados apenas no índice. Ao descaso pelo uso de maiúsculas (uma quebra da hierarquia ortográfica) une-se a ironia profunda feita especialmente pelo jogo de palavras. Recordações do passado se inserem no contexto do presente, à medida que a voz poética traduz o seu fluxo de pensamento. Por exemplo, o poema “Noite no passaporte”, multifacetado e polissêmico, fala de flores, relógios, da musa Lygia, liquidação de tergal, prédio de vinte e cinco andares, títulos protestados e pagamento à vista. No meio destes elementos aparentemente díspares, no penúltimo verso, ele inclui: “era expressamente proibida a entrada de pessoas de cor naquele REIcinto de segurança.” Os significantes “recinto de segurança,” “REI” e “cinto de segurança” a que este verso remete o leitor são índices e símbolos da ditadura militar no Brasil com sua mão de ferro e censura máscula, sentidos em dimensão nacional.

O trocadilho irônico e sardônico do verso seguinte e último do poema (“vendem-se empregadas domesticas que saibam descascar Bach”) pode também levar o leitor a outras referências de cunho linguístico-sociais e políticas. A época da ditadura militar no Brasil com seu sistema de denúncias, tortura, censura, arbitrariedades, descaso pelos direitos humanos e controle da liberdade de locomoção poderia, numa outra instância, encontrar um paralelo na escravidão negra no Brasil. Senhores e feitores se transformam em generais e censores. A oração adjetiva “que saibam descascar Bach” traz à baila uma série de associações baseadas em significados culturais que se entrelaçam para questionar os parâmetros das condições sociais e econômicas das empregadas domésticas no Brasil. Corriqueiros anúncios na seção de classificados, oferecendo emprego de doméstica, pedem “empregadas que saibam cozinhar. Num processo palavra-puxa-palavra, a estranheza provocada pelo uso do nome de um compositor europeu (provavelmente por associação fonética com batatas, já que descascar batatas é uma ação corriqueira na cozinha) também passa a ser uma reavaliação da reverência que se faz no Brasil às culturas europeias, em detrimento das de origem africana. O verso todo “vendem-se empregadas domésticas que saibam descascar Bach” também indicia ultrajes cometidos pela escravidão negra no Brasil, em que as pessoas trazidas da África eram vendidas nas feiras como se vendem batatas.

“A invasão” o segundo poema desta coletânea, começa com as lágrimas de Lygia, passa pela proibição das entradas e saídas do porto, menciona uma placa que “foi violentamente arrancada do peito do cego”, fala de denúncias, fugas, sombras e identidade/raça. Neste poema, as referências se tornam menos metafóricas, assumindo diretamente o caráter de queixa contra um sistema em que o desrespeito pelos direitos humanos ganha um papel duplamente violentador ao se fazer um crime contra a pessoa humana num contexto em que as tensões raciais já se encontram exacerbadas.

Seu segundo livro, As musculaturas do arco do triunfo (1976), como todos os subsequentes, é dividido em três partes. A primeira, intitulada “Livro de Hagbe”, apresenta um poema introdutório e sete outros poemas numerados e sem títulos, todos exaltando e/ou explicando a musa Hagbe. A segunda parte (“Unidade Segunda”) e a última (“Unidade Terceira”) demonstram o mesmo teor prosador do livro anterior. Anexando um tom surrealista/tropicalista, Ventura satiriza a alienação político-social em que se refugiaram as pessoas para escapar da repressão implantada pela ditadura militar: “das cabeças nascem os cogumelos, / porque a palha é fosca e o cito / árido, porque o estábulo é a / farsa, e a marca é o malho, por / que escuro é o medo e espúria é / a pele, porque escuso é o encarte / entre o corpo e o chão.” (Único poema, sem titulo, da “Unidade Terceira”).

Jequitinhonha: poemas do vale (1980), como o título indica, é o resultado de uma “viagem cultural” feita pelo poeta em outubro de 1979. Nesses poemas, Ventura faz versos sobre as danças típicas do vale do Rio Jequitinhonha, Natal, avós carregaram/ para edificar os palácios dos reis” (“Um”). O poema “Dois” traz a imagem de “pés no chão” atravessando “frios ghetos/ de duras cicatrizes.” Na segunda parte, o poema “Para um Negro” discute a cor da pele como um procissão religiosa, as paisagens do rio, milagres, romarias, teares de berilo e chapada do norte, descrevendo várias tessituras. Ventura descortina também a miséria e “o escuro das catas/ o estrume das castas” (“Festa de N.S. do Rosário: danças típicas”) intercalando poesia, tradição, folclore, sabedoria e arte popular com a pobreza e a “cor escura” do vale do Jequitinhonha. Talvez por isso, as fotografias que acompanham os poemas sejam todas de pessoas afro-brasileiras.

No seu quarto livro, A cor da pele (1981) Ventura ressalta um ritmo mais rápido, frases curtas, palavras precisas e bem calculadas. Nos poemas desta coleção, ele insistentemente recorre a vocábulos como cor da pele, racismo, escravidão que registram sentimentos relacionados à segregação racial. Estes elementos aparecem alinhavados às palavras ferro e fogo que se repetem por quase todos os poemas e que ele vai resumir, num poema, sem título, na sua próxima coleção (Texturaafro): “A história / do negro / é um traço / num abraço / de ferro e fogo”. Já no poema titulo (“A cor da pele”) aparece a queixa à exigência do branqueamento da raça negra no Brasil: “a cor da pele / esfolada / em banho-maria.”

Dividido em três partes, A cor da pele expõe “biografias,” “servidão” e “raízes.” A primeira parte, denominada “O Livro das Biografias” traça a história da escravidão negra no Brasil (“Nova África”) uma memória que a voz poética – discursando na primeira pessoa – considera “tão forte quanto as imensas pedras/ que meus divisor de relações sociais em que a cor da pele se torna “uma sombra” que fere mais que “um soco” ou “unia taça / que atinge / muito mais em cheio / o coração.”

Em “Flash Back,” um outro poema dessa mesma parte, o passado histórico (noites viajadas em navio tumbeiro) se alinhava com o presente histórico do poema intitulado “O negro escravo (uma versão para o século XX)” em que a voz poética ironicamente mostra que hoje em dia a escravidão negra no Brasil se traduz em forma de “punhos ocos,” “dentes cariados,” “dormir passivo” e “corpo servil.” Adão aprofunda essa denúncia ainda mais em “Senzala”: “é a sombra que tenho aprisionada nos ghetos da minha pele.” O poema “O preto de alma branca: ligeiras conceituações” critica vários estereótipos, calçaduras culturais e o racismo camuflado pela piada, pelo aforismo, e pelo paternalismo: (“saco de capacho,” “culhões de cachorro,” “cor de camaleão,” “sujar na entrada,” “cagar na saída,” “sangue de barata”) para concluir que estes estereótipos caricaturam o afro-brasileiro, criando uma enorme distância entre o que se pensa do negro no Brasil e o que ele é no “corpo da Grande Mãe-África.”

Desmistificando a “democracia racial” brasileira, o poema “Meu sonho” mostra que, observando-se as relações raciais no Brasil sob um prisma vertical, ou seja, mais aprofundado, a união amorosa entre pretos e brancos ainda constitui um divisor de águas. A voz poética recusa a miscigenação “harmoniosa” de Gilberto Freire e seus seguidores: “Meu sonho/ não é ter uma branca/ que me chame de crioulo/ a vida inteira. / Meu sonho/ não é ter uma mulher branca/ que me acuse de ter misturado a sua raça”. Em todos os poemas desta coleção Ventura denuncia o racismo brasileiro mostrando que a cor da pele e dos olhos funcionam como marcos de separação. “Negro forro”, por exemplo, questiona profundamente o Brasil como um paraíso racial e mostra que a “democracia racial” brasileira, em muitos casos, usa estratagemas semelhantes àqueles elaborados sob a égide da escravidão”: “minha carta de alforria / não me deu fazendas, / nem dinheiro no banco, / nem bigodes retorcidos. / Minha carta de alforria / costurou meus passos / aos corredores da noite / da minha pele.”

Em Texturaafro (1992), Adão começa citando Manuel Bandeira: “Somos duplamente prisioneiros:/ de nós mesmos / e do tempo em que vivemos.” É exatamente essa independência, uma libertação dos grilhões que a cor da pele e o tempo/história lhe impõem que Ventura enfoca neste seu último livro de poemas. Em “Comensais,” a voz poética analisa: “A minha pele negra / servida em fatias, / em luxuosas mesas de jacarandá,/ a senhores de punhos rendados /há 500 anos.” O particípio em “minha pele servida” perde os valor semântico de verbo de ação (“servir”) para incorporar o valor de adjetivo, tornando-se uma forma passiva do verbo (“foi/tem sido servida”). “Há” em “há 500 anos” funciona como uma construção adverbial de tempo. Portanto, a lacuna de semas indicadores de ação no poema torna-se um índice da ausência de uma diretriz capaz de combater eficazmente elementos sociais repressores e racistas. Indicia também a servilitude do elemento negro na sociedade brasileira há quase meio milênio.

Muito mais do que em A cor da pele, em Texturaafro ele constantemente recorre às origens e volta ao passado resgatando a contextura afro que frequentemente tem-se traduzido em pausas e silêncios dentro da “história oficial.” Enquanto em A cor da pele, o teor dos poemas é a acusação que se fecha em torno de uma voz sofrida, em Texturaafro a estruturação simbólica é reforçada: a denúncia abrange um campo mais amplo porque se estabelece através da construção mítica. Consciente de que ele veste “a camisa de um poeta negro” e que tem o “exíguo espaço de uma bainha” para acomodar a sua “dor-senzala” (“Origem”), Adão busca nos vultos marginalizados da história brasileira (Chico Rei, Isidoro e Zumbi) a sua fonte de inspiração e a tradução pessoal do seu posicionamento como brasileiro de cor escura e como poeta.

Na segunda parte de Texturaafro, Ventura vai buscar na memória mineira, os traços marcantes da mitopoesia afro-brasileira. Este texto inaugura um espaço para Chico-Rei e Isidoro, personagens afro-mineiras excluídos da história oficial. Reapropriando a lenda e o mito, no poema “Chico Rei,” essa figura da tradição afro-brasileira torna-se um arquétipo, símbolo de resistência, representante de tenacidade, coragem, liderança e destreza mental.5 Registram os arquivos da memória popular que Isidoro (personagem central do segundo poema da segunda parte) era um misto de audacioso quilombola e “bandoleiro”. Considerado invencível em vida e mártir depois de sua morte bárbara (1807), é resgatado na poesia de Adão Ventura como um afro-mineiro, sagaz, inteligente, o protótipo da subversão positiva à ordem dominante. A marginalidade de Isidoro aparece como um contra-discurso dentro do discurso dominante validando insurreição e a inversão dos valores colonialistas calcados pelos portugueses nas minas gerais. Ao recuperar a memória de Isidoro como herói, Ventura questiona os valores dos heróis da história oficial e os parâmetros que estabelecem as margens sociais, culturais e históricas.

Na terceira parte de Texturaafro, Ventura mescla passado e presente históricos, equiparando a marginalidade e a marginalização de Zumbi com a dos meninos de rua que disputam um espaço social “de um roto sol de marquise” ou um “quilombo urbano” (“Menino de rua”). O poema “Ainda” fala da “marca de ferro & fogo,” do “chicote da polícia / —lanhos/ nos ombros” ao comparar uma senzala e uma favela. Nesses últimos poemas, Ventura enfoca dois aspectos sócio-raciais prementes no Brasil: os meninos de rua e a realidade das favelas.

Como alguns poemas de Ventura nos faz lembrar, a situação dos “menores abandonados” no Brasil é assustadoramente cruel, tanto pelo elevado das cifras como pela ineficiência dos órgãos competentes. Essa “fabricação do menor” é em grande parte resultante de fatores sócio-econômicos e do escasso investimento do governo brasileiro na educação do povo. Baseadas numa burocracia exasperante, as leis de “proteção ao menor” no Brasil são contraditórias, pois não redimensionam as medidas sociais e criam situações que ajudam a fomentar a marginalização. Por isso, como Isidoro ou Zumbi, essas crianças cobram um espaço social e se alevantam contra a indiferença das autoridades competentes e do público em geral. A marginalidade dos “pivetes”, “trombadinhas” agindo sozinhos, em pares, ou em “arrastões” se manifesta nos morros, nas ruas, nas praias, nas esquinas, a cada canto, em todo sinal de trânsito. Frequentemente envolvidos com atividades que vão desde um simples pedir esmolas, carregar pacotes ou “tomar conta” de carros na rua, até outras funções como tráfico de drogas, roubos e assassinatos, eles seguem burlando a lei, saqueando, destruindo e simultaneamente arriscando a vida a cada passo.6

O espaço das favelas, geralmente situadas nos contornos ou nos morros das cidades grandes, torna-se um símbolo encarnado da aflitiva pobreza e dos extremos das divisões sócio-econômicas no Brasil. Ao descer o morro ou sair dos bairros pobres e periféricos, tanto os “marginais” adultos quanto os jovens perpetuam guerrilhas pessoais ou de gangues, instaurando o medo e a insegurança na população de maior poder aquisitivo. Como Isidoro e muitos outros quilombolas, os “salteadores” e “bandidos” buscam as suas próprias formas de sobrevivência e de reivindicação de um espaço econômico, social e racial.

Por conseguinte, a poesia de Adão Ventura (principalmente nas coleções A cor da pele e Texturaafro) luta por desmistificar as formas de racionalização (mitos, estereótipos, convenções) divulgadas pelos brancos nas classes dominantes com o pretexto de criar uma imagem de uma democracia racial no Brasil (que possa apaziguar a consciência do branco e a insurreição do negro). Como um porta-voz da tradição afro-brasileira, Ventura luta por redimensionar as margens da sociedade brasileira através da sua poesia ao descrever a história e a cultura como construções do discurso dominante. Ele concentra a sua oposição ao racismo camuflado do Brasil, investiga e denuncia na escrita a rede intrincada de códigos, convenções, categorias, imagens e crenças que se traduzem em estereótipos. Seus poemas, principalmente aqueles de A cor da pele e de Texturaafro tornam-se uma exegese histórico-cultural valendo-se do contexto e dos arquivos nacionais para estabelecer uma inquirição sócio-cultural, racial e político-econômica. Tal polemização atua como um contra-discurso, expondo práticas hierarquizantes dos cânones culturais e literários brasileiros.

Consequentemente, ao analisar as ideologias subjacentes ao “paraíso racial” brasileiro, os guetos e as cicatrizes da história, Ventura faz uma leitura da tradição afro-brasileira como uma cultura proscrita. Questiona também a violência epistemológica e ontológica dos processos intelectuais ao desmistificar convenções, mitos, costumes, instituições e padrões de pensamento e comportamento. Mas, sobretudo, faz a sua própria travessia como escritor pelos ermos do sertão mineiro e pelas veredas nacionais e internacionais. No espaço exíguo que a literatura brasileira concede ao escritor afro-brasileiro, Ventura torna-se também um novo quilombola pois luta com palavras, vencendo pela poetização do discurso.

Referências:

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_____.Jequitinhonha: poemas do vale. Belo Horizonte: Coordenadoria do Estado de Minas Gerais, 1980.

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* Publicado na revista Afro-Hispanic Review, Fall, volume 16, número 2, 1997.

1 O movimento dos negros libertos assume três fases: a primeira é abolicionista (até 1988); a segunda (1888 a 1960) em que há, sobretudo, uma luta pela integração à sociedade de classe; a terceira fase consta dos movimentos atuais que se destacam por ter conseguido apoio de vários setores como partidos políticos, igreja renovada e sindicato de operários. “O Movimento da Mulher Negra”, “Movimentos de Negros do Partido dos Trabalhadores, “Movimento da Pastoral do Negro”, são alguns dos grupos ativistas atuais (CUNHA JÚNIOR, 1992, p. 90-91). Dentre as manifestações militantes deste século, encontram-se os grupos culturais e literários. O grupo “Quilombhoje”, cediado em São Paulo desde 1978, “Negrícia” centrado no Rio de Janeiro em 1982. “UniVerso” de Campos (Rio de Janeiro) de atuação local, “Gens-Grupo de Escritores Negros de Salvador” fundado em 1985 são os principais grupos literários e culturais atuantes. O grupo “Palmares”, fundado em por Oliveira Silveira em 1978 para desenvolver atividades de teatro, literatura e outras atividades culturais no Rio Grande do Sul foi dissolvido em 1980 (LOBO, 1993, p. 162). Na Bahia, convém também destacar o grupo “Olodum” que foi criado em 1979 como bloco afro e reestruturado em 1983 com a finalidade de viabilizar a pesquisa das raízes africanas, desenvolver um sentido de orgulho das raças, desenvolver atividades culturais na região, divulgar vozes afro-brasileiras e levar o produto da comunidade afro-baiana ao mercado de consumo. Atualmente, além do bloco afro do carnaval, conta também com a “escola Criativa Olodum”, Fábrica de Carnaval “e o” Bando de Teatro “(DANTAS, 1994, p. 15, 109).

2 Hodiernamente, a palavra quilombo também passou a ter o significado de resistência cultural, sendo usada em referência aos grupos culturais afro-brasileiros (veja “Quilombhoje”).

3 Veja, por exemplo, os trabalhos de Zilá Bernd, Richard A. Preto-Rodas, David Brooksham, David Haberman, Roger Bastide e outros pesquisadores que têm criado um espaço importante para a literatura afro-brasileira no Brasil e no exterior.

4 Nasceu no Serro (Minas Gerias) em 1946. Formou-se em advocacia pela Universidade Federal de Minas Gerais e publicou o seu primeiro livro de poesia em 1970. Em 1972, recebeu o Prêmio Cidade de Belo Horizonte. Em 1973, foi convidado a ensinar literatura brasileira na Univerty of New México e participou do International Writing Program na Univerty of Iowa.

5 Rei africano escravizado e trazido para Ouro Preto com a sua família e subordinados, através do seu trabalho e capacidade administrativa, consegue comprar a sua liberdade, a dos seus familiares e dos seus súditos africanos, redimensionando o seu antigo reinado, desta vez em terras mineiras. Chico Rei torna-se virtualmente em chefe de estado dentro da província de Minas Gerais e, por isso, acaba sendo massacrado com todos os seus pelo rei de Portugal. Por causa da sua participação em resgatar a sua liberdade, da sua família e dos seus súditos africanos, tornou-se, segundo Abdias do Nascimento, o primeiro abolicionista brasileiro (62-63). A mina de ouro Encardideira e a igreja de Santa Efigênia são dois marcos que atestam a participação ativa dele e da sua prole/ comunidade na região da antiga Vila Rica.

6 Esses menores são frequentemente mortos pelo “Esquadrão da Morte” que funciona como um canal alternativo de repressão dentro da própria polícia. O atual policiamento ostensivo nas “áreas de turismo” do Rio de Janeiro tenta empurrar os “marginais” para o espaço periférico da cidade mascarando uma realidade nacional. Significativamente, tal “varredura” iniciou-se durante a badalada “Eco 92” para garantir segurança física e econômica a todos os visitantes, principalmente os estrangeiros de passagem pela “Cidade Maravilhosa”.

** Maria José Somerlate Barbosa é doutora em Literatura Luso-Brasileira pela Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill e Professora Adjunta da Universidade de Iowa. Dedica-se aos estudos de gênero e raça na literatura e na cultura brasileira, distinguindo-se pelos trabalhos sobre a obra de Clarice Lispector (Clarice Lispector: des/fiando as teias da paixão, EDIPUCRS, 2001 e Mutações Faiscantes/Sparkling Mutations, GAM, 1996) e por estudos afro-brasileiros como Recitação da passagem: a obra poética de Edimilson de Almeida Pereira (Mazza, 2009). Organizou uma coletânea de ensaios sobre representações do envelhecer na cultura e na literatura de países de expressão em língua portuguesa (Passo e compasso: nos ritmos do envelhecer, EDIPCRS, 2003) e publica extensivamente em coletâneas, periódicos e revistas especializadas nos Estados Unidos e no Brasil.

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