A poesia satírica de Luiz Gama

 

Roberto de Oliveira Brandão *

 

Luiz Gama nasceu na cidade de Salvador (Bahia) no dia 21 de junho de 1830. Era filho natural de uma africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação), de nome Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Com essas informações começa o poeta sua autobiografia. É de se notar a objetividade com que vai descrevendo os fatos de sua vida, sua origem espúria, as vicissitudes por que passou. Tendo ele servido a vários senhores, fugiu, assentou praça, esteve preso por responder a um oficial que o havia insultado, foi escrivão, jornalista, amanuense demitido "a bem do serviço público" por participar do Partido Liberal e por, segundo suas próprias palavras, pela imprensa e pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas idéias; e promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, alforrias de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os Reis ¹.

Sentindo na própria carne a experiência da condição escrava e conhecendo não só as opiniões daqueles que, na época, defendiam a abolição, e as leis que foram sendo promulgadas nesse sentido, mas sobretudo a resistência que essas leis encontravam nos que possuíam escravos, e os artifícios com que eram burladas, Luiz Gama lutou, no plano prático, defendendo seus irmãos de cor, no plano emocional e poético, manifestando uma consciência aguda dos valores negros, bem como denunciando e satirizando, às vezes sarcasticamente, as mazelas dos brancos. Mas vejamos alguns aspectos de sua poesia, feita com a dupla experiência do sujeito que se vê entre dois universos culturais de cujos valores ele próprio participa, como a grande maioria da população brasileira.

A poética

A poesia de Luiz Gama tem seu centro de gravidade no eu, eu poético e eu humano, sincronizados, isto é, ele jamais se afasta do âmbito da primeira pessoa, fala sobre si mesmo ou de sua perspectiva e de sua própria poesia. Poderemos, naturalmente, deduzir de seus poemas uma poética geral, em termos de concepções sobre a poesia, sua função e natureza, mas essa estará sempre implícita e surgirá apenas da nossa análise, não será uma preocupação dominante sua. Aliás, o modo direto de dizer é próprio da sátira enquanto desnudamento social dos erros e defeitos do objeto criticado. É exatamente essa revelação da realidade interior, encoberta pela capa social, que compõe a matéria prima da poesia satírica.

Luiz Gama não esconde a própria origem, mais ainda, proclama aos quatro ventos sua negritude, e os valores a ela inerentes, é bem verdade que utilizando os moldes poéticos tradicionais: a invocação da musa inspiradora, a alusão à origem musical da poesia, sua função glorificadora, o desejo de superar os poetas do passado, a referência às

figuras mitológicas, Orfeu, Tritão, Cupido, e outros, ou aos poetas consagrados, Ariosto, Lamartine, Filinto Elísio, Camões,

chegando a tomar deste último versos inteiros ou adaptados a seus próprios poemas. Todos os conteúdos desses moldes, entretanto, pertencem ao mundo negro que, pelo descentramento que representam em relação aos temas e formas elevados da poesia tradicional, sobretudo épica, provocam uma queda brusca de tom e um embaralhamento dos componentes do gênero. O épico, representação dos grandes feitos, em linguagem elevada, é agora paródia interna de si mesma, processo que, ausente de ação criadora, levará ao pastiche e ao congelamento semântico e formal:

Ó Musa da Guiné, cor de azeviche,
Estátua de granito denegrido,
Ante quem o Leão se põe rendido,
Despido do furor de atroz braveza;
Empresta-me o cabaço d'urucungo,
Ensina-me a brandir tua marimba,
Inspira-me a ciência da candimba,
Às vias me conduz d'alta grandeza
Quero a glória abater de antigos vates,
Do tempo dos heróis armipotentes;
Os Homeros, Camões — aurifulgentes
Decantando os Barões da minha Pátria!
Quero gravar em lúcidas colunas
Obscuro poder da parvoíce,
E a fama levar da vil sandice
As longínquas regiões da velha Báctria!²

Observamos aí algumas antíteses reveladoras, embora certos termos estejam apenas pressupostos. Elas veiculam esquemas poéticos tradicionais preenchidos agora com outros conteúdos relativos a elementos da civilização e cultura negros. Colocados lado a lado de dois sistemas, teremos:

poesia negra poesia clássica
as musas gregas e romanas; musa da Guiné
a cor clara; cor de azeviche
mármore branco; granito denegrido
lira/flauta/trompa; cabaço d'urucungo/marimbra
forma épica/obj. épico; forma épica/objeto satírico

Naturalmente, o funcionamento paródico dessas estruturas só é possível devido à permanência, como pano de fundo, de parte de sua função e semantismo primitivos. Na verdade ele acreditava na validade das soluções poéticas tradicionais, como de resto nos valores abstratos da sociedade em que vivia, honra, pátria, virtude, inteligência, como ele mesmo declara mais de uma vez:

Faço versos, não sou vate,
Digo muito disparate,
Mas só rendo obediência
À virtude, à inteligência.

Imagem invertida

Os materiais e os agentes da poesia negra são moldados a partir dos modelos invertidos da poesia do universo branco. Se a musa é da Guiné, o poeta será "Orfeu de carapinha", se ele despreza a lira por (ser) mesquinha", empunhará a "marimba augusta", se a poesia tradicional utilizava a linguagem "sublime" grega ou romana, a de Luiz Gama utilizará o estilo "que presa a Líbia adusta". Por outro lado, se a épica tinha por objeto cantar os feitos das pessoas importantes, modelos de perfeição a serem imitados, a épica satírica — "ferrenhas palhetas" — de Luiz Gama busca os traços caricaturais com que pinta o outro lado da sociedade branca:

Com sabença profunda irei cantando
Altos feitos da gente luminosa,
Que a trapaça movendo portentosa
À mente assombra, e pasma à natureza!
Espertos eleitores de encomenda.
Deputados, Ministros, Senadores,
Galfarros Diplomatas — chuchadores,
De quem reza a cartilha da esperteza.
Caducas Tartarugas — desfrutáveis,
Velharrões tabaquentos — sem juízo,
Irrizórios fidalgos — de improviso,
Finórios traficantes — patriotas;
Espertos maganões de mão ligeira,
Emproados juizes de trapaça,
E outros que de honrados têm fumaça,
Mas que são refinados agiotas.

A essa crítica demolidora e generalizada nem o próprio poeta escapa. Ao contrário da imagem do negro que apenas sofre, e por isso merece compaixão, representada pêlos poetas brancos, vejam-se, por exemplo, os poemas sobre o escravo escritos por Castro Alves, Gonçalves Dias e outros, o poeta negro Luiz Gama reage dialeticamente ao contexto social em que está inserido, seja ambicionando os padrões valorizados, como fará Jorge de Lima em "Diabo Brasileiro", embora com maiores méritos estéticos, seja rejeitando-os pelo ridículo, como já havia feito Gregório de Matos no século XVII. À contenção hierática do cerimonial épico, herdada pela civilização branca, opõe-se a festa ritual e carnavalizada das tribos primitivas:

Nem eu próprio à festança escaparei;
Com foros de Africano fidalgote,
Montado num Barão com ar de zote
Ao rufo do tambor e dos zabumbas,
Ao som de mil aplausos retumbantes,
Entre os netos da Ginga, meus parentes,
Pulando de prazer e de contentes
Nas danças entrarei d'altas caiumbas.

As figuras do poeta e do homem Luiz Gama fundem-se numa só, misto de submissão e de rebeldia. O sentimento de marginalidade o acompanha em relação à impossibilidade de produzir o saber e o efeito estético dos grandes poetas tradicionais:

Vazias de saber, e de prosápia,
Não tratam de Ariosto ou Lamartine;
Nem rescendem as doces ambrosias
De Lamiras famoso ou Aritine,

Seja quanto à ausência das técnicas da poesia ou de um princípio ordenador. A visão que o poeta tem de sua própria obra é de algo que claudica, confuso, como um defeito físico por oposição à pessoa normal:

São ritmos de tarelo, atropeladas,
Sem metro, sem cadência e sem bitola
Que formam no papel um ziguezague,
Como os passos de rengo manquitola. 

Por vezes ele aparece como um "gauche" tímido diante da agressividade do mundo. Espaço físico e criativo lhe estão vedados. Seu mérito maior e exclusivo estará circunscrito à subversão da ordem natural das coisas. O poeta Luiz Gama constrói destruindo:

No meu cantinho,
Encolhidinho,
Mansinho e quedo,
Banindo o medo,
Do torpe mundo,
Tão furibundo,
Em fria prosa
Fastidiosa
O que estou vendo
Vou descrevendo.
Se de um quadrado
Fizer um ovo,
Nisso dou provas
De escritor novo.

O mundo e a sociedade

Ao assumir uma postura poética e humana, acima aludida, a poesia de Luiz Gama projeta a imagem do mundo e da sociedade em que vive e com que interage. Sua visão corrói e deforma coisas e pessoas. Tudo que sua pena toca transforma-se em caricatura do mundo oficial, sejam os objetos, as pessoas, as situações. Esse trabalho de metamorfose é realizado pela linguagem que vai desdobrando-se indefinidamente. Os registros comuns das coisas são substituí dos por suas versões populares, saturados de adjetivos que depreciam seu sentido ou se repetem em descrições que as deformam, física e moralmente. Desse modo, cabeça será "bestunto", "cachola"; nariz, "batata"; óculos, "vítrea cangalha"; uma flauta, "canudinho", etc. Os tipos humanos que povoam sua poesia aparecem pedantes, espertos, ambiciosos, trapaceiros, enganadores que querem levar vantagem em tudo, parecer o que não são, iludir e falsear. Um velho namorado recebe toda uma constelação de qualificativos: fafante, pedante, demente, mimoso ratão, patola, gorducho, roliço, porco, cabeça de coco, punga, asno, basbaque, lorpa, gebas. Outro, um janota, será adamado, passinhos de Ninfa, pisar delicado, velho farçola, figura antitética de Adónis e Morcego ou de Cupido e Macaco. Mas são também freqüentes os tipos que designam funções ou títulos da organização institucional. Já vimos alguns deles: deputados, ministros, senadores, diplomatas, barões, fidalgos, etc. Não escapam ainda à pinça satírica de Luiz Gama os que, desejosos de ascender socialmente, procuram esconder sua origem étnica africana:

Se os nobres desta terra, empanturrados,
Em Guiné têm parentes enterrados;
E, cedendo à prosápia, ou duros vícios,
Esquecem os negrinhas seus patrícios;
Se mulatos de cor esbranquiçada,
Já se julgam de origem refinada,
E, curvos à mania que os domina,
Desprezam a vovó que é preta mina:
Não te espantes, ó Leitor, da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade!

Este refrão, que funciona como uma espécie de síntese interpretativa da nossa formação, faz lembrar, antes de Luiz Gama, do primeiro grande crítico social brasileiro, Gregório de Matos, que em uma de suas sátiras repete à cada estrofe: "milagres do Brasil são"i e, depois dele, o carioca Noel Rosa, ferino como seus predecessores e, como aqueles, especialista em desvelar as diferenças sociais sob a perspectiva dos oprimidos. Numa de suas canções o poeta da Vila repete: "São nossas coisas / São coisas nossas"

Da denúncia à utopia

A poesia de Luiz Gama não é feita apenas de sátiras e caricaturas, embora elas constituam a maior parte de sua produção. Convivem com essas duas outras atitudes, as compostas pelas manifestações de humildade e modéstia, sobretudo em relação as próprias possibilidades poéticas, e, por outro lado, as denúncias, que revelam aspectos concretos do modo de discriminação social a que o homem negro estava submetido.

Em relação à primeira, precisamos novamente aqui lembrar a identificação entre o poeta e o homem Luiz Gama. Ele reconhece suas limitações poéticas, colocando-se do outro lado da poética tradicional, representada pêlos grandes poetas do passado, todos brancos:

Se queres, meu amigo,
No teu álbum pensamento
Ornado de frases finas,
Ditadas pelo talento;
Não contes comigo,
Que sou pobretão:
Em coisas mimosas
Sou mesmo um ratão.

Eu pego na pena,
Escrevo o que sinto;
Seguindo a doutrina
Do grande Filinto.

Por outro lado, ele sabe que sua verve satírica representava um ruptura ao pacto social, como a lembrar o ditado latino que mandava ao sapateiro não ir além das sandálias, isto é, cada um deve ficar na sua condição profissional e social. A opressão mais eficiente é sempre aquela em que o oprimido introjeta os valores invertidos do opressor.

Que estou a dizer?!
Bradar contra o vício!
Cortar nos costumes!
Luiz, outro ofício.

Não lutes com isso,
Trabalhas em vão;
E podes tocar
N'algum paspalhão.

Vai lá para a tenda
Pegar na sovela,
Coser teus sapatos
Com linha amarela.

Aqui se explicita a segunda postura, isto é, a visão que o poeta tem do lugar ocupado por ele na sociedade branca, sociedade branca,sociedade hierarquizada onde a cor branca, o dinheiro, a nobreza, as ciências e ocupam os primeiros lugares:

Mordendo na sola,
Empunha o martelo,
Não queiras, com brancos.
Meter-se a tarelo.

Que o branco é mordaz
Tem sangue azulado:
Se boles com ele,
Estás embirado.

Não borres em livro,
Tão belo e tão fino;
Não sejas pateta,
Sandeu e mofino.

Ciências e letras
Não são para ti:
Pretinha da Costa
Não é gente aqui.

E tais ponderações, ele resolve calar-se, assumindo, pela autocrítica, a expectativa que seu "superior" e parceiro social tem dele:

Ouvindo o conselho
Da minha razão,
Calei o impulso
Do meu coração.
Não quero que digam
Que sou atrevido;
E que na ciência
Sou intrometido.

E, completando esse percurso, surge a imagem utópica onde as carências e os desejos serão satisfeitos. Então, nesse tempo e lugar o ser, agora degradado, recuperará a dignidade perdida através do reencontro com seu nome primitivo, resgatando desse modo, ao mesmo tempo, o homem e o poeta:

Quando lá, no horizonte,
Despontar a Liberdade;
Rompendo as férreas algemas
E proclamando a igualdade;

Do chocho bestunto
Cabeça farei;
Mimosas cantigas
Então te darei.

 

(In Boletim bibliográfico Biblioteca Mário de Andrade. V. 49, n. 1/4, jan./dez.)

Notas

1. "Autobiografia". In: GAMA, Luiz. Trovas burlescas & escritos em prosa. Texto organizado por Fernando Góes. São Paulo, Edições Cultura, 1944.

2. O.C., pg. 20. Na edição utilizada está '"À longínquas..."

3. O.C., pg. 18 e 97.

4. AO PADRE LOURENÇO RIBEIRO HOMEM PARDO QUE FOI VIGÁRIO DA FREGUESIA PASSE. IN: Wisnik, José Miguel. Poemas escolhidos. São Paulo, Cultrix, 1976. p. 45.

5. NOEL ROSA. São coisas nossas. In: Noel Rosa na voz de Araci de Almeida. Disco Continental n"? 20.018, 1967.

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* Roberto de Oliveira Brandão Professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo.

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