História e ficção em A Noite dos Cristais

 

Maria do Rosário Alves Pereira*

 

Com seu livro, A Noite dos Cristais, em cuja trama se misturam história e ficção, Luís Carlos Santana consegue arrancar pareceres elogiosos, tais como o proferido por Oswaldo de Camargo que classifica a novela como “um excelente texto de ficção que, além de prender o leitor, ensina, instrui e dá testemunho de um fato histórico como a Revolta dos Malês.” (SANTANA:1999).

A novela conta a história de Gonçalo, um negro que, após viver em liberdade com seus pais durante um tempo na cidade de Salvador, no século XIX, vê-se cativo devido a um incidente vivenciado pelo pai: após uma denúncia, a casa é revistada e encontram em algumas folhas de papel esboços de caligrafia árabe, indício de que ali viviam malês. O menino Gonçalo, certa vez, havia pedido ao pai que lhe ensinasse o idioma. A rotina tranqüila vivida pela família é, então, subitamente rompida, pois ele é acusado de estar envolvido na Revolta dos Malês e, junto com a mulher, é deportado para a África. Havia sido confundido com muçulmanos, e estes foram considerados “perigosos à tranqüilidade pública” (SANTANA, p. 94). O menino é vendido como escravo e levado para Pernambuco. Pela primeira vez em sua vida, sente o drama das crueldades impostas pela escravidão. Após algumas tentativas frustradas de fuga, finalmente consegue escapar e, livre, vai para a Guiana Francesa, território de onde, já velho, narra suas histórias.

Nessa narração ganham destaque cenas descritivas do processo de escravatura, como negros sendo açoitados em praça pública: “o sacrificado tinha a bunda em tiras. A cada novo golpe que vibrava... tlá... tlá... tlá... urrava e se mijava todo” (SANTANA, p. 42). Essas cenas compõem diversos quadros ao longo do livro, em uma prática intertextual que propicia um entrecruzamento entre ficção e realidade histórica. Além disso, o episódio da Revolta dos Malês, em 1835, é destacado não apenas por ser o desencadeador de uma mudança profunda na vida do protagonista, em um nível meramente narrativo, mas também por ser um episódio histórico singular: os malês não lograram sua liberdade em território brasileiro, no entanto foram devolvidos à África. Sua insubordinação reconduziu-os a seu lugar de origem, pois os senhores de escravos tinham medo de um novo levante.

Paralelamente a essa narrativa, há uma outra em que um narrador negro, também em primeira pessoa, encontra um manuscrito com anotações de um escravo do século XIX de nome Gonçalo, na Guiana Francesa, dando a entender que se tratava dos relatos referentes à personagem da primeira narrativa. Note-se que esse recurso do manuscrito dá um tom de testemunho histórico ao texto e já foi utilizado por muitos escritores ao longo da tradição ocidental.

Ao encontrar esse manuscrito por acaso, em uma pensão, o narrador dessa história também enfrentará o preconceito: apaixona-se por uma mulher branca e o pai dela, político renomado, o deporta para o Brasil, afinal “o negro deveria conhecer o seu lugar”. Além do mais, o pai desconfia que o papel em poder da personagem tenha um teor subversivo, e por isso o retém para si. O autor parece querer mostrar, dessa forma, que a discriminação não acabou, pelo contrário, ainda perdura e assume novas formas.

A obra foi escrita e premiada em 1995, ainda que o livro só tenha sido publicado em 1999. Como grande parte dos escritores afro descendentes, enfrentou problemas editoriais, pois a circulação desse tipo de literatura ainda é restrita e desconhecida do público em geral. Por isso, após muito trabalho, a edição profissional teve grande relevância para o autor e o livro reflete, sem dúvida, uma das facetas mais significativas da história dos negros: a escravidão. “Que a leitura desse magnífico livro do Prof. Luís Santana possa ser um clamor pela nossa indignação, uma denúncia a um crime de lesa-humanidade que jamais poderá ser esquecido, crime do qual todos compactuamos sempre que cruzamos os braços aos apelos que vêm dos pobres e dos despossuídos, dos marginalizados, pretos e brancos de todo o mundo, sempre que pomos na frente da justiça nossos interesses materialistas, sempre que deixamos de ver no rosto do bóia-fria, do menino de rua e do excluído a face sofredora de Deus...” (Navarro: 1999)

Sendo assim, nota-se que Luís Fulano de Tal participa da “árvore genealógica” da literatura afro descendente, pois sua obra se articula em termos de temática e ponto de vista interno com a dos demais escritores que seguem essa veia literária. Seu texto literário faz-se relevante, portanto, na recuperação de uma escritura relegada historicamente a um segundo plano, ou seja, a dos negros.

 

Referências

NAVARRO, Eduardo de Almeida. Nossa mãe África (prefácio). In DE TAL, Fulano. A noite dos cristais. São Paulo: Editora 34, 2001. Biblioteca Mário de Andrade.

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*Mestre em Letras pela UFMG

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