Anelito de Oliveira: uma percepção para além do senso comum

Lívia Menezes da Costa Molina*

O livro Três Festas - A love song as Monk, de Anelito de Oliveira, já de início aponta para o conflito entre o mundo exterior e o mundo interior do poeta. Não é coincidência encontrarmos referências a Rimbaud, poeta francês conhecido por sua inquietude e introspecção. E as indagações percebidas ao longo do texto inscrevem um sentir poético singular e revelam o quão deslocado o eu lírico se sente diante do real. Tal sensibilidade leva-o ao inconformismo frente ao mundo globalizado, ao consumismo e à exclusão, em especial à que se refere ao “mundo negro”.

A indagação acerca do íntimo do sujeito se faz presente ao longo das três partes do livro. Já na primeira, intitulada "A Terceira: Esta", ele tateia o mundo que percebe ao seu redor e revela a dificuldade em dele fazer parte. Vive uma busca incessante pela percepção de uma realidade que ele mesmo não consegue apreender: “Vejo-me distante quando me aproximo, perante a mim, me aprofundo. Imerso em tudo, relembro-me.”(p. 14) Por estas razões, almeja o enfrentamento daquilo que não consegue compreender. Esta tentativa ocupa a primeira parte, na qual o poeta introduz ao leitor todo o estranhamento por ele vivido, o quadro de suas angústias. Esse conflito com o real provoca o descontentamento com seu próprio eu. E nisso, sente-se um sujeito à parte do mundo exterior, como podemos notar nos versos “Lá fora, no meio das coisas: o que somos no meio do que não é fora nem dentro, que é tão-somente meio, sem beira nem Sem” (p. 13).

O desabafo acontece no segundo momento do livro, "A Primeira: Aquela". Nesta parte, o poeta revela sua dificuldade de estar em sintonia com o que acontece no mundo, frente às banalidades, futilidades e injustiças que presencia. E acusa a vida mundana de forma violenta, reforçando ainda mais o sentimento de exclusão que sofre por demonstrar uma percepção para além do senso comum. Não é por acaso que o nome de Thelonious Monk, celebridade negra norte-americana do mundo do jazz, compõe o título do livro. É nas canções de Monk que o sujeito poético encontra a harmonia humana que não vê realizar-se nem em si mesmo. Escutar Monk remonta ao processo de introspecção tão necessário ao indivíduo quanto escasso na contemporaneidade marcada pelo excesso de informação. Esta leva a pessoa a se interligar mais ao mundo exterior em prejuízo da autorreflexão.

A presença de Monk no poema e a importância do jazz para os conflitos do eu lírico incitam interpretações além do apenas escrito. Este estilo musical em si interliga a obra poética e a forma como esta é dita. Tal manifestação teve sua base inicial na cultura popular e na comunidade negra, adquirindo assim um de seus espaços de maior ascensão cultural e histórica. É composto por uma mescla de tradições musicais, em especial a afro-americana, possibilitando assim a ligação efetiva entre o músico, a história do jazz e uma das temáticas apresentadas no livro.

Esta trajetória musical começa com a diáspora negra, quando milhões de escravos foram conduzidos aos Estados Unidos pelo tráfico negreiro. Levaram consigo a memória de sons e ritmos presentes nas culturas de origem, logo adaptada em favor de inovações como o banjo, fruto da mescla de influências com o novo mundo. Como estratégia de fortalecimento do regime escravagista, os senhores permitiam as reuniões de confraternização onde a vocação inata para o canto se fazia presente, ajudava a manter a autoconfiança entre os grupos e dificultava a disseminação de fugas ou revoltas. Assim, a música de base africana aperfeiçoava-se cada vez mais e consequentemente os negros ganhavam grande popularidade pelas composições. Estes músicos aprendiam a tocar canções europeias, nelas enxertando elementos provenientes da África. E assim se foi propagando este estilo musical, ganhando notoriedade no sul dos Estados Unidos, até chegar efetivamente aos saloons e salões de festa de todo o país. Vale mencionar, também, a influência religiosa que irá desaguar no gospel do século XX.

Por isso, a presença de Monk não ocorre ocasionalmente no livro. Além da questão étnica, tratada e estudada por Anelito de Oliveira em relação ao negro, há similaridade entre a forma jazz e a poesia apresentada. Os versos são expostos de forma espontânea, objetivando ainda mais a valorização da mensagem em si. A necessidade do desabafo sobrepõe-se ao formato tradicional consagrado. Portanto, os versos circulam livremente, assim como a canção do jazz, composta em sua maioria pelo improviso, sobrecarregado de subjetividade e liberdade criativa. Por esta razão, especialmente na segunda parte, tem-se o emprego de uma linguagem coloquial e cotidiana. Assim, a composição verbal poética se mescla com a composição rítmica de Thelonious Monk, criando a interligação entre estes dois elementos fundamentais para a obra. Nessa linha, Antônio Wagner Rocha escreve, no posfácio do livro, que “temos, desta forma, uma espécie de visada intersemiótica, onde, sem dúvida, os signos da música enquanto composição verbal se misturam aos signos da música enquanto composição rítmica. Um jazz para ser lido”. Evidentemente, Anelito se apropria da figura do músico para efetuar sua alusão, embora sutil, à imagem negra.

O nome Três Festas - a Love Song as Monk dialoga com a euforia internalizada vivida por este sujeito. O título simboliza o processo do “acontecer” de uma festa, a qual é guiada por inúmeras celebrações, que contêm alegria, pessoas, sons, enfim, uma mistura das diversas manifestações humanas. A metáfora, aqui apresentada, correlaciona a vivência de uma festa e a interação do humano (ser) com seu mundo exterior, que produz em razão disso a coexistência do eu sujeito-objeto. Esta mesma linha de raciocínio é encontrada no primeiro livro de Anelito de Oliveira, Lama, publicado em 2000. Há claramente a questão sujeito-objeto e como o diálogo entre estas duas instâncias, muitas vezes conflitante, é ocorrido. A observação do mundo incita o eu lírico a refletir sobre o que vê e sente e, por esta razão, tanto em Três Festas quanto em Lama, o desajuste permanece.

O olhar dissonante em relação à vida remonta-nos à mesma ideia de introspecção encontrada em Três Festas, pois o sujeito mostra-se melancólico e fala dos “ossos secos cantando / dentro de mim roendo / o tempo mais fundo” (OLIVEIRA, 2000, p. 9). Em Lama, este observa tudo ao seu redor, sob uma perspectiva crítica, e relata os acontecimentos de uma forma impetuosa, denunciando banalidades cotidianas e fatos sociais que o deixam aturdido e que o fazem refletir sobre a vida:

um tempo quebrado

volta tudo se reparte

novos cacos para

velhas partes de um

corpo que arde num

tecido de cicatrizes

revoltas em outras

voltas ruas de terra

palavras e espadas

e espantos rasgados

(OLIVEIRA, 2000, p. 13)

Nesta mesma passagem alude-se à questão do negro e suas marcas passadas, principalmente quando se diz “corpo que arde num tecido de cicatrizes”. Ainda no âmbito racial, lê-se que “corpos duros atirados / num muro áspero de / cimento e silêncio tal / qual pobreza o negro / contra o azul um soco” (OLIVEIRA, 2000, p. 10). Pode-se perceber, mesmo que de forma implícita, a crítica à imagem distorcida do negro na sociedade: “agora uma dor desfaz / a festa filme negro contra / o filme falso branco um / filme de nuvens nos nadas” (OLIVEIRA, 2000, p. 26). Há uma manifestação negra a qual se torna um dos assuntos de reflexão propostos por Anelito de Oliveira na obra. Desta forma, o eu se sente deslocado em seu próprio espaço e como consequência, acaba por realizar o exercício de sua interação com o mundo exterior, que resulta na dialética acima referida entre o eu e o objeto. O título, de caráter emblemático, pode ser entendido como um trocadilho para Alma, uma vez que o tom poético da obra desloca-se para a questão do ato individual em oposição à realidade. Pode-se notar esta ocorrência quando se diz “vidros de pensamentos / sobre o chão na lama / do chão e na alma do / despe ferida e feridas (OLIVEIRA, 2000, p. 10).

O assunto negro em sua complexidade aparece de forma bastante relevante para o contexto das obras referidas. Em Três Festas, o Brasil é apresentado como um país de preconceitos não assumidos, o que leva o texto a desmascarar essa hipocrisia através da ironia e, mesmo, do sarcasmo: “mas o pai do racista tem poder na cidade” (OLIVEIRA, 2004, p. 24). Adiciona-se, em oposição, a memória da participação dos negros na construção do país, onde o esforço e a notável presença desta “minoria-maioria” foram importantes para o processo social, cultural e político brasileiro. A revolta pelo não-reconhecimento destes na história do Brasil é carregada de frustração e indignação e se torna, em meio a tanto desabafo, um alicerce a mais para compor a visão do poeta num mundo para ele inaceitável.

A desintegração do sujeito em relação ao seu meio vivido, cuja consequência se baseia no “sentir poético” diferenciado, aparece também na parte final de Lama, quando se diz:

no meio da noite sem

ninguém e pobres

soltos nas ruas bares

e becos encharcados

de cerveja babando

desilusão tragando e

cheirando cagando na

privada suja urinando

caminhando sem rumo

pelas ruas invernadas

fruto de nada apenas

a sombra fria a sombra

silenciosa de silêncio

que nunca mais vai ser

vida

(OLIVEIRA, 2000, p. 28)

A inquietude sofrida no poema é gritante, e faz com que este se revolte perante a “não-compaixão” humana. Retornando ao Três Festas, podemos encontrar um escape para esta insensibilidade demonstrada, pois a presença do músico se torna simbólica para o contexto narrativo, uma vez que o mundanismo introspectivo de Monk o leva à profundidade humana-poética, como notamos no próprio livro:

Como – e tudo isso é – ouvir Monk?

Que nos pede mais que um ouvido, um

abismo, toda a profundidade em si,

uma vontade de cair na longa noite

de ausência que já fomos, de desligar

do que nos apaga iluminados, como,

quem, Rilke, mesmo se, ouvir-nos-ia?

(OLIVEIRA, 2004, p. 32)

No terceiro e último momento, intitulado "A Segunda: Outra", têm-se a aceitação, sem respostas, da busca frustrada do poeta, pois ele percebe que o sentir absoluto almejado é fracassado. Ele coloca seus sentimentos de forma tão impositiva que não alcança o preço a pagar da vivência e do real, gerando frustração e angústia. O resultado é o sentimento de solidão o qual o poeta sofre, como se diz nos próprios versos “O que se passa? Estou fechado neste mundo onde você me abraça. Sou este mundo. Estou insuportavelmente só. Como o que se arrasta: em torno, tentando existir...” (2004, p. 35) A mesma reflexão acontece em Lama , em que o sujeito se encontra meio aturdido, como notamos no início do livro através de uma passagem do poeta chileno Vicente Huidobro: “Caminho dia e noite como um parque desolado”.

Como se pode perceber, ambos os livros de Anelito de Oliveira caminham para a análise dos atos humanos que ocorrem em meio a diversos povos e a diversas situações cotidianas. Consequentemente, o eu lírico encontra na poesia um habitat para seu desabafo, como observamos em Lama: “tecer palavras como /quem escreve de tudo / caminhando em meio / a suaves folhagens de / um parque cheio mas / tão vazio de tudo ali” (OLIVEIRA, 2000, p. 16). É uma mistura de emoções, desde amor até ódio, “mas nada contém a / fúria que desata neste / instante nada contém / a bomba de ódio que / dispara no meio do / meu coração da cara” (Lama, p. 15)

O poeta faz questão de incluir, entre tantos outros, seu desabafo em relação às injustiças e desigualdades sofridas pelos negros, com ênfase na forma desse discurso. Elabora assim, um paralelo com a própria estrutura do jazz, na qual mais importante do que o assunto é a forma como se toca a música. O autor se apropria de uma realidade pertencente ao seu próprio mundo para indagar as atitudes e as insensibilidades do mundo real. Sua experiência como problematizador de questões afrodescendentes nos mostra sua presença implícita em seus poemas. Lama e Três festas - a love song as Monk revelam um Anelito de Oliveira sensível demais perante a brutalidade do mundo, que o impede de concretizar qualquer mudança mais profunda e que o deixa na condição de “apenas” sentir e transformar o sentimento em poesia.

Referências

OLIVEIRA, de Anelito. Lama. Belo Horizonte: Orobó Edições, 2000.

OLIVEIRA, de Anelito. Três festas - a Love Song as Monk. Belo Horizonte: Orobó Edições, 2004.

ROCHA, Antônio Wagner. Posfácio: Três festas, uma poética. Belo Horizonte: Orobó Edições, 2004.

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* Lívia Menezes da Costa Molina é graduada em Letras pela UFMG.

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