Panorama da fortuna crítica de Adão Ventura

Gustavo Tanus*

A história
do negro
é um traço
num abraço
de ferro e fogo.
(Texturaafro)

Neste decenário da morte do poeta Adão Ventura, apresentaremos um panorama de sua crítica pela análise dos paratextos produzidos,1 com a intenção de, com isso, conhecer sua abrangência e conseguir definir o campo de atuação dessa crítica, a fim de que possamos prosseguir análise de sua poética, composta dos livros Abrir-se um abutre ou mesmo depois dele deduzir o azul (1970) e As musculaturas do arco do triunfo (1976), Jequitinhonha: poesias do Vale (1980), A cor da pele e também em Texturaafro (1992) e Litanias de cão (2002).

Não obstante a importância que Adão Ventura possui como escritor afro-brasileiro – inserido em um contexto de luta por visibilidade do negro dentro de uma sociedade ainda preconceituosa e que, todavia, acredita que vivemos em uma democracia racial – tem sido pouco estudado pela crítica e pela academia. Dos trabalhos existentes sobre a obra de Adão Ventura, elencamos os peritextos,2 leituras de renomados escritores como Affonso Romano de Sant’Anna, em As musculaturas do arco do triunfo (1976); as de Rui Mourão, Fábio Lucas e Silviano Santiago, em A cor da pele (1980); os fragmentos de críticas sobre Adão Ventura, em Texturaafro (1992); ou a nota de apresentação de Ferreira Gullar, em Litanias de cão (2002). Com uma proposta diferente, existem os escassos epitextos,3 trabalhos cuja motivação é o estudo acadêmico, como o de Benedita Gouveia Damasceno (1988), de Maria José Somerlate Barbosa (1997), de Jussara Santos (1998) e de Édimo de Almeida Pereira (2004; 2010) e Maria do Rosário Alves Pereira (2004).

O primeiro livro de Adão Ventura, Abrir-se um abutre ou mesmo depois dele deduzir o azul (1970) – publicação do autor – não possui elemento peritextual de explicação, análise ou comentário, sendo, portanto, uma primeira travessia na corda bamba do mercado editorial, aparentemente sem amparo de rede de proteção, algo muito corajoso, haja vista a expressão em uma prosa poética que, segundo Maria do Rosário (2004, p. 1), “trabalha o plano do significante” e apresenta “um refinamento linguístico e poético que [...] chega ao hermetismo”. Entretanto, se observarmos outro elemento paratextual, a dedicatória feita aos escritores Murilo Rubião e Affonso Ávila, percebemos a função de uma espécie de “caução moral, intelectual ou estético” (GENETTE, 2009, p. 124), que afiançaria essa verve surrealista, não como filiação àquela escola literária, mas como expressão desejada, como um ideal de um “ [...] humanismo poético, em que no centro está o homem” (MOLINA apud MARTINS, 2001, p. 18).

As musculaturas do arco do triunfo (1976), seu segundo livro, possui uma outra organização editorial. O fato de ter sido vencedor de um dos prêmios de literatura mais importantes do Brasil, o “Cidade de Belo Horizonte”, ano de 1972, traz um mérito que, sendo inscrito na folha de rosto, como uma opção editorial, parece buscar um lastro para o texto. Esse livro foi publicado pela Editora Comunicação, pelo editor André Carvalho, conhecido por sua ousadia, que publicou, nessa mesma década, o chamado realismo para crianças da literatura infantojuvenil de Wander Piroli, na Coleção do Pinto.

Esse livro de Adão Ventura contém, ainda, um comentário assinado por Affonso Romano de Sant’Anna, que se localiza nas orelhas do livro. Nele, o crítico atenta-nos para a poesia como território dividido em “sesmarias onde não faltaram os títulos e brasões de família”, mas que, por iniciativas de jovens escritores, como Adão Ventura, “[os coronéis da literatura iniciam a perda do] controle de suas posses”, que são conquistadas por esses novos lavradores da palavra, em uma “liberação do fazer poético, [...] [da] democratização da poesia, fazendo com que ela não seja apenas um exercício de elites pervertidas em mil e uma teorizações sofisticadas (e inúteis)”. Ainda sobre esse livro, Affonso Romano de Sant’Anna percebe que a prosa poética é “ligada ao mágico, ao primitivo e ao inconsciente, [...] a escrita da liberação do homem, sua catarsis (sic) estética e existencial”, categorização importante para uma análise da trajetória de Adão Ventura, como um passadiço importante e obrigatório até sua última obra.

Em 1980, Adão Ventura publica seu terceiro livro, Jequitinhonha: poemas do vale, cujos poemas, diferente daqueles produzidos nos dois primeiros livros, há uma valorização dos elementos da cultura popular mineira, sendo, segundo o próprio autor, “ligeiros instantâneos de uma viagem cultural realizada no Vale do Jequitinhonha, em outubro de 1979”. Vale dizer que esse livro é parte de uma trilogia sobre o Vale do Jequitinhonha, sendo os outros Nas águas do Jequitinhonha, de Ronald Claver, e Cantigas de amor & outras geografias, de Paulinho Assunção, publicados também com apoio e publicação pela Coordenadoria de Cultura do Estado de Minas Gerais.

O livro se divide em três partes: Rituais; Do Alto Vale; e Tessituras. A primeira parte agrega o canto aos ritos populares como a Festa de N. S. do Rosário, que é padroeira da Irmandade dos Homens Pretos; o Natal e as procissões. Mais interessante é esta parte abrir com um poema intitulado “Nota Biográfica” (1980, p. 15), em que o eu lírico toma a descrição de seu nascimento e do local, “nas águas / de Santo Antônio do Itambé”, como um processo ritualístico de tomada de consciência sobre si e sobre o mundo “que firmei pé / e descobri que o mundo era bem maior”. A segunda parte, “Do Alto Vale”, os textos estão carregados de uma linguagem metonímica, compondo as localidades por meio daquilo que é sua parte, uma circunscrição territorial por seus atores e personagens ou atividades laborais e mágicas, como em “Paisagens do Jequitinhonha”; “Araçuaí, Coronel Murta e Itinga: garimpagem”; “Virgem da Lapa”; “Teares de Berilo e Roça Grande”; ou mesmo pelas considerações da sorte de “Chapada do Norte”, município do norte mineiro empobrecido pelo saqueio de sua riqueza. A terceira parte, intitulada “Tessituras”, é composta por três poemas a “Iam”, uma espécie de interlocutor do eu poético cuja história foi retomada e encenada, na década de 1980, na peça “Iam, o palhaço”, com direção e texto de Myriam Tavares, a quem o poeta dedicara o livro.

O quarto livro, A cor da pele (1980; 1988) é o mais estudado porque é considerado sua marca de assunção da cor. Já na dedicatória da obra o autor direciona a responsabilidade, nomeia o apoiador e gera a responsabilidade (GENETTE, 2009): “A COR DA PELE // é dedicado / aos que lutaram / e lutam / pela causa do negro no Brasil”, ou seja, nomeia os precursores responsáveis pela luta e resistência, nomeando os que atualmente resistem e, quem sabe o leitor, que poderá tomar parte nessa causa. Já na segunda dedicatória, o poeta oferece a obra a seus ancestrais, avô Teodoro da Fazenda e avó Dona Justina, e aos pais e irmãos. A pesquisadora Maria do Rosário, em seu artigo “A consciência da negritude” (2004) diz que esse livro configura:

a construção de uma poesia negra que foge à folclorização e a um apelo cultural vigente no imaginário coletivo, marcado por estereótipos; é a busca de uma identidade não mais construída sob uma perspectiva do branco, mas, ao contrário, é o ponto de vista interno de quem conhece e vivencia os estigmas da pele e contra eles se rebela. A linguagem caracteriza-se pelo abandono do excesso de metáforas dos primeiros textos e busca uma comunicação mais fácil e direta com o leitor. (PEREIRA, 2004, p. 1).

Esse livro possui três peritextos, opiniões críticas. O primeiro, “O poeta se renova”, é assinado pelo escritor Rui Mourão. Nele o crítico revela a transformação da expressão de Adão Ventura, que foi da “composição de sobrecarga metafórica e de decidido engajamento surrealista [...] a simplificação, para o discurso direto e seco”, cujo o resultado, para ele, possui uma função social. Esse texto de apresentação possui a relevante consideração de que é feita antes uma caracterização da tragédia histórica do negro, do emparedamento denunciado por Cruz e Sousa, ou enclausuramento cujo “sistema de bloqueio se confunde com o [...] o corpo”, que propriamente uma denúncia (que pode se perder na panfletagem) ao preconceito racial.

O segundo texto crítico de A cor da pele é assinada pelo escritor e crítico literário Fábio Lucas. Ele afirma, acertadamente, que não é a consciência da cor que faz o poeta, mas o trajeto realizado para alcançar a “temática negra”, “numa realização mais depurada, mais dirigida, mais carregada de História, pois sai do mundo neutro da magia”, exprimindo as barreiras sociais impostas aos negros da ideologia colonial eurocentrada, em que a “cultura é expressão monolítica do poder branco”. Ainda conforme Fábio Lucas os poemas são contundentes, e de “um lirismo da revolta, um Cruz e Sousa às avessas”,4 em “versos curtos, diretos, nada descritivos do mundo exterior nem de indecisões interiores”.

O terceiro texto crítico, com o mesmo nome do livro, é do ensaísta, poeta, professor contista e romancista brasileiro Silviano Santiago. Nele o escritor alude ao fato de o livro não seguir uma certa tradição modernista da poesia negra (de Jorge de Lima ou Raul Bopp, por exemplo), de utilização de “referências concretas e precisas a elementos de cultos africanos ou afro-brasileiros, [...] transcrições fonéticas um pouco ridículas do que seria o falar ‘estropiado’ do negro”, pelo contrário, Adão Ventura estaria dentro da tradição a qual Cruz e Sousa é maior vulto, em que o elemento negro é objeto de reflexão e não “arabesco de decoração”, não sendo,

[...] no poema [...] produto da ornamentação vocabular, o que denotaria certo exotismo tão ao gosto de poetas de linha romântica. [...] [mas] advém do drama negro que é refletido pela poesia e que o poema (sem cor vocabular) carrega de alta tensão emocional. (SANTIAGO, 1980).

Em 1992, Adão Ventura publica seu quinto livro, intitulado Texturaafro. Dividido em quatro partes, o livro continua a linhagem de versos mais curtos e diretos dos livros Jequitinhonha e A cor da pele, com:

[...] assuntos [...] mais ou menos definidos: na primeira, aparecem poemas abordando a questão de uma descendência comum aos afro-brasileiros, uma raiz cultural que os mantém interligados; na segunda, as figuras emblemáticas da resistência e do orgulho negro, como Chico-Rei e Zumbi, são exaltadas; na terceira parte, o autor problematiza a condição de indigência em que ainda vivem muitos negros: a favela, por exemplo, seria a nova senzala do século XX. Na última parte do livro, aparecem as figuras familiares ao poeta: pais e avós se tornam material poético. (PEREIRA, 2004, p. 2).

Da terceira parte, destacamos o poema “Escravo Isidoro”, por sua estratégia diferente, que alinha fragmentos de histórias sobre Isidoro no mesmo plano do texto. O primeiro fragmento retirado da obra Memórias do Distrito Diamantino, escrita por Joaquim Felício dos Santos,5 contextualiza o momento da prisão do escravo fugido; já o segundo, retirado da obra Dianice Diamantina, do poeta Fritz Teixeira de Salles,6 dá a contextura dos castigos impingidos ao escravo. Desta forma, o poema – que se constrói após esses paratextos tomados como texto – volta no tempo anterior ao da crueldade da prisão e do castigo já relatados pelos excertos; este artifício da retrospecção amplifica o sentimento de temor e angustia pela incapacidade que o leitor possui de libertar o escravo, fugindo com ele da condenação e punição certas. Ainda deste livro, destacamos “Poema da morte de um pai” e “Identidade”.

O primeiro poema, como uma homenagem ao pai de Adão Ventura que naquele momento tinha falecido, inicia-se pelo pedido que, em respeito à morte, se pare os barulhos das ferramentas e das cantigas de trabalho, e também se interrompa a viagem dos tropeiros, para que, de modo sensível, cante-se à morte de seu pai, que não significa perda, mas o encontro de “seu Teodoro da Fazenda”, seu avô, e o filho “novamente menino / descalço, chapeuzinho de palha, / aguilhada na mão”. Já no outro poema, “Identidade” o eu-lírico canta na primeira estrofe a despersonificação de sua mãe “Sebastiana Ventura de Souza” que de seu nome próprio transmuta a uma identidade genérica, “Sebastiana de Tal”, porque a execução de tarefas domésticas de limpeza e cuidado da casa é, em um mundo machista, atribuição de toda e qualquer mulher. Entretanto, esta mulher, que é mãe, recupera sua persona ao ser responsável pelo acalanto do menino, por meio das cantigas de ninar, que se prestam mais do que embalar o sono, mas como um primeiro contato com a tradição oral e o ritmo, que são próprios de sua formação cultural.

Ainda sobre esse livro, destacamos a presença dos breves comentários peritextuais, em seção intitulada “Fragmentos: FALA CRÍTICA sobre Adão Ventura, de escritores e críticos, a saber: 1) Silviano Santiago; 2) Fábio Lucas; 3) Rui Mourão; 4) Carlos Antoninho Duarte; 5) Alberto Silva; 6) Henrique L. Alves; 7) Duílio Gomes; 8) Eliana Mourão; 9) Manoel Lobato; e 10) Libério Neves. Os três primeiros são excertos dos textos publicados em A cor da pele (1980), os outros dizem respeito a essa nova empreitada poética, sobre questões da afrodescendência, suas raízes culturais, e o olhar sobre o negro, no “agora” pela busca de uma fuga do “gueto/eito” e o “ainda”, vivente dessa nova senzala, a favela.

No seu sexto livro autoral, Litanias de cão (2002), há o peritexto assinado por Ferreira Gullar, com quem Adão Ventura havia trocado cartas.7 De modo pouco crível se pensamos o posicionamento desse crítico em relação à questão étnica. Na apresentação há uma consideração interessante acerca da poesia de Adão Ventura, que coloca em plano uma função social, como “poesia-denúncia, de quem já não tolera a mentira e a farsa”, sendo diferente de uma expressão que “deseja mostrar [apenas] o lado encantador do real”. Ferreira Gullar afirma, ainda, que “essa revolta é tão verdadeira que chega a alterar a matéria de sua linguagem”; isso é importante porque não a coloca ao lado de textos panfletários, mas de textos com uma linguagem literária qualitativamente alterada pela visão que Adão Ventura mantém sobre o mundo que o cerca, e que o inseriria no rol de escritores cuja qualidade artística não se deu apenas pela temática, como Machado de Assis, Lima Barreto, Cruz e Sousa, Oliveira Silveira, Nei Lopes etc.

Este livro é composto por três partes, sendo que a primeira não possui subtítulo, a segunda intitula-se “Ars poética”, e a terceira, “Brasília: ou reflexões sobre o poder”. Da primeira parte, evidenciamos o poema “Limite” (2002, p. 11-12) que trata das limitações impostas à palavra: apodrecimento dentro de um sintagma de sílabas não legíveis, ou o silenciamento e mofo “num canto-cárcere” próprios da fadiga causada pelo trabalho cotidiano, ou o embaçamento da palavra quando tinta pela falsa devoção ditada pela hipocrisia, ou quando ela é apenas um subterfúgio que a prende em seu próprio ardil, ou quando ela é “furada” diante daquilo que a representa; limites de quando está “sem vestimenta, nua, desincorporada”, ou seja, fora da ação poética.

Da segunda parte do livro, “Ars poética”, destacamos o poema “Ultraje passeio completo”. Este possui uma epígrafe assinada pelo poeta do século XIX, Robert Graves, que diz “Ser poeta é uma condição. Não uma profissão”. Sendo a função mais canônica da epígrafe “um comentário do texto, cujo significado ela precisa ou ressalta” (GENETTE, 2009, p. 142), parece fazer aclarar o jogo paródico do título, em que o traje do burocrata, transforma-se em ultraje, para o artista. A gravata, parte dessa vestimenta serve como uma forca que bloqueia sua fala, estoura suas artérias do pescoço e o coloca em estado de sítio, ou seja, nessa suspensão de direitos e garantias individuais. Este poema aludido à experiência que Adão tivera, em Brasília, como presidente da Fundação Cultural Palmares,8 pode ser uma crítica ao exercício de direção dessa fundação em relação ao lapso temporal de sua produção, entre o livro anterior, datado de 1992 e este, de 2002.

Essa leitura, que está no plano da hipótese, toma corpo na terceira parte, intitulada “Brasília: ou reflexões sobre o poder”. De fato, essa sua experiência na capital do país é temática dessa parte do livro. Destacamos a poesia“Corrupção” (2002, p. 37), que atua no homem como um tumor maligno que carcome lentamente, de fora para dentro, de sua vestimenta até os ossos. Ou como em “Cena Brasiliense”, que metaforiza a cidade como um vestido que seduz pelos decotes, em cuja tessitura está a doença. Nesse poema, há o verso “uma gang de rua / chuta o por do sol”, que recupera um momento da cidade, em que os filhos de funcionários públicos, de classe média, sem ocupação mental, se juntam em diversas gangues, e culmina na cena de inquisição trabalhada em “Klu Klux Klan” (2002, p. 49), em que o índio Galdino, da tribo pataxó é incendiado vivo. Esta tônica da violência é também explorada em “Elegia de final de século”, que compara os massacres de civis da guerra dos países bálticos9 aos ocorridos no Brasil, como o de Carandiru, Candelária, Caruaru, Corumbiara, Eldorado dos Carajás e Franco da Rocha.

Segue-se a subparte “Duas vinhetas sobre uma viagem – África Austral”, que contém os poemas, “Luanda” e “Moçambique”, que tratam das guerrilhas ocorridas nesses países, ambos com uma independência recente, desde 1975, mas partido entre grupos políticos divergentes. Os dois últimos, “Far West” e “Visita de Desmond Tutu ao Brasil”, tratam de personalidades negras, heróis sul-africanos que lutaram contra o regime do Apartheid. O primeiro trata do “ato medieval”, da pena capital impingida a Benjamin Moloise, “conduzido à forca” (2002, p. 65); entretanto, há certo otimismo, haja vista que uma liberdade ainda que fraca surge dos “cueiros / do Terceiro Mundo”. O outro trata da visita do primeiro arcebispo negro sul-africano nomeado para essa função. Oriundo “de um país sombrio / onde a palavra DIREITO / é um mero espaço / entre um tiro e outro” (2002, p. 67), ou seja, a violação dos direitos humanos continuava a ser perpetrada pelas autoridades do regime racista sul-africano, mas a “voz forte” desse arcebispo ressoou em todo o canto, “no fundo das minas / rompe[u] montanhas / e oceanos em fúria”, em uma luta contra a segregação racial, reconhecimento por parte do mundo, que o agraciou com o Prêmio Nobel da Paz, em 1984.

Sobre os epitextos que comentam, criticam e analisam a obra de Adão Ventura, mas não circundam o espaço das obras, destacamos, primeiro o livro Poesia negra no modernismo brasileiro, de Benedita Gouveia Damasceno (1988), em que a pesquisadora faz um estudo da expressão poética negra brasileira em relação às propostas do movimento da Negritude, de escritores e intelectuais negros francófonos, estabelecendo os pontos de contato entre as proposições deste movimento e o modernismo brasileiro, como um momento de ruptura do domínio da cultura branca, atestando a existência de uma estética negra fundamentada para a reabilitação e valorização da cultura afro-brasileira. Neste estudo, Adão Ventura é apresentado como um dos novos autores afro-brasileiros, com uma expressão que analisa de modo “frio” e “cru” “os estereótipos e preconceitos atribuídos ao negro” (DAMASCENO, 1988, p. 117), por meio de “técnicas [...] poemas curtos, onde cada palavra guarda vários significados; aproveitamento estético de formas de expressão populares; processo enumerativo, fotográfico, deslocando as palavras para o eixo da metonímia e dando uma visão quase cubista ao quadro narrado”. (DAMASCENO, 1988, p. 117). Nesse trabalho, Adão Ventura é parte de um “paideuma” de novas expressões da poesia negra brasileira.

O segundo texto crítico foi escrito por Maria José Somerlate Barbosa (1997), artigo intitulado “Adão Ventura e o (con)texto afro-brasileiro”. Nele, é realizada uma leitura interessante em que sugere um caminho para os dois primeiros livros de Adão Ventura, prosas poéticas com “sobrecarga metafórica” de verve surrealista e simbólica, recuperando o contexto brasileiro do golpe militar e a perda da garantia das liberdades individuais, e o conjunto de circunstâncias de emergência das reivindicações raciais que, até então, tinham sido proibidas, no bojo das interdições sociais e políticas provocadas pela ditadura. Destacar esse contexto é revelar o caráter combativo e revoltoso das produções culturais e literárias em que as liberdades e garantias individuais foram suprimidas, mas não evitaram a continuidade das lutas dos grupos pelo “espaço histórico, social, ético e étnico do Brasil negro.” (BARBOSA, 1997, p. 2). Para ela, a linguagem “surrealista” sobrecarregada de metáforas dos primeiros livros são uma estratégia discursiva contra a censura que impelia os escritores e compositores a procurar o caminho oblíquo das metáforas e do simbolismo, como maneira de burlar a censura vigente e “de expressar um Brasil surrealisticamente caótico, vivendo as leis da “ordem e progresso” e da ‘segurança nacional’.” (BARBOSA, 1997, p. 2). Outra questão importante é a percepção de que os dois primeiros livros de Adão Ventura, de uma prosa poética hermética que não possuem como eixo central a raça e raízes africanas, mas que não se ausentam de realizar “denúncias das condições econômicas, políticas, sociais e raciais do Brasil.” (BARBOSA, 1997, p. 3).

Jussara Santos estudou, em sua dissertação de mestrado, a construção da identidade e da alteridade em três poetas: Edimilson de Almeida Pereira, Marcos A. Dias e Adão Ventura. Por meio de uma leitura de “libertação” do homem negro dos lugares fixos nos quais fora forçosamente alocado, da cor da pele e das cicatrizes “como mote para a efetivação da palavra” (SANTOS, 1998, p. 35), ela buscou poemas cuja temática é construída por um eu lírico “que-se-quer-negro” (BERND, 1988), buscando uma discursividade afro-brasileira. Tomando como ponto de partida as “constantes discursivas do texto [...] as marcas textuais – de conteúdo e de temas – e o trabalho com a linguagem, tomados como significantes da busca de identidade do negro brasileiro” (SANTOS, 1998, p. 12), Jussara trabalha, no capítulo, “corpo, cor e poesia”, dedicado à Adão Ventura os estereótipos e preconceitos, a partir dos livros A cor da pele (1980) e Texturaafro (1992).

Por sua vez, Édimo de Almeida Pereira, em sua dissertação, defendida em 2004, e editada pela Nandyala em 2010, interpretou a poesia de Ventura a partir da fragmentação, do descentramento do sujeito, próprios da pós-modernidade, “[...] uma das marcas do sujeito contemporâneo é buscar novos caminhos que o capacitem para a compreensão da realidade que o envolve” (PEREIRA, 2010, p. 10). Esta análise é mais sistemática e transversal, porque considera a obra completa de Adão Ventura, reconhecendo, nela, a riqueza dos aspectos temáticos e estéticos, ao que intitulou “outras vertentes”, outros caminhos, para além das questões étnico-raciais, “[mapeando] os questionamentos do poeta em relação a outros temas [...] como as relações de gênero, [...] a religiosidade, a memória, a cultura popular e a relação do homem com sua terra de origem”. (PEREIRA, 2010, p. 97).

Em análise da consciência da negritude, Maria do Rosário Alves Pereira (2004) afirma, em seu artigo “A consciência da negritude”, que a poesia de Adão Ventura contribui, por um posicionamento próprio, para a “consolidação de um sistema literário afrodescendente” (2004, p. 3). Neste artigo ela delineia três fases temáticas para a obra do poeta, cuja decomposição é importante para perceber não só a fase de assunção da cor, porque esta já tinha sido delineada em outros trabalhos, mas para reforçar os outros momentos da poética de Adão ventura, como, o trabalho em “uma perspectiva política e social referente não apenas ao negro, mas à problemática social brasileira num sentido mais amplo” (PEREIRA, 2004, p. 1), percebido em Litanias de cão (2002).

Diante do panorama crítico exposto, percebemos que essas produções são de extrema importância para a construção do conhecimento sobre o poeta e sua obra, tendo em vista que desenvolvem importantes questionamentos e abrem caminhos para novos trabalhos, que possibilitem prosseguir a análise da obra desse poeta, cuja trajetória partiu de uma prosa de linguagem surrealista, por vezes pouco legível, dos primeiros livros, passando por uma expressão da cultura popular das festas religiosas do Vale do Jequitinhonha, a consciência e assunção da negritude, até o trabalho mais político do seu último livro autoral.

Referências

BARBOSA, Maria José Somerlate. Adão Ventura e o (con)texto afro-brasileiro. Afro-Hispanic Review, Fall, volume 16, número 2, 1997. Disponível em: < http://www.letras.ufmg.br/literafro/verAutor.asp?id=16>. Acesso em: 10 nov. 2014.

DAMASCENO, Benedita Gouveia. Poesia negra no modernismo brasileiro. Campinas, SP: Pontes Editores, 1988. literafro. Portal de literatura afro-brasileira. Disponível em: < http://www.letras.ufmg.br/literafro>.

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MOLINA, Enrique. Entrevista sobre o Surrealismo na América Latina. Apud MARTINS, Floriano. O começo da busca: o surrealismo na poesia da América Latina. SP: Escrituras Editora, 2001. p. 18.

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PEREIRA, Édimo de Almeida. Metamorfoses do abutre: a diversidade como eixo na poética de Adão Ventura. Dissertação de Metrado. Universidade Federal de Juiz de Fora. Belo Horizonte, 2004.

PEREIRA, Maria do Rosário Alves. A consciência da negritude. In: literafro. Adão Ventura. Crítica. 2004. Disponível em: < http://www.letras.ufmg.br/literafro/verAutor.asp?id=16>. Acesso em: 10 nov. 2014.

SALLES, Fritz Teixeira de. Dianice Diamantina. Belo Horizonte : Editora Vega, 1980.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Comentário. In: VENTURA, Adão. As musculaturas do arco do triunfo. Belo Horizonte: Editora Comunicação, 1976. (Prosa poética).

SANTIAGO, Silviano. A cor da pele. In: VENTURA, Adão. A cor da pele. Belo Horizonte: Edição do Autor, 1980.

SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. 4. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976.

SANTOS, Jussara. Afrodicções: identidade e alteridade na construção poética de três escritores negros brasileiros. 1998. 119 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001.

VENTURA, Adão. Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul. Belo Horizonte: Ed. Oficina, 1969. (Prosa poética).

VENTURA, Adão. As musculaturas do arco do triunfo. Belo Horizonte: Editora Comunicação, 1976. (Prosa poética).

VENTURA, Adão. Jequitinhonha (poemas do vale). Belo Horizonte: Coordenadoria de Cultura do Estado de Minas Gerais, 1980. 2ª edição revista e ampliada. Belo Horizonte: Editora Mulheres Emergentes Edições Alternativas, 1997. (Poemas).

VENTURA, Adão. A cor da pele. Belo Horizonte: Edição do Autor, 1980. (Poemas).

VENTURA, Adão. Texturaafro. Belo Horizonte: Editora Lê, 1992. (Poemas).

VENTURA, Adão. Litanias de cão. Belo Horizonte: Edição do autor, 2002. (Poemas).

1 Elementos que estão às margens do texto original, e podem ser determinados pelo próprio autor tanto como pelo editor (GENETTE, 2009).

2 Peritexto é um elemento paratextual que circunda o texto dentro do espaço da obra, isto é, em continuidade em relação ao texto. (GENETTE, 2009, p. 10-11).

3 Epitexto é um elemento paratextual que tem, em relação ao texto, uma descontinuidade, ou seja, se encontra afastado do texto original. (GENETTE, 2009, p. 303).

4 Imaginamos que Fábio Lucas esteja se referindo ao projeto poético simbolista de Cruz e Sousa, e não sobre a questão que ainda vigora na crítica sousiana sobre sua indiferença em relação à causa abolicionista. Para isto, ver o texto em prosa “Emparedado”, em Evocações (1898); ou os Últimos inéditos: prosa & poesia. (Coordenação de Uelinton Farias Alves). Belo Horizonte: Nandyala, 2013 etc.

5 Nascido no distrito do Serro, em 11 de maio de 1822, foi professor, jurista, jornalista, historiador e político brasileiro. Dentre os trabalhos desse republicano constam o Projeto do Código Civil Brasileiro de 1882 e esta obra Memórias do Distrito Diamantino (1868; 4. ed.1976), em que é relatada pela primeira vez a história de Chica da Silva.

6 Fritz Teixeira de Salles publicou Geografia da Violência, em 1957, Vila Rica do Pilar, em 1965, Silva Alvarenga: Antologia e Crítica, em 1972, Literatura e Consciência Nacional, em 1973, Poesia e Protesto em Gregório de Matos, em 1975, entre outros.

7 Elas constam da lista de documentos pessoais de Adão Ventura, depositados no Acervo de Escritores Mineiros, instituição, pertencente à Faculdade de Letras da UFMG, que é responsável pela guarda, conservação e disponibilização desses documentos.

8 Conferir “Dados biográficos” do poeta. In: literafro. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/verAutor.asp?id=16>.

9 Conflito armado de fervor nacionalista, que representou a partilha da ex-Iuguslávia, entre os anos de 1992 e 1995, devido à crise política, social e de segurança após o término da Guerra Fria.

* Gustavo Tanus é graduado em Letras pela UFMG e professor da rede pública estadual de ensino de Minas Gerais.

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