Lande Onawale e a poética afro-brasileira:

intersecções história e sociedade

Luiz Henrique Silva de Oliveira*

A escrita de Lande Onawale enfoca sobretudo as questões histórica e social. O engajamento do sujeito empírico é refletido em sua concisa produção literária. A memória afro-brasileira também é tema constante, sobretudo quando relê o processo de desculturação pelo qual o negro passou durante séculos e séculos. Os textos, então, visam (re)construir a identidade de todo um povo que merece vez e voz.

Lande perpassa os universos da poesia e da prosa. Nota-se que a produção do autor é mais volumosa no verso, que é sua preferência, uma vez que a estrutura menos rígida aponta para uma fluidez maior no ato de escrever. Em “Canarinhas da vila”, o enunciador mostra-se impotente diante do extermínio histórico que incidira sobre o negro – haja vista as “três jovens assassinadas lado a lado” (cf. Cadernos Negros 21, p. 86). O texto indica que os afro-descendentes foram e continuam sendo objeto de perseguição e alvo de “morte”: as perspectivas de ascensão social, e tudo o que dela advém, continuam a figurar como quimeras para a maioria. A liberdade “assistida” não foi capaz de deixar viver a igualdade entre as etnias brasileiras. A Lei – porque, segundo o poema, a serviço do branco – parece não poder combater um pernicioso processo discriminatório: “o que pode a letra morta da lei, da constituição/ contra esse costume brasileiro/ de matar negros como moscas?” (p. 86). Engajado, o eu poético arma-se da literatura como forma de ataque: “ergo meu poema como um não (...)/ nesta vida de África sequestrada” (p. 87). Recuperar, via discurso, a vida sequestrada é recuperar a memória de toda uma etnia que sucumbe devido ao mal disfarçado racismo existente no Brasil.

O resgate da memória da África surge em “Capoeira Angola” (cf. Cadernos Negros 21, p. 80). A dança luta — “a chama sagrada da vela/ tão velha como oração” — é representada no texto via aliteração. Nota-se a repetição sequencial da bilabial desvozeada “p”: “Capoeira Angola sempre/ pão pro corpo/ pão pra alma/ pão pra mente” (p. 81). Tal recurso estilístico permite ao trecho representar a ginga do capoeirista quando embalado pelo berimbau. Além disso, o quilombola, por meio da capoeira, resiste a anos de perseguição, chegando a vencer até a “doença colonial”: “Capoeira Angola faz do banzo só saudade” (p.81). Ainda, a capoeira manteve ligação com o passado africano e ajudou o descendente de escravos a “encarar a roda-vida todo dia” (p.81). Não obstante, celebrou, ilustrou e acompanhou a trajetória da diáspora africana pelo mundo. “Desde África essa força nos anima/ cobrindo de alegria e de dor/ cumprindo a volta por cima” (p.80).

Recuperar essa trajetória implica retornar aos símbolos maiores da resistência negra: os quilombos. Estes são, para o poeta, “certeza flecha/ seta, reta/ direção de liberdade/ nossa razão concreta/ terra preta/ longe de muita opressão”. (cf. Cadernos Negros 21: 1998, 84). Verdadeiras unidades políticas implantadas em plenas matas, os quilombos resistiram e entraram para a História. Palmares, por exemplo, simbolizou a liberdade em forma de organização e auto afirmação; e Zumbi, indubitavelmente, é a maior personalidade advinda dessa luta emblemática, sonho de liberdade que manteve o escravo vivo: “quilombo é o sol que se avista/ um sonho acordado, um ponto de vista”(p.84). Longe das mãos do senhor, o foragido via ali a única possibilidade de atenuar a sorte tão cruel. O quilombo, em última instância, é a África revivida na diáspora; é combate contra a aculturação: “nunca dissemos ‘não’/ ‘adeus’ à África em nossas mentes/ e de memórias frescas replantamos suas lições”. (p. 84) Lições de como viver em comunidade e de como fazer jus à classificação taxonômica “sapiens”.

Já em “Coração suburbano” (cf. Cadernos Negros 21: 1998, 78), o eu poético continua sua infindável busca. As várias facetas da cidade perpassam o imaginário do locutor, tendendo, entretanto, sempre a aquietar-se quando sintonizado momentaneamente no espaço suburbano. Ainda, o urbano não pode perder um fragmento (que seja!) de provinciano: “meu coração de subúrbio/ quer o plus metropolitano/ sem os adereços violentos/ que lhe tirem o ar provinciano/ sem aquelas coisas mais (demais)” (p. 78). O coração aqui parece tratar a cidade como uma alternativa, isto é, como opção e como movimento pendular. “Meu coração suburbano/ gosta das luzes da cidade/ dessa possibilidade...” (p. 79).

Publicado em 2004, o conto “A bailarina” (In Feliberto, 2004) retrata a condição secundária do negro brasileiro. Todos na sala esperando a “estreia do comercial (...) no horário nobre” (p. 35). Todos eufóricos e entusiasmados aguardando a bailarina negra entrar em cena. A construção do preconceito principia-se quando uma das figurantes da propaganda, “a de perfil mais próprio, mais nórdico” (p. 35) mostra o copinho do produto anunciado: um iogurte. Sorrisos e produto tomavam conta da tela. O “plim-plim” da TV foi o chamado para os mais diversos espectadores que largaram seus afazeres para assistir ao comercial. Entretanto, um “cadê ela? Cadê ela?” (p.36) tomou conta dos que assistiam a tudo na casa da artista. Aquele momento seria o ponto culminante na carreira da bailarina da periferia: “para todos os 30 segundos foram eternos”. Entretanto, o produto anunciado ganha mais valor que o ser humano e este é apagado da cena – ainda mais quando não reproduz o ideal branco e etnocêntrico de beleza:

Quando o balé iniciou os movimentos finais, a bailarina inclinou-se instintivamente para a TV. Na tela, no canto superior direito, uma tarja branca com o nome do produto apareceu e foi escorregando em diagonal (p. 36).

O minuto de fama concedido à personagem negra parece confirmar-se via preconceito. O rosto da bailarina fora necessário deixar de fora da tela para dar lugar ao produto (do) branco. “Foi entrando... entrando... e parou, escondendo ao fundo seu rosto negro tão bonito” (p. 36). Ressalte-se, ainda, a face escondida ao fundo: negro não pode aparecer na tela por quê? O ideal branco de beleza ficaria sucumbido? O preconceito filmou mais forte? De qualquer forma, Lande Onawale conseguiu transmitir sua mensagem. Sua literatura, como se vê, não é apenas um projeto estético.

Referências

FELIBERTO, Fernanda (Org.) Terra de palavras: contos. Rio de Janeiro: Pallas / Afirma, 2004.

RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio; FÁTIMA, Sônia (Org.). Cadernos Negros 21: poemas afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 1998.p. 78-87.

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* Luiz Henrique Silva de Oliveira é Mestre e Doutor em Letras, Estudos Literários, pela UFMG, onde também cumpriu Estágio Pós-doutoral. É professor do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens, da Graduação em Letras, Tecnologias de Edição, e do Ensino Médio do CEFET-MG. Coordena o GIECE – Grupo Interdisciplinar de Estudos do Campo Editorial. Integra o NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e o Comitê Gestor do Portal literafro, da FALE-UFMG. É autor de Poéticas negras – representações do negro em Castro Alves e Cuti (2010) e de Negrismo: percursos e configurações em romances brasileiros do século XX (1928-1984).

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