Luiz Gama o Revolucionário da Abolição

 

Gil Francisco1

Desde criança que ouço histórias sobre Luis Gama, contadas por vó Nêna, arrendatária dos solares de nº77 (onde nasci no terceiro piso) na Rua J.J. Seabra, enfrente à Praça dos Veteranos e do Gravatá nº5 ou solar Oliveira Mendes em Salvador. O quintal do velho casarão dava para Rua do Bângala (hoje Rua Luís Gama), onde ficava a antiga residência de Luiza Mahim, casa em que nasceu o poeta Luís Gama. Do solar do Gravatá Luiza Mahim, rainha e líder do movimento Malês (1835), exerceu o comando revolucionário no quartel principal da luta, distribuindo aos limanos que dirigiam mesquitas as ordens e instruções oriundas do Poder Central. Luiza disfarçada de quituteira, vendendo bolinhos, rapadura com coco, pé-de-moleque, cocada-puxa, bolacha-de-macaco, dendê cozido, etc., despachava as mensagens, escritas em árabe, empregando rapazolas na idade de 15 a 19 anos, que simulavam comprar, levando as iguarias, que comiam no caminho.

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A introdução do regime de trabalho escravo nas áreas coloniais oriundas da expansão ultramarina foi problema específico da fase histórica conhecida como revolução comercial, quando se tornou necessário colonizar. Isto é criar toda uma estrutura de produção em terras distantes, destinadas a complementar aquela que vigorava na Europa, seja nas áreas metropolitanas ou em áreas que com elas faziam a troca de mercadorias. Com as comemorações do primeiro centenário da Abolição (realizada em 1988) que constitui a grande revolução social na história do Brasil, a sociedade brasileira fez uma reflexão a nível nacional sobre a importância e as decorrências de IV séculos de passado escravista.

Sua trajetória da África até aqui sempre marcada por diversas formas de violência e por fim foram jogados à liberdade com a abolição. Apesar dos esforços duma grande parcela dos movimentos negros brasileiros, ainda existe uma conspiração de silêncio em torno da primeira centúria da Lei Áurea. Festejado esse acontecimento que tem caráter revolucionário e resgatar a importância da superação da ordem negreira e a participação dos cativos, ou o verdadeiro esforço das massas populares nacionais para alcançar direitos elementares de cidadania e o significado do trânsito do escravismo ao pós-escravismo.

Esse ilustre brasileiro um dos líderes da campanha abolicionista é um dos incontestes apóstolos da campanha emancipadora dos escravos e sua vida é um exemplo eloqüente de dedicação à causa da liberdade dos irmãos de cor. Traçando-lhe a biografia tormentosa, O Precursor do Abolicionismo no Brasil (Luís Gama), 1939, o escritor paulista Sud Menucci (1892-1942), mostra um dos aspectos mais terríveis do regime de trabalho e estuda o desenvolvimento da campanha pela libertação da escravatura em nosso país.

O drama pessoal que se refletira em toda a sua existência foi superado graça a sua honestidade, inteligência e perseverança, libertam-se Luís Gama, conseguindo fazer bons estudos de humanidades, tornando-se um hábil advogado. E logo aparece nos jornais, Tribuna do Júri e nos comícios vibrando de entusiasmo pela causa abolicionista, a voz amiga e protetora que não se fazia esperar, era a salvaguarda dos escravos cativos.

Orador influente, perito jornalista e poeta, Luís Gonzaga Pinto da Gama nasceu a 21 de junho de 1830 em Salvador, no Largo da Palma, freguesia de Santana, era quase negro, mas não tinha rancor de sua raça, pelo contrário: foi seu constante defensor. Filho da africana livre da Costa da Mina (nagô), Luiza Mahim (líder da revolta Malês – Bahia, 1835), com um fidalgo rico baiano jamais identificado, sabe-se apenas que fez parte do movimento revolucionário de 1837, conhecido pelo nome de Sabinada.

Corrompido pelos prazeres e vícios, dez anos depois seu pai o levou para um passeio ao cais do porto e ao chegar, vendeu-o como escravo a bordo do navio Saraiva, preste a partir para o Rio de Janeiro. Na corte, Luís Gama foi juntamente com outros escravos para a casa do negociante português Vieira, estabelecido com lojas de velas à Rua da Candelária esquina da Rua do Sabão, sendo carinhosamente tratado por todas as pessoas da família, às quais se afeiçoou. Mas esta sorte durou pouco, pois neste mesmo ano fora vendido ao traficante alferes Antonio Cardoso, num lote de mais de cem e transportados para Santos, onde seriam expostos à venda. Considerado refugo por ser escravo baiano foi recusado por vários senhores, retornando ele para casa de Cardoso, onde aprendeu a servir de copeiro, a lavar, engomar, coser e ofício de sapateiro.

Em 1847 o alferes recebe em sua casa como hóspede Antônio Rodrigues de Araújo, que viera a São Paulo estudar humanidades, com quem Luís Gama faz amizade e apreende a ler escrever e contar. Tendo conquistado a liberdade aos 17 anos, de posse desses elementos, no ano seguinte Luís foge da casa de Cardoso e vai assentar praça. Impedido de matricular-se na Faculdade de Direito, iniciou uma vida de luta e sacrifícios, toda ela consagrada aos estudos e à liberdade dos escravos, aprofundando-se no direito.

Embora não fosse formado, os seus conhecimentos de jurisprudência, a firmeza dos seus arrazoados e a facilidade com que destruía os argumentos de terceiros, tornaram-no um advogado temido e respeitado pelos contra opositores. Graças à carta de advogado provisionado, Luís Gama tornar-se defensor da causa dos escravos e funda o Centro abolicionista e o Partido Republicano. Fui durante a vida militar que conheceu o juiz Furtado de Mendonça de quem foi ordenança e daí vem o ensejo de dedicar-se aos mistérios de rábula e de tipógrafo. Esses conhecimentos, através dos quais tomava cotidianamente ciência dos acontecimentos, deram-lhe consciência real da situação em que viviam os escravos brasileiros.

Na década de 60 é que se abrem então as ideias abolicionistas, avoluma-se, alastra o país inteiro, fundam-se sociedades libertadoras, cria-se o costume de festejar as grandes datas nacionais e familiares alforriando escravos, e em 1861 Tavares Bastos rebate desusado ao secular problema. Entre os liberais a propaganda doutrinária espalhava-se por todos os lados, mas o espírito prático que teve a intuição pronta e real da questão foi Luís Gama. Fazendo parte da redação de diversos jornais abolicionistas, Luís Gama prontamente se tornou conhecido pela verve e pelo entusiasmo com que se batia pelos ideais que abraçara, conseguiu obter a libertação de mais de 500 escravos. Desta época data sua fama; era um dos oradores do Clube Radical Paulistano e um dos redatores do seu órgão, o Radical Paulistano. Por defender suas convicções acima de tudo, sofreu vexames e humilhações que lhe trouxeram duras penas materiais como a perda do cargo de amanuense em 1865 na Secretaria de Polícia, por causa das idéias avançadas e da propaganda.

A partir de 1870, tanto em São Paulo como nas demais regiões de grande lavoura, os senhores de escravos resistem à atividade da propaganda libertadora, reagindo à ação de homens de vulto como o jornalista Américo de Campos e Luís Gama, o animador mais ativo do movimento. Gama defendia na justiça a causa dos africanos ilegalmente escravizados e sua luta emancipadora, contudo era limitado pelos recursos que o meio social lhe oferecia. Pois mantinha um escritório situado em uma travessa da antiga Praça da Sé, que era uma verdadeira fortaleza de defesa dos escravos, onde promovia libertação dos mesmos: atacava os senhores escravocratas que se excediam nos castigos e uma série de agitações, para libertar a carga maldita dos navios que conseguiam ludibriar o policiamento inglês dos mares e chegar ao Brasil.

Esse poeta brilhante autor de um único livro Primeiras Trovas Burlescas Getulino, (1859), 2ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro, 1861, não pertence especialmente à história literária a narrativa das lutas em que esteve envolvido durante trinta anos contra a escravidão no Brasil. As teimosias que outros toleram com paciência e compreensão fustigava-se em versos demasiados picantes e por isso muitos não puderam ser publicados durante sua vida. Pois estimadíssimo pelos afeiçoados, a maledicência cultivada nunca aprendeu arte de lisonja nem tão pouco a prudência prática do silêncio. Luís Gama é sem dúvida o único poeta satírico contundente do século XIX no Brasil.

A publicação das Primeiras Trovas alcançou mais de três edições, foi mais criticada do que aplaudida. No prefácio à 3ª edição (1904), Coelho Neto escreveu que o verso de Luís Gama “se não prima pela beleza de forma, se não cintila em lavores de arte, se a rima, por vezes, é paupérrima, é livre como a flecha, silva, vai direto ao alvo, crava-se e fica vibrando”. O prefácio foi reproduzido nas obras completas do autor que Fernando Góes compilou, sobre o título Trovas Burlescas & Escritos em Prosa (1944). Na Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Romântica, 3ª Ed. (1949), Manuel Bandeira considera as Primeiras Trovas como ”a melhor sátira da poesia brasileira”. No poema Quem Sou Eu?, que tornou-se popular sob o título A Bodarrada, elaborado em 138 versos satíricos, Gama brinca com as diversas acepções populares da palavra “bode”. Na gíria brasileira, bode é mestiço, mulato. É também individuo libidinoso, satírico. Além disso, o bode “berra”, perturba o sossego – exatamente o que o autor pretendia fazer com seu poema.

Apesar de possui uma produção literária restrita, a vida de Luís Gama corresponde mais ou menos ao período em que floresceu o romantismo literário no Brasil. No entanto continua excluído desta fase em muitos compêndios da literatura brasileira. Influenciado por Gregório de Mattos (1633-1696), Gama zombou nas suas trovas dos ridículos provincianos, sobretudo das pretensões de pureza de sangue dos barões escravocratas. Como um dos fundadores da imprensa humorística em São Paulo, dirigiu pequenos jornais: O Diabo Coxo; O Cabrião e O Polichinelo, onde divulgou seus versos satíricos, que reunira mais tarde em volume.

A 24 de agosto de 1882 o movimento abolicionista sofreu uma derrota. Morre Luís Gama aos 52 anos em São Paulo, sem ter tido a aventura de ver realizada à sua suprema aspiração, deixando sem chefe a causa libertadora, mas não por muito tempo. O pobre Luís Gama teve um enterro impressionante e a imprensa registra o fato dizendo que jamais se vira mais imponente e espontânea manifestação de dor e de saudade.

A própria cerimônia do seu enterro narrado pelo escritor Raul Pompéia (1863-1895), indica o que vai acontecer:

Na necrópole da Consolação, já aos primeiros raios da lua, comprimia-se uma multidão imensa na qual se misturavam confundidos e irmanados na mesma dor todos os elementos da população, desde pobres escravos e libertos até os mais graduados representantes do mundo social. Na profunda tristeza daquela massa humana, onde muitos soluçavam naquele lugar, àquela hora, tinha-se a trágica impressão de qualquer coisa de encerrado e atrozmente irreparável. Mas um homem aproximou-se mais e, apontando num gesto largo a cova ainda aberta, propõe em voz solene e clara que se jurasse sobre aquele féretro não deixar de modo algum morrer a grande idéia à qual votara o gigante toda a sua vida. Um brado surdo, imponente e vasto, levantou-se no cemitério. As mãos estenderam-se abertas para o cadáver... A multidão jurou... Começava o tenaz trabalho de Antônio Bento de Souza e Castro (1843-1898), que parecia destinado a erguer o facho caído das mãos de Luís Gama e dar à luta abolicionista um novo caráter, abertamente revolucionário.

 

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Quem Sou Eu ? - Luiz Gama

(fragmento)

Amo o pobre, deixo o rico.
Vivo como o Tico-tico:
Não me envolvo em torvellinho.
Vivo só no meu cantinho:
Da grandeza sempre monge.
Tenho mui poucos amigos.
Porém bons, que são antigos.
Fujo sempre à hipocrisia.
À sandice, à fidalguia:
Das manadas de Barões?
Anjo Bento, antes trovões.
Faço versos, não sou vate.
Digo muito disparate.
Mas só rendo obediência
À virtude, à inteligência:
Eis aqui o Getulino
Que no plectro anda mofino.
Sei que é louco e que é pateta
Quem se mete a ser poeta:
Que no século das luzes.
Os birbantes mais lapuzes
Compram negros e comendas.
Tem brasões, não – das Calendas
E com tretas e com furtos
Vão subindo a passos curtos:
Fazem grossa pepineira.
Só pela arte do Vieira.
E com jeito e proteções.
Galgam altas posições!
Mas eu sempre vigiando
Nessa súcia vou malhando
De tratantes, bem ou mal.
Com semblante festival.
Dou de rijo no pedante
De pílulas fabricante.
Que blasona arte divina.
Com sulfatos de quinina.
Trabuzanas, xaropadas.
E mil outras patacoadas:
Que sem pinga de rubor.
Diz a todos, que é Doutor!
Não tolero o magistrado.
Que do brio descuidado.
Vende a lei, trai a justiça
– Faz a todos injustiça –
Com rigor deprime o pobre.
Presta abrigo ao rico, ao nobre.
E só acha horrendo crime
No mendigo, que deprime.
- Neste dou com dupla força.
Té que a manha perca ou torça
Fujo às léguas do lojista.
Do beato e do sacristã –
Crocodilos disfarçados.
Que se fazem muito honrados.
Mas que, tendo ocasião.
São mais feros que o Leão.
Fujo ao cego lisonjeiro.
Que, qual ramo de salgueiro.
Maleável, sem firmeza.
Vive à lei da natureza:
Que, conforme sopra o vento.
Dá mil voltas num momento.
O que sou, e como penso.
Aqui vai com todo o senso.
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfunados.
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1 Gil Francisco Santos é Jornalista, professor da Faculdade São Luís de França e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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