A espada e a flor – prefácio a O vento

Florentina Souza*

 

Lande Onawale apresenta-nos seu primeiro livro, O vento. Poemas que, como brisas, entre tons e sons diversos nos mostram algumas das facetas das suas preocupações poéticas. Evidenciam, por um lado, a intenção de definir as estratégias e os recursos usados para a composição da poesia, por outro, o desejo de fazer de seus textos simultaneamente canto e espada.

No campo das reflexões sobre o ato da escrita, os textos investigam "modos de fazer" e parecem demonstrar a ansiedade do poeta por descobrir formas de composição poética. Ensaia sonetos, dois, "como quem procura uma medida", talvez acreditando que investir pelo campo da forma fixa, "o metro, a rima, o ritmo, enfim”, constitua uma passagem obrigatória. Se aventura em "um soneto comportado", o que predomina, no entanto, é a chama da vontade, uma vontade de, contrariando o que possa sugerir o título do livro, não passar como a leve brisa, mas de inscrever-se em uma tradição de literatura empenhada também em alterar rotas e sugerir vias alternativas. Entender os móveis e dificuldades da produção da escrita tem sido um tema reiteradamente utilizado pelos poetas de várias épocas... Como escrever? Como seus textos serão recebidos, como conciliar a vontade e a inspiração? Como conciliar as emoções e as razões que impulsionam a criação? Tais questionamentos também inquietam o autor de O vento - O que pode minha poesia... ? Perguntará ele.

Embora aparentemente divididos em três partes, (Um, dois, Três, Um) os poemas do livro não indicam o desejo de uma rigorosa separação temática; na parte dois, predominam os poemas de amor, na parte Três, os de temática social-militante; entretanto, como preocupações mais visíveis, a experiência amorosa e a temática social circulam por todas as partes e compõem a atmosfera do livro, como nos versos: reaja à violência racial: / beije a sua preta em praça pública, em que as duas temáticas aparecem imbricadas.

Soltos quando falam do amor e dos seus descaminhos, os versos apontam para um perfil de poeta amoroso que vê no objeto amado estímulo para a produção e constata, pela experiência, a impossibilidade de escapar das dores do amor: ”ferida de amor estancada com cachaça/ é ferida mal vedada.”

Hesitando entre a constância e a volubilidade, o poeta percorre ruas, becos e ladeiras à procura do ser amado: “Revisitei amores... comprei flores que murcharam ... só você não via/ e eu, andorinha, sem verão, chuva de inverno ou alegria, adejava pelas pedras com minhas novas desesperanças”, verá o leitor em "Quase Carnaval"; mas na busca, o sujeito amante pode entrar nos bares comuns/ e atrás dos baticuns, se perder.

Os poemas de Lande inserem-se um uma tradição literária dos Cadernos Negros, um dos veículos de divulgação de seus textos. Os cantos dos Cadernos transitam pelos versos e prosas, pela África e pelo Brasil, pelos problemas étnico-raciais, canto que para Oubi Inaê, outro poeta afro-brasileiro que publica no periódico, tem a proposta de constituir-se arma de combate e também instrumento de construção de uma história dos afro-brasileiros:

 

Que o poema venha cantando

ao ritmo contagiante do batuque

um canto quente de força,

coragem, afeto, união.

Que o poema venha carregado

de armarguras, dores,

mágoas, medos,

feridas, fomes...

(Oubi Inaê Kibuko, CN, 7, p.109).

Os versos de Lande parecem seguir esta meta, cantar e apontar as alegrias e tristezas dos afro-brasileiros, tecendo identidades que se construíram / constroem-se nas encruzilhadas dos contatos culturais propiciados pela diáspora. Preso ao seu tempo, reconhecendo e explorando as marcas das tradições que, juntas, constituem uma memória preservada nos discursos identitários – o poema intitulado "Negrice" aponta para uma possibilidade de construção de identidade que ultrapasse limites da cor / cores da pele:

há em mim veias que anseiam

os incontáveis caminhos da existência

há em mim uma memória

que vem lamber ou devastar

as praias rasas do presente.

Flecha, "... verbo que pergunta onde" arma de duelo, letra que “... dorme em esteira... povoada de ancestres... (e) vai contornando tragédias e séculos...”, a poesia de Lande assume-se espada e flor. Constitui-se sopro da memória de um passado de luta, história construída com carne e sangue, suor, música e lágrima, sopro de uma estrada presente a percorrer em busca dos sonhos e paixões e da força necessária para outras construções. Os versos dialogam com outros poetas que também fazem da poesia espaço para amar, questionar, representar e propor transformações. Um espaço Iivre como o d' O vento – que em sendo brisa, redemoinho ou ventania espalha sempre o desejo de mudanças.



* Florentina Souza é Doutora em Literatura Comparada pela UFMG e professora do Instituto de Letras da UFBA, com atuação nos Programas de Pós-graduação em Literatura e Cultura e Estudos Étnicos e Africanos. É pesquisadora do Centro de Estudos Afro-Orientais, onde edita com Jocélio Teles a revista Afro-Ásia. Autora, entre outros, de Afrodescendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU (2005).

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