Solano Trindade – Ensaio biográfico – Opúsculo

Júlio Romão da Silva

  

Só vinte dias após o sepultamento em cova rasa num distante cemitério de Jacarepaguá, soube do falecimento de Solano Trindade, ocorrido pouco antes do carnaval aqui na Guanabara.

A notícia, transmitida pelo telefone por uma nossa amiga comum, foi-me de um impacto tremendo.

Lamento que só assim, indireta e tão tardiamente, me chegasse a comunicação indesejável. E justifico deste modo a minha ausência no adeus definitivo ao grande negro, que foi meu amigo e meu parceiro na fundação do Centro de Cultura Afro-Brasileiro.

Gostaria de fazer-lhe um panegírico tão amplo e comovente como o que, em circunstância idêntica, teceu Raul Pompéia a Luiz Gama. Ou pelo menos à maneira singela e espontânea de Jorge Amado à beira do túmulo de Graciliano Ramos.

Mas agora, recorrendo às minhas próprias MEMÓRIAS, posso apenas reproduzir aqui, por adaptável ao caso, o monólogo do romancista de Suor ao autor de Vidas secas, quando este resolveu desencantar-se para jogar gamão com as estrelas: "Meu amigo: Não lhe digo adeus, porque você não se apartou de nós. Está presente e continuará vivo nas páginas dos seus livros, na memória do povo a quem você foi fiel, na semente de idealismo que plantou para esta e as gerações vindouras".

FRANCISCO SOLANO TRINDADE – pernambucano de Recife, filho de sapateiro, nasceu obscuramente em 1908 naquela Mauricéia que ele muito amou. Em 24 de julho próximo completaria 66 anos de idade. Mas indo-se antes, a 22 de fevereiro, sem aviso prévio aos amigos, não viveu o bastante para contar 30 mil cruzeiros de direitos autorais por uma faixa de LP gravado pela Continental - fortuna única que com o nome já legendário deixou para a família no que seria talvez mais venturoso do que Cruz e Sousa e José do Patrocínio, que depois de fazer a Abolição morreu com quatro tostões no bolso.

Artista e boêmio, sua vida, em si simples e desordenada com ele mesmo em pessoa, mas cheia de lances magistrais, seria entretanto um padrão de persistência e despreendimento na luta tenazmente travada em defesa da sua raça e das tradições culturais e artísticas do nosso povo.

Autodidata – foi sociólogo, poeta, panfletário, xilógrafo e pintor primitivista. Como figura humana, um dos caracteres mais curiosos de quantos da sua geração, se conhecem na tábua de valores intelectuais da negritude continental, nesta segunda metade do século que entardece.

Se a outro já não pertencesse, a ele gravaríamos o epitáfio lapidar de Rui Barbosa ao abolicionista e poeta satírico de Trovas burlescas de Getulino: "Personalidade de granito, aureolada de luz e povoada de abelhas douradas do Himeto".

Self made man, cedo começou a interessar-se pela literatura e, particularmente, o folclore e os problemas sociais. Moço ainda em Recife, ao lado de Vicente Lima e do pintor Barros, o Mulato, teve atuação destacada no vigoroso movimento cultural, ali aflorado na década de 20.

Mais tarde no Rio (1950), fundava com o sociólogo Edison Carneiro e a esposa Margarida, o Teatro Popular Brasileiro, cujas atividades correriam paralelas às do Teatro Experimental do Negro, criado por Abdias Nascimento e Aguinaldo Camargo, da Orquestra Afro-Brasileira de Abigail Moura e Mary Carmo, e, mais recentemente, do nosso Pequeno Teatro do Rio de Janeiro.

Antes, havia participado da formação do Comitê Democrático Afro-Brasileiro, que surgindo com o propósito de reforçar a campanha popular que forçou o rompimento do Brasil com as potências do Eixo, veio a ser cindido em decorrência das dissenções abertas no seu próprio seio pelos integralistas que nele se infiltraram.

O TEATRO POPULAR BRASILEIRO, a exemplo da Brasiliana, também por ele organizada de parceria com Haroldo Costa e os irmãos Waldomiro-Láudio José Machado, deu volta ao mundo, difundindo na sua autenticidade a música e as danças típicas do nosso repertório folclórico, ocasião em que colabora, em Praga, na filmagem de um documentário sobre hábitos e costumes brasileiros.

Ator, que também o era, juntamente com seu Grupo, exibiu-se em várias películas de patentes nacionais e estrangeiras.

Querendo o folclore vivo, insofisticado, assim o mostrou nos filmes Magia verde, de produção franco-italiana, O Santo milagroso e A hora e a vez de Augusto Matraga; na telenovela Banzo; na peça teatral Casa grande e senzala, baseada no livro de Gilberto Freyre, nos shows cariocas de Silveira Sampaio, e em numerosos espetáculos por ele mesmo montados e dirigidos em teatros e auditórios vários nos mais diferentes pontos do País.

Transferindo-se com o Teatro Popular para São Paulo, ali se fixaria até bem pouco. No Embu, que o tem por Patriarca, implantou e desenvolveu o importante movimento artístico de interesse folclórico, que transformaria aquele bairro num dos principais centros de atração turística da capital bandeirante.

Sua obra como pintor e xilógrafo é singular. Parte dela já se incorpora ao patrimônio artístico nacional e consta de catálogos de museus e coleções particulares no país e no exterior.

Como poeta, Solano Trindade deixou três livros publicados: Poemas de uma vida simples (1944), Seis tempos de poesia (1958), Cantares do meu povo (1966) – já também indicados em enciclopédias bibliográficas e antologias da literatura brasileira. Como teatrólogo, de sua autoria só foram encontrados, até agora, os originais da peça inédita Malungo, sobre a qual alimentava grandes esperanças.

Testemunha ocular dos seus labores nesses misteres, inclusive quando por alguns meses o hospedei com sua troup em minha casa no Méier, posso assegurar que sua produção ainda não devidamente inventariada, é nesses gêneros, bem maior do que se imagina.

Partidário da doutrina que declara o absoluto inacessível ao espírito humano, um dos traços característicos da personalidade e do temperamento de Solano era a franqueza e intransigência com que declinava e defendia os seus pontos de vista políticos e as suas convicções anti-místicas. Numerosas vezes nos atritamos nesse terreno. Mas as nossas divergências momentâneas no modo de encarar e entender as coisas, jamais romperia o forte laço de afeto e admiração que mutuamente devotávamos um ao outro.

É que ele, no fundo, era antes de tudo um filósofo. E eu o entendia "nas suas exaltações e agonias". Além do mais tínhamos algo em comum: o sincero amor pelo povo donde proviemos, a lealdade às nossas raízes raciais e aos mesmos sentimentos atávicos; a paixão que nos encandescia no mesmo ideal de elevação e valorização de elemento negro pelo aproveitamento total do seu imenso potencial de vocações artísticas e capacidade criadora.

No seu último capítulo, o romance desta grande vida faz-nos lembrar o simbolista de Missais e o Tigre da Abolição, cujo último desejo foi virar pássaro.

Embora com o nome engrandecido pelo muito que edificou a sua inteligência e o seu grande talento, morreu pobre, como pobre nasceu e humildemente cumpriu a sua missão no mundo. E talvez pela própria predestinação, como aqueles, ninguém lhe assistiria o espasmo obscuro nem ouviria a sua última quimera.

 

Rio, 24 de março de 1974.

(Júlio Romão da Silva, Entre o formão, a pena e a flecha, p. 393-399).

 

Texto para download