Solano Trindade, o poeta do povo e do negro

Daniela Guedes*

 

A figura de Solano Trindade constitui-se em verdadeiro ícone no campo da literatura afro-brasileira. Sua atuação como poeta e agitador cultural, no momento em que os brasileiros remanescentes de africanos incrementavam as lutas em prol de sua afirmação identitária, inclusive através de organizações de cunho social e político, passou à história e figura contemporaneamente como importante referência do que seja o intelectual participante. Envolvido com o pensamento de esquerda, o autor constrói uma obra em que o fator econômico e as desigualdades sociais são abordados em relação íntima com as questões de raça e cor.

A respeito de seu livro Poemas d’uma vida simples, de 1944, Corsino de Brito destaca o texto como “poesia em essência, a serviço de uma causa, transformismo do navio negreiro em brados de sonoridade” (Apud TRINDADE, 1999, p. 28). Já Roger Bastide, em carta datada de 04/10/1946, descreve suas impressões sobre a obra: “o senhor faz dos seus versos uma arma, um toque de clarim, que desperta as energias, levanta os corações, combate por um mundo melhor”. (TRINDADE, 1999, p. 31). O sociólogo alicerça sua leitura em textos do porte de “Tem gente com fome” (TRINDADE, 1981, p. 34-5), que transforma em gesto político a figuração poética dos sons do trem da Leopoldina:

Trem sujo da Leopoldina,
Correndo correndo,
Parece dizer:
Tem gente com fome,
Tem gente com fome,
Tem gente com fome...
[...]
Vigário Geral,
Lucas, Cordovil,
Braz de Pina
Penha Circular,
Estação da Penha,
Olaria, Ramos,
Bom Sucesso,
Carlos Chagas
Triagem, Mauá,
Trem sujo da Leopoldina,
Correndo correndo
Parece dizer:
Tem gente com fome,
Tem gente com fome,
Tem gente com fome...
Tantas caras tristes,
Querendo chegar,
Em algum destino,
Em algum lugar...
[...]
Só nas estações,
Quando vai parando,
Lentamente,
Começa a dizer:
Se tem gente com fome,
dá de comer...
Se tem gente com fome,
dá de comer...
Mas o freio de ar,
Todo autoritário,
Manda o trem calar:
Psiuuuuu...
(TRINDADE, 1999, p. 87-8)

 

O poema vai enumerando as estações de onde entram e saem os trabalhadores pobres da cidade, exibindo seus rostos e angústias. A onomatopeia “tem gente com fome” ganha um sentido paródico frente ao conhecido “café com pão”, do poema de Manuel Bandeira. Enquanto o trem deste passa pelos canaviais bucólicos do Nordeste, o de seu conterrâneo percorre os subúrbios da então capital do país para clamar pelo “dá de comer”.

Solano Trindade, considerado “o poeta do povo”, epíteto que muito o agradava certamente por resumir seu projeto de artista e intelectual profundamente identificado com a cultura que emana das margens do tecido social, fazia questão de demarcar o caráter popular da literatura que produzia:

Tenho pelos homens de cultura uma grande simpatia, sejam modernos ou acadêmicos; tenho aprendido muito com todos eles, através de seus livros e das suas conversas, porém a minha poesia continuará com o estilo do nosso populário, buscando no negro o ritmo; o povo, em geral, as reivindicações sociais e políticas; e nas mulheres, em particular, o amor. (TRINDADE, 1981).

É relevante observar que a poesia desse autor não se volta somente para a cultura do povo de modo mais abrangente, mas se dedica de maneira muito especial, e até mesmo militante, à cultura afro-brasileira. O poeta fala de dentro dessa cultura, ou seja, o eu lírico é um eu que se quer e se vê negro. Solano Trindade mostra suas raízes negras e dá um grito negro que revela uma visão diferente, uma visão do Outro:

Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh’alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs.
Contaram-me que meus avós
Vieram de Loanda
Como mercadoria de baixo preço
Plantaram cana pro senhor do engenho novo
E fundaram o primeiro Maracatu.
Depois meu avô brigou como um danado
nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso.
Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou.
Na minh’alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação.
                  (TRINDADE, 1999, p. 48).

 

A poesia de Solano Trindade está a merecer uma edição que reúna o conjunto da obra, para que possa obter o reconhecimento crítico que lhe é devido e integrar em definitivo a história da literatura brasileira. Zilá Bernd compara sua produção à dos autores negros das Antilhas e eleva o poeta a uma dimensão internacional: “alicerçando-se numa busca de identidade, que não é apenas individual ou nacional, mas solidária com todos os negros da América, a produção poética de Solano Trindade é talvez a que, dentre todos os poetas brasileiros, apresenta o maior número de elementos comuns com a melhor poesia negra que já se produziu nas três Américas”. (BERND, 1992, p. 46-7).

Esse aspecto diferenciador – justamente o componente étnico e cultural, leitor e tradutor da diáspora – funciona de modo a suplementar significativamente a obra de Solano Trindade como marca de referência na formação da poesia afro-brasileira.

Referências

BERND, Zilá (Org.). Poesia negra brasileira: antologia. Porto Alegre: AGE : IEL : IGEL, 1992.

TRINDADE, Solano. Cantares ao meu povo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

_______. O poeta do povo. (Org. Raquel Trindade). São Paulo: Cantos e Prantos Editora,1999.

Nota

* Daniela Guedes é graduada em Letras pela UFMG.

 

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