A África que não conhecíamos:
a celebração da memória ancestral em Amani, de Jorge Dikamba
Pedro Henrique Souza da Silva*
Mais de trezentos anos de escravidão marcam a história de um país. E isso se reflete na maneira como nós, da outra extremidade do Atlântico, enxergamos a África. Em geral, a vislumbramos a partir do exotismo, fruto de nosso desconhecimento e das imagens estereotipadas difundidas no Ocidente. Mesmo nas escolas, o continente africano só passa a “existir” após a chegada dos europeus.
De certa forma, é outra a África representada em Amani. Historiador e pesquisador da cultura banto, Jorge Dikamba tem se destacado também como músico, escritor e agitador cultural. Entre seus projetos, temos a “Borrachalioteca” – uma biblioteca que funciona com sucesso no interior de uma borracharia, na cidade histórica de Sabará, Minas Gerais. Preocupado com a formação de leitores, o autor enveredou pela literatura infantil, com textos que buscam preencher uma lacuna presente nesse segmento, sobretudo no tocante às tensões étnicas presentes na sociedade, sem se descuidar, porém, da construção de uma linguagem e uma escrita adequadas aos pequenos leitores.
Garoto esperto e inteligente, Amani morava em uma aldeia com os seus pais. Todos os dias “levantava cedo e ordenhava as duas cabras da sua família e colocava o leite na talha, para juntar queijo.” (Dikamba, 2010. p. 5). Amani também recolhia os frutos caídos da grande árvore que ficava ao lado da cubata na qual residia e alimentava as galinhas soltas no quintal. O pai de garoto era um soldado do rei e passava a maior parte do seu tempo protegendo o palácio. Sua mãe era curandeira do local e cuidava de todos os habitantes da aldeia com as suas rezas e remédios.
Na metade do dia, depois do almoço, Amani e as outras crianças da aldeia rumavam para a casa dos anciãos – que era a escola da comunidade. Ali, as crianças aprendiam os segredos da floresta e os sinais dados por ela, além de entenderem o comportamento dos animais – tanto os caseiros, quanto os do mato – o perfume e a serventia das ervas. Ao voltar para casa, o menino contava aos seus pais todas as novidades que aprendera com os mais velhos. Destaca-se, pois, um valor oriundo das comunidades tradicionais africanas que consiste no respeito ao saber dos mais velhos. Valor esse que encontra ressonância no provérbio: “quando um velho morre, é uma biblioteca inteira que queima”.
Numa das tardes, depois de voltar da escola, o menino se surpreende, pois sua mãe, nos últimos tempos tão gorda e cansada, havia emagrecido repentinamente, feito mágica. Para surpresa de Amani, ela dera à luz a sua irmãzinha – Abaiomi. Uma menina “gordinha” e de “olhinhos como sementinhas pretas, vivos e brilhantes.” (Dikamba, 2010. p. 8). Nesse dia, houve festa na aldeia, todas as crianças foram dormir mais tarde, animadas com os cantos das mulheres vestidas com roupas coloridas. Na manhã seguinte, tudo voltou à normalidade, o menino acordou cedo, fez suas tarefas, foi à casa dos anciãos, brincou com seus amiguinhos e adormeceu junto de sua irmã nos braços da mãe.
Certa noite, o menino é acordado com uma “gritaria” pela aldeia, era a chegada dos ladrões. Porém, esses ladrões estavam à procura de uma mercadoria especifica: seres humanos.
Estava escuro e sua irmãzinha chorava muito, parecia estar com muito medo. Ele levantou-se para ver o que era e viu um monte de gente desconhecida espalhada pela aldeia. Estavam vestidos e pintados para a guerra, de cara fechada. Tiravam as pessoas de suas casas, outros pegavam as coisas de valor. Amani já ouvira falar deles, eram ladrões! Alguns deles entraram em sua casa e levaram sua mãe e sua irmãzinha. Um outro o pegou pelo braço e levou-o para perto da fogueira. Pegaram sua irmãzinha e a entregaram para uma das vovós da aldeia, depois mandaram os outros fazerem uma fila, amarraram todos com uma corda e começaram a caminhar. (Dikamba, 2010. p. 12).
A aldeia estava desguarnecida, o pai de Amani estava distante, a serviço do rei. Com tudo o que acontecia, o garoto estava com medo que seu pai chegasse, pois os ladrões eram muitos e estavam bem armados. Continuou caminhando ao lado de sua mãe até o amanhecer. Devido ao cansaço, pararam um pouco e cozinharam inhame – único alimento disponível. Mais adiante, precisaram atravessar um rio. Amani conhecia o lugar, já estivera ali com o seu avô. Quando chegaram à metade do percurso, com a água já no pescoço do garoto e muitas dificuldades em prosseguir, Amani pisa em um buraco e é levado pela correnteza:
Sua mãe quis ajudá-lo, mas os ladrões bateram nela com uma vara e ela teve que seguir em frente, chorando e gritando seu nome. Ele foi descendo rio abaixo, vendo sua mãe e seus parentes cada vez menores até sumirem numa curva do rio. Seu choro se misturava com a água, o rio todo chorava com ele. (Dikamba, 2010. p. 15).
A narrativa de Jorge Dikamba busca, então, rememorar a travessia dos africanos que aqui foram escravizados. Numa direção iam aqueles que estavam sujeitos às agruras do regime servil, despojados da liberdade, do idioma, da história, e, ao cabo, da própria identidade. Do outro lado, ficavam o choro e a lembrança dos que escaparam à travessia ou não resistiram a ela.
Quando consegue finalmente retornar, o menino encontra sua aldeia arrasada. Diferente da alegria habitual, o que se via e ouvia no local era o choro das crianças, acompanhado do semblante de preocupação dos anciãos. Depois das lamentações, os mais velhos decidiram se reunir para reorganizar a vida e Amani foi chamado para se juntar a eles, iria ajudar a cuidar dos menores. Logo, podemos notar a semelhança do destino do garoto com a fortuna de outras crianças vítimas dos movimentos da diáspora africana pelas Américas. Assim como Amani, muitos jovens precisaram amadurecer precocemente diante da ausência dos pais e da pressão exercida pelos traficantes ou colonizadores.
Passaram-se os dias e a aldeia foi se normalizando, as crianças choravam menos e a escola foi reconstruída. Agora a aldeia estava maior, pessoas de outros lugares que também foram atacados se reuniam a eles, o pai de Amani se tornou um grande general e formou um exercito para proteger a comunidade. O garoto cresceu e se tornou um valoroso guerreiro, assumiu o posto de chefe da aldeia, as crianças cresceram havia muitas moças, porém ele não queria se casar, passava os dias se lembrando da sua mãe. Ia para o alto da montanha e pensava em sua mãe e ela – bem longe – chorava ao lembrar-se dos seus filhos.
A obra destaca-se, portanto, por rememorar os ancestrais por meio de histórias marcadas pela oralidade. Tudo isso se dá através de recursos estéticos e expressivos que dão conta da textualização das experiências e das memórias do povo afro-brasileiro e africano, registrando-as em discurso literário próprio das histórias infantis que conta ainda com as belas ilustrações da artista Juliana Buli.
Referências
DIKAMBA, Jorge / Ilustrado por Juliana Buli. Amani. Belo Horizonte, C/ Arte, 2010.
POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento e Silêncio”. Disponível em: http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf Acesso em: 20/06/2013.
* Pedro Henrique Souza da Silva é graduado em Letras, professor da rede pública de ensino, e mestrando em Educação pela UFMG.