O poético militante Solano Trindade1

Assunção de Maria Sousa e Silva*

O início de um projeto é sempre ansioso, pode-se saber o caminho, mas não o que se vai encontrar, e assim, no misto de desafio e apreensão, traremos para esse espaço reflexões sobre literatura afro-brasileira. Procuraremos apresentar aos leitores produções e autores afro-brasileiros que vêm contribuindo para a construção do discurso identitário no seio da literatura brasileira, mas que há muito passam despercebidos ou não valorizados no nosso sistema literário.

A invisibilidade destes(as) autores(as) e suas produções se deve ao fato de a literatura brasileira feita por autores(as) conhecidos e reconhecidos, tidos como canônicos, desenvolver-se sob critérios e bases ideológicas que, mesmo promovendo a homogeneização na diversidade cultural da nação, termina por construir um discurso que ratifica as hierarquias e a consolidação dos papéis sociais dos sujeitos já estratificados, onde uns, brancos e de maior poder aquisitivo, estão historicamente no poder de mando, e outros, negros e mulatos, grande maioria da população desprivilegiada, estão sob o crivo do subjugamento econômico, político e social.

Isso vem indicar que a literatura, antes de ser compreendida como “arte com um fim em si mesma”, é o espaço de discussão das potencialidades dos sujeitos culturais e da problematização dos papéis sociais na construção de “imagens e narrativas auto-representativas” (SOUZA, 2004), e de visibilidade de vozes até então “abafadas” no discurso hegemônico e excludente.

O falar do sujeito negro(a), seja como personagem central dos textos literários, ou como autor(a), revigora a diversidade de vozes enunciadas na matriz cultural brasileira, revitaliza as identidades culturais, e propõe reverter o cenário moldurado numa formação centrada no imaginário ocidental, branco e europeu vigente, quando apresenta estratégias que tendem a alterar as relações e a política de representação, como nos indica Hall, ao tratar das “novas etnicidades”.

Além disso, ao se colocar desta forma no cenário literário brasileiro, os(a) autores(as) afro-brasileiros(as), retomando as raízes da cultura africana, desconstruindo imagens estigmatizadas e estereotipadas do(a) negro(a) ou mestiço(a) que costumeiramente se encontram nas produções eurocentradas e problematizando o lugar de subjugamento, interfere, conforme a professora Florentina Sousa, “nos modos de pensar da sociedade e intervém nos sistemas de produção de valores e nos padrões de gosto da cultura brasileira” (SOUZA, 2004, p. 282).

Tratamos aqui da produção de um dos poetas importantes da primeira metade do século XX, Solano Trindade. Artista e ativista da causa popular, sua vida de militante político está intimamente ligada à de produtor cultural. Poeta, teatrólogo, pintor, escritor, estudioso das tradições populares, Solano Trindade (1908-1974), que neste ano comemora centenário de nascimento, fundou o Centro Cultural Afro-brasileiro, a Frente Negra Pernambucana, (1936), juntamente com Abdias do Nascimento, o Teatro Experimental do Negro (1944) e com Edison Carneiro, em 1950, O Teatro Popular Brasileiro. Publicou Poemas negros (1936), Poemas de uma vida simples (1944), Seis tempos de poesia (1959) e Cantares ao meu povo (1961). Em 2008, foi editado o volume Poemas antológicos, seleção e introdução de Zenir Campos Reis, que traz poemas de linhas temáticas recorrentes na obra do autor como o cotidiano, as tradições africanas, o amor e o apelo à luta e à resistência cultural. A seleção não perdeu de vista os poemas antológicos de Solano Trindade já então mais conhecidos do que o próprio autor, como o “Tem gente com fome” e “Cantos dos palmares”.

Pela sua trajetória, o artista estava onde o povo estava porque, sendo ele fruto da classe popular, fez de sua obra literária o espaço de voz e de ação de sujeitos populares, primando por reconstruir a história e imagem do Brasil, a partir do ponto de vista do negro.

Em “Sou negro”, Solano Trindade elabora sua árvore genealógica, recorrendo a elementos da ancestralidade africana como “tambores, gonguês e agogôs”, enaltecendo a atitude de revide do negro diante do subjugamento e evidenciando as guerras e revoltas acontecidas que vêm desmitificar a imagem estigmatizada do negro condescendente e abnegado:

Meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh’alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs.

[...]

Depois meu avô brigou como um danado
nas terras de Zumbi
era valente como quê
na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
não foi um pai João
humilde e manso.
[...]
Na minh’alma ficou
O samba
O batuque
O bamboleio
E o desejo de libertação. 
                   (O poeta do povo, p. 48)

 

De maneira lúcida e simples, os jogos infantis - amarelinha, bola de gude -, cantigas de ninar, ditados populares, pregões constituem muitos de seus poemas para a elaboração do espaço de vivência e do cotidiano privilegiado pelo eu poético, assim como as manifestações populares como o bumba-meu-boi, o lundu, a capoeira, o samba, ritmo e melodias que transpiram vida no corpo poemático:

Bumba-me-boi
Da minha infância
“Seu capitão
Minha fantasia
“Mateu Bastião”
Primeiro poema
Que o povo me deu (...). 
(Poemas antológicos de Solano Trindade, p.23)

 

Acompanhado a tal proposta, o poeta apropria-se da linguagem do povo na validação de um substrato linguístico até então incompatível com a linguagem culta dominante na produção literária canônica. E isso ele reafirma de maneira clara em “Senhora gramática” utilizando-se do próprio português padrão para ironicamente destituí-lo do centro e reiterar o lugar da língua do povo em outros poemas.

Senhora gramática
Perdoai os meus pecados gramaticais
Se não perdoardes Senhora
Eu errarei mais. 
(Poemas antológicos de Solano Trindade, p. 56)

 

Essa postura com a linguagem não diferencia da postura diante das questões sociais e políticas. O eu poético de Solano Trindade não traz piedade para com o povo desprovido de bens político-econômicos. Não encontramos lamentações e autocomiseração na sua dicção poética. Há um sujeito enunciador que funde arte e política, e com isso, ainda sob as palavras de Florentina Souza, Trindade vai ser “precursor de discursos produzidos por grupos culturais e pedagógicos, protesto, produção de discursos identitários e festa” (2004, p. 286).

Outro ponto importante na poética de Solano Trindade é o tom de conversa que em alguns poemas se instaura. Na Antologia já citada, encontramos os poemas “Convocação”, “Abençam Dindinha lua”, “Abençam papai, que bicho é esse?” “Conversa com Luci” e “Chamada” com esse tom. Neste último, usando verbos na segunda pessoa do plural, dirige-se aos poetas para clamar uma estética tocante à realidade, em sintonia com as dores do mundo, já que são os poetas que conhecem o “segredo da vida”:

Poetas despertai enquanto é tempo
antes que a poesia do mundo
vá-se embora
antes que caia sobre o homem
um peso insuportável...
Vinde correndo
cantar o vosso canto de Amor
para que as crianças
não sucumbam
Vinde com a vossa poesia
socorrer as mulheres
para que elas não caiam em desespero
Vinde poetas
pois vós
conheceis o segredo da vida...
(Poemas antológicos de Solano Trindade, p. 24)

 

Em “Conversa”, o eu-poético, falando com o outro, enuncia sua auto-estima, aponta nas oito estrofes do poema atividades comumente desempenhadas pelo segmento negro, no espaço doméstico, do campo, religioso e artístico, passando pelos sofrimentos, para finalizar o poema repetindo a primeira estrofe, reafirmando a preservação do seu lugar: “— Eita negro”! / quem foi que disse, /que a gente não é gente /Que foi esse demente, / se tem olhos não vê...”.

Comungando com a concepção de arte encontrada em autores africanos como Noémia de Sousa e José Craveirinha, de Moçambique e Agostinho Neto, de Angola, podemos perceber nos poemas de Solando Trindade o protesto e engajamento pela palavra frente aos problemas sociais, a posição de abdicação dos afetos, das glórias individuais em razão de, primeiro, alcançar os frutos da luta coletiva, da justiça social, quando só então o eu poético será pleno e capaz de amar, criar e sorrir, como nos poemas a seguir.

Eu ia fazer um poema para você
mas me falaram das crueldades
nas colônias inglesas
e o poema não saiu
ia falar do seu corpo
de suas mãos
amada
quando soube que a polícia espancou um companheiro
e o poema não saiu
[...]
perdão amada
por não ter construído o seu poema
amanhã esse poema sairá
esperemos.
(Poemas antológicos de Solano Trindade, p. 30)

 

Agora vejamos Agostinho Neto, em “Não me peças sorrisos”,

Não me exijas glórias / que ainda transpiro / os ais / dos feridos nas batalhas // Não me exijas glórias / que sou eu o soldado desconhecido / da Humanidade // As honras cabem aos generais // A minha glória / é tudo o que padeço / e que sofri / Os meus sorrisos / tudo o que chorei // Nem sorrisos nem glória // Apenas um rosto duro / de quem constrói a estrada / por que há-de caminhar / pedra após pedra / em terreno difícil // Um rosto triste / pelo tanto esforço perdido / - o esforço dos tenazes que se cansam / à tarde / depois do trabalho // Uma cabeça sem louros / porque não me encontro por ora / no catálogo das glórias humanas // Não me descobri na vida / e selvas desbravadas / escondem os caminhos / por que hei-de passar // Mas hei-de de encontrá-los / e segui-los / seja qual for o preço // Então / num novo catálogo / mostrar-te-ei o meu rosto / coroado de ramos de palmeira // E terei para ti / os sorrisos que me pedes.

A experiência poética se engendra do ideal de justiça e liberdade ainda distante de ser conquistado pelo segmento popular e negro. O sentido ético e étnico-social dos poemas de Solano Trindade leva-o, recorrendo à memória coletiva e histórica dos afrodescendentes, a poetizar fatos de injustiça e falta de liberdade do negro, silenciados pela história oficial. Desta forma, vigora em “Canto dos Palmares” uma épica moderna cuja estratégia do autor passa pela interlocução com poetas do cânone ocidental como Virgílio, Homero e Camões. A diferença de sua épica é que não há o herói marcado por uma inteireza cartesiana como nestes, mas heróis que no combate, tombados, submetidos à opressão e barbárie, realizam-se no corpo do poema como eu enunciador cuja palavra é arma de libertação contra a tirania.

Eu canto aos palmares / Sem inveja de Virgílio de Homero / e de Camões / porque o meu canto/ é o grito de uma raça / em plena luta pela libertação. //(...) Eu canto aos Palmares / odiando opressores / de todos os povos / de todas as raças / de mão fechada / contra todas as tiranias// (...) Repete-se o canto / do livramento, / já ninguém me segura / os meus braços... / Agora sou poeta, / meus irmãos vêm ter comigo, / eu trabalho / eu planto/ eu construo, / meus irmãos vêm ter comigo... // (...) Mas não mataram / meu poema. / Mais forte / que todos as forças / é a Liberdade... / O opressor não pôde fechar minha boca, / nem maltratar meu corpo, / meu poema / é cantando através dos séculos, / minha musa / esclarece as consciências, // Zumbi foi redimido... (Poemas antológicos de Solano Trindade, p. 137-143).

T.S. Eliot, no ensaio “As três vozes do poeta” explana as possibilidades de nos poemas existirem três vozes enunciadoras: “a primeira voz é a do poeta falando para si mesmo - ou falando para ninguém.”; “a segunda voz é a do poeta dirigindo-se a um auditório, grande ou pequeno.”; “a terceira voz é a voz do poeta quando ele procura criar uma personagem dramática falando em verso.”. (Eliot Apud Cristovão, p.1), Conceição Cristovão apresenta de maneira exemplar como isso se realiza na poética de Agostinho Neto. Daí identificarmos semelhanças de dicções em ambos os poetas e, pela leitura que fizemos, inferimos que as duas primeiras vozes também são predominantes na poética de Trindade. A voz do poeta falando de si e, mais comumente, a segunda voz do poeta em interlocução com seus pares em que se demarca uma identidade racial e social.

Por fim, esse breve comentário presta-se a uma homenagem àquele que, dentre outros da literatura brasileira, compreendeu o fazer literário e a arte em geral como modo de ser e de viver em prol da justiça e da igualdade, e com isso nos legou uma poética afrodescendente substancial e vigorante na literatura brasileira.

Referências

CRISTOVÃO, C. Vozes e silêncios na voz poética de Agostinho Neto: uma proposta de leitura plural. Disponível em http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=53 acesso em 20/10/2008.

ELIOT, T. S. Ensaios de Doutrina Crítica. Lisboa, Junho/1962.

NETO, Agostinho. Sagrada Esperança, Portugal, Printer, Novembro/1979.

TRINDADE, SOLANO. Poemas antológicos de Solano Trindade. (Org.) REIS, Z. C. São Paulo: Nova Alexandria, 2008.

SOUZA, Florentina. Solano trindade e a produção literária afro-brasileira. Revista Afro-Ásia, 31, 2004, p.311-293.

Notas

1. Texto anteriormente publicado no portal www.africaeafricanidade.com.br. Gentilmente cedido pela autora.

* Assunção de Maria Sousa e Silva é Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas e professora da Universidade Estadual do Piauí.

 

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