Desvelando o racismo no conto “O pecado”, de Lima Barreto

Priscila Cardoso de Oliveira Silva*

 

RESUMO: Pretende-se com este artigo analisar como questões raciais estão articuladas com a ficção a partir da análise do conto O Pecado de Lima Barreto, pois entende-se que sua composição ideológica e literária tinha como principal meta a instância social. Antes, porém se trata um pouco da vida e obra do autor, em seguida aponta-se aspectos intrínsecos à sua linguagem, levando em consideração sua forma de conceber a literatura. Posteriormente discute-se acerca do racismo brasileiro a partir dos estudos teóricos de CUTI (2003); Edward Telles (2003); Kabengele Munanga (2006). Então desenvolve-se a análise do conto, propriamente dito, concluindo-se assim a afirmativa de há coerência no que diz o autor e a relação ao seu projeto literário, que era o de utilizar a escrita como arma de denúncia para revolução da consciência nacional.

 

PALAVRAS-CHAVE: Lima Barreto, Racismo, Desigualdade Social, Literatura.

 

 

Merecidamente apresentamos um pouco da vida e obra de Afonso Henriques de Lima Barreto, nascido no dia 13 de maio de 1881, no Rio de Janeiro. Era filho de um tipógrafo e de uma professora, ambos mulatos. Perdeu a mãe aos 7 anos. Aos 16, ingressou na Escola Politécnica, mas cinco anos seu pai enlouqueceu e o rapaz teve de abandonar os estudos para sustentar a família. Em 1903, com 22 anos, conseguiu um modesto cargo na secretaria de Guerra e passou a desenvolver uma produção literária sistemática.

Em 1904, começou a escrever o romance Clara dos Anjos e, no ano seguinte, iniciou a elaboração de Recordações do Escrivão Isaías Caminha, publicado em Lisboa em 1909. Também passou a trabalhar como jornalista e fundou, em 1907 , a revista Floreal. Quatro anos depois, o Jornal do Comércio publicou em folhetins seu romance Triste fim de Policarpo Quaresma.

Em 1914, Lima foi internado por alcoolismo no Hospício nacional. Apesar disso, continuou a colaborar com o Jornal Correio da manhã e a revista Careta, entre outras publicações, e viu o Jornal A noite publicar em folhetins, em 1915, seu romance satírico Numa e Ninfa. Em 1916, foi internado mais uma vez no hospício para tratamento de saúde. Em 1917, teve sua candidatura à Academia Brasileira de letras sumariamente ignorada. Nessa ocasião, escreveu textos em apoio a greves e colaborou na imprensa socialista. 1919 é o ano de publicação do romance Vida e Morte M.J. Gonzaga de Sá. Candidatou-se ainda por mais duas vezes a Academia Brasileira de Letras, sem nenhum sucesso. Em 1º de novembro de 1922, com 41 anos, falece Lima Barreto, vítima de gripe e infarto.1

 

 

A Linguagem de Lima: tradição e/ou Ruptura!?

 

Lima Barreto escreveu em linguagem despreocupada com o cânone, para ele o mais importante era ser compreendido pelas pessoas mais humildes, pois via seus contos e romances como uma arma contra os mecanismos de dominação social. Seus textos apontavam o dia-a-dia dos subúrbios cariocas e as formas de controle e opressão que a sociedade exercia sobre os indivíduos.

Segundo Cuti(2011) a obra literária de Lima Barreto apresenta uma multiplicidade de abordagens, trata-se de uma obra aberta que possibilita o leitor preencher os espaços vazios, com interpretações concretas. Neste sentido, é uma obra estimuladora, com características flexíveis e permeáveis. Um texto sem forma fixa que migra por todos os gêneros textuais, que foge de qualquer norma pré-estabelecida, seja na escrita ou através das ideias apresentadas.

Sua linguagem é denunciadora, pois seus textos desmascaram situações em que a liberdade de viver é limitada por preconceitos de cor e de classe, suas ideias diferem do senso comum, pois possui uma visão social diferenciada. Por conta disso, é possível fazer analogias com seus textos entre o passado e presente. Sua obra nos provoca um incômodo intelectual e emocional, agradável ou não, pois desnuda ocultas intenções nos gestos e atitudes dos grupos que detêm o poder. Investiga com olhar crítico temas polêmicos tais como: racismo, corrupção na política, violência contra mulher, futebol, depressão e loucura, entre muitos outros que por muito tempo foram proibidos de se falar e/ou questionar.

Segundo Nicolau Sevcenko (1999), todo universo temático da obra de Lima Barreto é composto tendo como ponto central o exercício discriminatório e a marginalização social. Assim passou a denunciar e divulgar a ideologia das classes dominantes e suas pressões sobre os dominados.

Os textos barreteanos por apresentar mudanças nas sociedades e nos indivíduos, às vezes profundas, às vezes superficiais, marcaram a memória nacional brasileira, isso fez com que seu trabalho ficasse por muito tempo emm plano secundário, porque seus escritos tinham e têm força de mudar o senso crítico daqueles que os leram e/ou leem.

Porta-voz dos excluídos, seu principal laboratório de pesquisa, foi o cotidiano dos menos favorecidos. A cidade em que nasceu foi para ele um cenário aberto de exclusão, onde ele captava todos os elementos necessários para produção de suas obras literárias.

[...] eu, apesar de ser um sujeito sociável e que passo, das vinte e quatro horas do dia, mais de quatorze na rua, conversando com pessoas de todas as condições e classes, nunca fui homem de sociedade: sou um bicho do mato. (BARRETO, 1956, v. x III, p. 55).

Com ideias bem definidas, o autor imerge no cotidiano urbano da cidade e passa a observar seu contexto social, a fazer sua cidade, apreende os detalhes encontrados, personificando-os em suas obras como verdadeiros personagens. Notadamente, também descreveu como um observador crítico que era, as novidades urbanas e constantes alterações no campo da construção civil. Podemos observar a descrição do Rio de Janeiro pela ótica do seu primeiro personagen-narrador no Romance Recordações do escrivão Isaías Caminha na seguinte passagem:

[...] Subia a rua. Evitando os grupos parados no centro e nas calçadas, eu ia caminhando como quem navegava entre escolhos, recolhendo frases soltas, ditos, pilhérias e grossos palavrões também. Cruzava com mulheres bonitas e feias, grandes e pequenas, de plumas e laçarotes, farfalhantes de sedas: eram como grandes embarcações movidas pelo vento brando que lhes enfunasse igualmente o velame. (BARRETO, 1956, v1, p. 83).

A criação literária para Lima Barreto está internamente ligada ao meio no qual é produzida. O autor deixa claro que para escrever bem, é necessário, antes de tudo ser um bom observador, não apenas dos atos individuais, mas de toda a sociedade. Para ele a literatura deveria ser um instrumento de diálogo entre os homens, sendo assim um meio de fácil compreensão que aliasse personagem e leitor, com o objetivo de comunicar ideais fazendo surgir sentimentos críticos.

Aliado a essas concepções, podemos nos remeter ao que afirma Walter Benjamim, no que se refere à ideia de narrador. Para ele o autêntico narrador é aquele que possui “a faculdade de intercambiar experiências”, e aproximá-las da concepção de literatura, assim como fez Lima Barreto, através dos narradores criados por ele, que em sua maioria estabeleceram uma comunicação direta com que os leram/leem. Para Benjamim: “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos ouvintes” (BENJAMIM, 1993, p. 2011).

Podemos relacionar o que diz o escritor acima citado, aos escritos de Lima Barreto, pois, embora tenha vivido em um período de vasto apreço ao progresso e as novidades urbanas, manteve em sua literatura a essência do autêntico narrador, apresentado por Benjamim. Acreditava na possibilidade do entendimento e da solidariedade humana, assim lutava contra a desigualdade social. Seu principal objetivo era utilizar a literatura como forma de participação social, fazendo desta um elemento unificador que aproximasse os indivíduos uns dos outros.

Portanto a leitura dos textos produzidos por Lima Barreto em especial o conto O Pecado que veremos a seguir, nos possibilita observar que o autor vai além do biógrafo ou do desejo de ser aceito pela crítica intelectual. Sua obra ultrapassa todas as fronteiras do subjetivo e cruza com a crítica cultural. Utiliza sua linguagem politizada como instrumento de cunho social que possui propósitos e objetivos concretos, em que o principal deles é mostrar que existe um outro ângulo da história.

 

Concepções raciais e o conto O Pecado

 

Com abolição da escravatura no Brasil surgiram muitas discussões em torno da inclusão social do negro. Nesse contexto, muitos intelectuais e abolicionistas dividiam opiniões e tratavam esse tema como uma questão nacional. Observando esses debates Lima Barreto travou uma verdadeira “guerra” com as diversas correntes intelectuais da época, pois começou a problematizar questões raciais, questionando assim, ideários científicos estruturados e incontestáveis, em que muitos deles afirmavam a ideologia da inferioridade do negro em relação ao branco. A respeito disso, vejamos o que afirma Edward Telles:

A eugenia incluía ideias científicas sobre raça que na época consideravam os negros inferiores e os mulatos, degenerados. Afirmava também que climas tropicais como o Brasil enfraqueciam a integridade biológica e mental dos seres humanos. Assim sendo os eugenistas do séc. XIX estavam convictos de que a população brasileira exemplificava a degeneração biológica. (TELLES, 2003, p. 43).

O autor afirma que boa parte dessas ideias se sustentava em argumentos biológicos e conceitos raciais que inferiorizavam o despreparo dos negros libertos. Para isso, utilizavam de argumentos científicos na tentativa de validar a dominação racial, sustentando a ideia de que a miscigenação condenaria o Brasil à degeneração. Nesse contexto a presença da população negra era considerada um obstáculo que precisava ser combatido.

Munanga (2006) afirma que o fato dos negros terem sido libertos por força da lei não garantia aos mesmos os direitos de fato e de todas as oportunidades dadas ao branco em nosso país, sobretudo às camadas mais ricas. Por conta disso, após a abolição da escravatura, proclamada na Lei Áurea, os negros brasileiros tiveram que implantar um longo caminho de construção de igualdade e de acesso às camadas sociais.

No Brasil, os grupos mais pobres, e afrodescendentes, apesar da abolição, continuaram a vivenciar a realidade da desigualdade. Contudo é necessário lembrar que mesmo com toda a opressão vivida neste período, existiram movimentações, resistência e luta que marcaram parte da história do negro brasileiro. Como exemplos dessas lutas pela construção da cidadania dos negros temos: a Revolta da Chibata, movimento liderado por um negro, que se opôs ao modo como eram tratados os marujos na marinha brasileira início do século XX; A Frente Negra Brasileira (1931), organização política que surge a partir da ação de militantes negros paulistas pós-abolição; O Teatro Experimental do Negro -TEN (1944), cujo projeto pedagógico destaca a educação como forma de garantia a cidadania do povo negro; e o Movimento das Mulheres Negras que destaca a articulação entre raça e gênero dentro dos movimentos sociais específicos.

No que se refere a questões raciais e literatura podemos incluir Lima Barreto como principal representante, pois enfoca com bastante propriedade temas como preconceito e racismo associado à escravidão no Brasil. O autor descreve o tratamento dado ao negro em relação ao branco, apontando diversas situações discriminatórias dirigidas aos mesmos. Além disso, ele também se preocupa em questionar a estrutura do discurso biológico do projeto do embranquecimento nacional. Cuti (2003, p. 92) dispõe que “a hipocrisia racista no Brasil, sendo muito refinada, dificilmente se expõe. Lima Barreto puxa-lhe o véu ao construir seus personagens humanizados no racismo”. Notadamente esses temas são abordados de forma bem abrangente em suas obras. Para entendermos um pouco sobre isso vejamos análise do conto “O pecado”, publicado na Revista Souza Cruz, em agosto de 1924 que revela com bastante clareza o preconceito a brasileira.

“O pecado” conta de forma bem humorada a história de uma alma que sobe ao céu, a qual é bem recebida por São Pedro. Ao ler uma “ficha explicativa do ex-vivo”, o Santo acredita que esta alma é digna e casta e por isso deve sentar-se a direita do trono celestial. Porém ao final de toda análise de sua vida terrena, descobre-se um detalhe: era negro e então deveria ir para o purgatório.

Podemos fazer analogias com algumas passagens do texto e a coibição da afirmação social do negro no final do século XIX, pós-escravatura. Pois ao negar a entrada do negro no reino celestial, o texto remete ao período em que todas as portas foram fechadas para os “recém-libertos”, confirmando assim a falta de oportunidade e o descaso com todos aqueles que foram os principais formadores da nossa sociedade.

Logo nas primeiras linhas da narrativa observa-se que o autor traça, revela o processo de crendice racial no Brasil, apresentando assim problemas relacionados com a intolerância racial. Mais uma vez Lima Barreto quebra barreiras e fala sobre o que é considerado tabu. Ele utiliza dados do cotidiano, neste caso a religiosidade para problematizar. E o faz num tom de denúncia. Vejamos a passagem a seguir: “Dessa vez ao contrário de todo o sempre, São Pedro, antes de sair, leu de antemão a lista; e essa sua leitura foi útil, pois que se a não fizesse talvez, dali em diante, para o resto das idades - quem sabe? – o Céu ficasse de todo estragado”.(Barreto, 2004, p. 64).

Observe como o autor demonstra compromisso com a realidade social, se apropriando de elementos do catolicismo para denunciar a ideologia do embranquecimento do Brasil, defendida pelas teorias eugenistas. A crítica também se estende às instâncias católicas que tanto contribuíram para a escravidão no Brasil, pois em nome de Deus justificavam que, para os negros serem salvos, libertos dos pecados, era necessário passar pela “redenção” do cativeiro. Neste caso o purgatório terrestre.

O próprio termo “estragado” pode ser comparado ao “degenerado” muito utilizado para desqualificar e/ou silenciar os negros. O céu por sua vez é uma referência ao Brasil, se assim levarmos em consideração que aqui é o paraíso das relações. Antonio Siqueira foi um dos pensadores mais convictos do branqueamento do Brasil. Ele dizia que:

Como o Brasil deve ser povoado da raça branca, não se concedam benefícios de qualidade alguma aos pretos que queiram vir habitar no país depois de abolida a escravatura, esta faculdade é só concedida aos que já foram escravos. E, como havendo mistura de raça preta com branca, a segunda ou terceira geração ficam brancas, terá o Brasil em menos de 100 anos todos os seus a habitantes da raça branca. (SIQUEIRA, apud CUTI, 2011, p. 96).

No cenário brasileiro em que se vivia esse tipo de pensamento, um negro ou negrodescendente jamais poderia ser escritor. Se fosse, estaria condenado a expectativa errante, sem brechas. Além do mais, se ele rompesse com o silêncio sobre assuntos que envolviam a realidade do Brasil. Nesse contexto, a vida e obra de Lima Barreto foram consideradas como verdadeiras anomalias para a crítica, surgiram várias tentativas de desqualificar seus trabalhos. Porém nem mesmo a doença e rejeição conseguiram silenciar sua voz denunciadora, questionadora.

O conto se revela em torno de dois eixos o poder e seus efeitos discriminatórios. Pode-se fazer analogia da repartição celestial e as ordens supremas apresentadas na narrativa, aos mandos e desmandos dos governantes políticos, os quais o autor tanto criticou. Remete também à divisão de classes e à exclusão social que tanto atinge pobres e enjeitados. Através de uma abordagem simples, aparentemente cômica, o autor revela a situação vivida pelo negro no Brasil. O sarcasmo em determinado momento da narrativa, é uma forma encontrada por ele para denunciar o preconceito e o seu repúdio pelas desigualdades sociais. Suas armas são a ironia e ousadia com que pronuncia seus descontentamentos. Lima, mesmo diante de fortes resistências no plano da recepção a seu tipo de escrita, trata sem nenhuma intimidação a respeito de problemas da esfera racial e também política dando ao leitor uma dimensão crítica da violência dessas práticas.

São Pedro, como de costume, passa no departamento burocrático que seleciona as almas que entrarão ou não no céu naquele dia. Conferindo a lista dos “aprovados”, ele observa os seguintes dados: “P.L.C., filho de…, neto de…, bisneto de… _ Carregador, quarenta e oito anos. Casado. Casto. Honesto. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São Francisco de Assis. Virtuoso como São Bernardo e meigo como o próprio Cristo. É um justo”. São Pedro afirma ao escriturário que é pena, pois tal alma merecia permanecer ao lado de Deus para sempre. Ao que o escriturário pergunta intrigado por que “merecia”? “Levando o dedo pela pauta horizontal e nas ‘Observações’, deparou qualquer coisa que o fez dizer de súbito:

- Esquecia-me… Houve engano. É! Foi bom você falar. Essa alma é a de um negro. Vai para o purgatório”. (Barreto, 2004, p. 65)

Quando lemos essa passagem podemos imaginar a figura de “São Pedro” frente ao “candidato” que preenche perfeitamente todos os requisitos, mas cometeu um único “pecado”: o de ser negro. Imperdoavelmente será enviado ao purgatório, já que não é permitida a entrada de negros no reino celestial. O autor é categórico em sua avaliação e “abraça as teses de solidariedade humana, solapa o racismo em sua base irracional primitiva, que é considerar apenas os brancos dotados de humanidade.” (Cuti, 2011, p. 91).

Nesta produção literária tensões são refletidas em diferentes dimensões: a primeira, diz respeito à temática das instituições de poder e de suas consequências, no que se refere à divisão de classes, a segunda é a contrapartida, realça a tentativa de reconhecimento à dignidade e a honestidade dos excluídos. Tomando para si o dever de combater os males da sociedade, Lima Barreto utiliza sua inteligência aliada à sátira para tornar visíveis aqueles que o cotidiano cruel insiste em deixar na margem social.

A obra barreteana não revela apenas um sofrimento individual, vivido pelo negro sem acesso, mas o sofrimento de uma coletividade. Com a escrita deste conto, Lima demonstra sua consciência em relação aos problemas de seu tempo. Ele manifesta uma profunda preocupação com aqueles excluídos e por isso faz tornar público todo seu ressentimento em relação aos prejuízos causados pelo racismo.

Em uma mesa longa, larga e baixa, em grande livro aberto se estendia e debruçado sobre ele, todo entregue ao serviço, um guarda-livros punha em dia a escrituração das almas, de acordo com as mortes que Anjos mensageiros e noticiosos traziam de toda extensão da terra. Da pena do encarregado celeste escorriam grossas letras, e de quando em quando ele mudava a caneta para melhor talhar outro caráter caligráfico. (Barreto, 2004, p. 64).

A narrativa, quando, por exemplo, utiliza a expressão “encarregado celeste” revela o esforço do autor em mostrar a superficialidade do comportamento dos poderosos e o exagero destes últimos em lidar com títulos e cargos públicos. A descrição da mesa “larga e longa” faz referência a burocracia brasileira em lidar com assuntos sociais, e aos luxuosos gabinetes em que muitas vezes eram decididos os destinos de muitos brasileiros. O grande livro pode ser considerado às leis que insistiam em usurpar os direitos dos negros libertos.

O que se nota com este texto é que o escritor optou por uma obra de contestação das dificuldades sociais, as quais ele também pôde vivenciar durante sua curta e intensa passagem na Terra. É um conto que mostra a coerência do autor em relação ao seu projeto literário, que era o de utilizar a escrita como arma de denúncia para fomentar a consciência nacional. Isso é perfeitamente explícito nesta curta narrativa, mas tão bem elaborada e clara na mensagem que queria transmitir.

Portanto, pode-se dizer que Lima Barreto fez revolução com seus textos e o conto O Pecado foi uma de suas armas. O Autor visava o bem e a união entre os povos, queria despertar a consciência crítica dos brasileiros no tratamento às injustiças. Apesar de muitas vezes parecer melancólico e apresentar complexo de inferioridade, por ser também vítima da discriminação, tinha profunda esperança na humanidade, lutou sozinho sem medo do bombardeio que veio da contrapartida literária.

A tentativa de camuflar o preconceito no Brasil não achou brechas nos escritos barreteano. Segundo João Antonio, apud Cuti (2011, p. 115), “sua obra até hoje é uma bordoada, seca e rente, na nossa apatia, malemolência, calhordice, omissão, indiferença, farisaísmo, relapsia e macaqueação dos modelos estrangeiros”.

Assim muitas são as abordagens temáticas de Lima Barreto, fazendo dele um autor atualíssimo, mesmo após quase um século de sua morte. Sua ficção permeia todas as circunstâncias da realidade nacional, principalmente no que consiste a educação brasileira que insiste em permanecer se enxergando sobre a ótica ocidental.

 

Referências

 

BARRETO, Lima. “O pecado”. In: O homem que sabia javanês e outros Contos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.

BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Brasiliense, 1956.

BENJAMIM, Walter. O narrador. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1993.

CUTI. Lima Barreto. São Paulo: Selo Negro, 2011.

MOURA, Samara Loureiro de. Lima Barreto: um mulato intelectual na Bruzundanga. Porto Alegre, 2010. http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/26398/000758256.pdf. Acesso 13 de setembro de 2013.

MUNANGA, Kabengele; Nilma Lino Gomes. Para entender o negro no Brasil de hoje: Historia, realidades, problemas e caminhos – São Paulo: Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação, 2006, 2ª ed. ver. E atualizada- (Coleção Viver, Aprender).

REVISTA Nova Escola. Contos para Jovens e Adultos. Edição Especial. Editora Abril: Dezembro, 2005.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense, 1999.

TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2003.

 

1 Dados retirados da Revista Escola: Contos para jovens e Adultos, aliados aos estudos de Cuti (2011) em Cronologia da Vida de Lima Barreto. Para mais informações acerca da vida e obra do autor consultar os escritos de BARBOSA, Francisco Assis em A vida de Lima Barreto. 8ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

* Priscila Cardoso de Oliveira Silva é graduada em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual da Bahia, professora de Língua Portuguesa e Literatura no ensino médio e mestranda em Crítica Cultural pelo Programa de Pós-Graduação da UNEB-Alagoinhas.

 

 

ANEXO

 

O Pecado

Lima Barreto

 

Quando naquele dia São Pedro despertou, despertou risonho e de bom humor. E, terminados os cuidados higiênicos da manhã, ele se foi à competente repartição celestial buscar ordens do Supremo e saber que almas chegariam na próxima leva.

Em uma mesa longa, larga e baixa, em grande livro aberto se estendia e debruçado sobre ele, todo entregue ao serviço, um guarda-livros punha em dia a escrituração das almas, de acordo com as mortes que Anjos mensageiros e noticiosos traziam de toda extensão da terra. Da pena do encarregado celeste escorriam grossas letras, e de quando em quando ele mudava a caneta para melhor talhar um outro caráter caligráfico.

Assim páginas ia ele enchendo, enfeitadas, iluminadas em os mais preciosos tipos de letras. Havia no emprego de cada um deles, uma certa razão de ser e entre si guardavam tão feliz disposição que encantava o ver uma página escrita do livro. O nome era escrito em bastardo, letra forte e larga; a filiação em gótico tinha um ar religioso, antigo, as faltas, em bastardo e as qualidades em ronde arabescado.

Ao entrar São Pedro, o escriturário do Eterno, voltou-se, saudou-o e, à reclamação da lista d’almas pelo Santo, ele respondeu com algum enfado (endado do ofício) que viesse à tarde buscá-la.

Aí pela tardinha, ao findar a escrita, o funcionário celeste (um velho jesuíta encanecido no tráfico de açúcar da América do Sul) tirava uma lista explicativa e entregava a São Pedro a fim de se preparar convenientemente para receber os ex-vivos no dia seguinte.

Dessa vez ao contrário de todo o sempre, São Pedro, antes de sair, leu de antemão a lista; e essa sua leitura foi útil, pois que se a não fizesse talvez, dali em diante, para o resto das idades – quem sabe? – o Céu ficasse de todo estragado. Leu São Pedro a relação: havia muitas almas, muitas mesmo, delas todas, à vista das explicações apensas, uma lhe assanhou o espanto e a estranheza. Leu novamente. Vinha assim: P. L. C., filho de..., neto de..., bisneto de... – Carregador, quarenta e oito anos. Casado. Casto. Honesto. Caridoso. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São Francisco de Assis. Virtuoso como São Bernardo e meigo como o próprio Cristo. É um justo.

Deveras, pensou o Santo Porteiro, é uma alma excepcional; como tão extraordinárias qualidades bem merecia assentar-se à direita do Eterno e lá ficar, per saecula saeculorum, gozando a glória perene de quem foi tantas vezes Santo...

— E porque não ia? deu-lhe vontade de perguntar ao seráfico burocrata.

— Não sei, retrucou-lhe este. Você sabe, acrescentou, sou mandado...

— Veja bem nos assentamentos. Não vá ter você se enganado. Procure, retrucou por sua vez o velho pescador canonizado.

Acompanhado de dolorosos rangidos da mesa, o guarda-livros foi folheando o enorme Registro, até encontrar a página própria, onde com certo esforço achou a linha adequada e com o dedo afinal apontou o assentamento e leu alto:

— Esquecia-me... Houve engano. É! Foi bom você falar. Essa alma é a de um negro. Vai para o purgatório.

 

(In: Revista Souza Cruz, Rio, agosto 1924).

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