O Afrodescendente em busca de novos horizontes

 

Ana Bárbara Valentim Silva*

Soltaram meus braços
Mas fecharam janelas e portas
Santiago Dias

Santiago Dias, mineiro de Nova Belém, escreve desde os doze anos de idade. É poeta, cronista e ator. Através da escrita fala por muitos, suas palavras representam não só o afrodescendente, mas também outros grupos minoritários, como a mulher e o indígena. Encontra-se em sua obra uma voz que não se cala em busca de justiça social.

Ao longo do século XIX, a existência oficial da escravidão foi sendo mundialmente proibida. No Brasil, a abolição se deu no dia 13 de maio de 1888 com a promulgação da Lei Áurea. A relativização dessa liberdade concedida é feita pelo poeta na epígrafe citada, ao aludir à impossibilidade de inserção social dos afro-brasileiros. Pela leitura desses versos, podemos entender que esta liberdade não corresponde à autonomia do descendente de escravos. O retrato da situação marginal dessa população pode ser encontrado em alguns textos de Santiago. A crônica "Filho da dor e pai do prazer", por exemplo, inicia-se com uma menção ao passado escravocrata:

Uma vez um negro velho contou-me que no tempo da escravidão os homens dormiam acorrentados nas barras de ferro que havia nas paredes das senzalas. Depois de trabalhar exaustivamente e maltratados tinham que se ajeitar para descansar de qualquer maneira naquele lugar sujo e fétido. (O Plantador de manhãs. Crônicas. Inédito).

Percebe-se a denúncia do tratamento dispensado aos escravos, e a referência à dura realidade a que estavam submetidos na sociedade escravocrata. Se, por um lado, o sofrimento e a insatisfação eram motivo de tristeza, por outro, a música e a capoeira representavam alegria e prazer. A dualidade dor/ prazer anda lado a lado na crônica. Privados da possibilidade de serem donos de si mesmos, os escravos viam, na manifestação cultural afro-brasileira, uma maneira de manter viva sua tradição ancestral. Para tanto, faziam uso de alguns artifícios, como tocar durante a noite e usar instrumentos como código de comunicação, inclusive durante fugas, a fim de enganar os perseguidores que pensavam ser canto de pássaros. Assim, os afrodescendentes conseguiam preservar parte de sua cultura. Neste sentido, a música surge, nas senzalas, como forma de sufocar a dor e o lamento e como forma de resistência, para depois se configurar como manifestação tipicamente afro-brasileira. Por isso, o samba é entendido como “filho da dor e pai do prazer”.

O samba, enquanto manifestação cultural afro-brasileira, nasceu da influência de ritmos africanos adaptados para a realidade dos negros brasileiros e, ao longo do tempo, sofreu transformações de caráter social, econômico e musical até atingir as características conhecidas hoje. É a respeito disso que nos fala Santiago, na crônica citada. Nela, o autor, apresenta os elementos que compõem o samba e ao mesmo tempo resgata a identidade cultural dos seus ancestrais, construindo a história deste ritmo através da descrição dos elementos de percussão que o acompanham.

Segundo o narrador, a história foi relatada a ele por um ex-escravo baiano, João Lourenço Dias, seu bisavô. E serve de elemento propulsor e de resistência, conforme ressalta o final da narrativa:

Ele partiu sem rancores, sem tristeza e nos deixou uma lição de vida. Deixou um caminho feito com foice e machado. É nesse caminho que sigo semeando a esperança para um futuro melhor. (O Plantador de Manhãs, crônicas, inédito).

Dentro de uma perspectiva histórico-cultural, o autor valoriza as tradições afro-brasileiras e ao mesmo tempo abre espaço para o que está por vir. A estereotipia do afrodescendente é um aspecto que o inquieta. Santiago nos convida a refletir a respeito desse tema, com palavras ternas, porém, sem abrandar a gravidade e importância do assunto:

Temos que parar por alguns instantes e dar um passeio dentro do nosso eu... talvez aí vamos perceber que somos a soma de todas as cores. Somos índios, amarelos, negros e brancos. Como disse um amigo: - “Isso está claro nos traços. Se não é no cabelo é na cor. Se não é na cor, é nos lábios ou nariz. O nosso país é um jardim. (...) O Brasil é um jardim de várias etnias. (O Plantador de Manhãs, crônicas, inédito).

Nesta crônica, intitulada “Em busca de novos horizontes”, Santiago faz referência ao tráfico negreiro e ao passado dos povos africanos que foram arrancados de suas pátrias e arrastados para diversos lugares do mundo, sendo vendidos como animais, separados de suas famílias, sem nenhum respeito para com a dignidade humana. No trecho citado, percebemos que muitas vezes esquecemos a identidade afro-brasileira e a riqueza dessa contribuição para valorizar apenas o componente “branco”, enquanto todos deveriam ser respeitados e estimados, sem distinção de cor.

A escrita de Santiago, não só na prosa, como também na poesia, é a mediadora de sua insatisfação frente ao descaso para com a diversidade étnica e cultural brasileira. Estilisticamente, observa-se que a maioria de seus poemas são constituídos por versos livres e brancos e suas estrofes são irregulares, não havendo submissão a fórmulas pré-determinadas. Com palavras simples e significativas o autor transforma temas sérios, muitas vezes esquecidos, em algo reflexivo:

Fazem-nos acreditar
Que somos ineficazes
Calam quem clama por liberdade
E todos os dias
Surge um muro em meu caminho.
           (O menestrel desvairado, inédito)

 

Mais uma vez, o autor assume sua identidade e clama por espaço social. Sabe-se que a abolição acabou com a condição de escravo do afro-brasileiro, mas não houve uma política de inserção social dos mesmos, com distribuição de terras, acesso à educação, assistência econômica e social, enfim, a liberdade não promoveu condições para que a cidadania acontecesse. Ao iniciar a crônica “Longe da terra”, o autor reflete sobre esta questão:

Há anos o Brasil comemora a ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA, e em todos esses anos, quase nada, ou nada se mudou até agora. O negro saiu da senzala e foi habitar as margens dos rios e as favelas. Era o fim de um pesadelo quando começava outro pesadelo. (O menestrel desvairado, inédito).

Mais uma vez, a condição marginal do afro-brasileiro é tema do texto de Santiago. No poema citado, essa mesma condição se manifesta quando o eu lírico afirma “Fazem-nos acreditar / que somos incapazes”. A imagem predominante do branco conduz o afrodescendente a uma auto-rejeição, pois, muitos, para conquistarem espaços sociais, passam a assimilar valores do grupo socialmente dominante para que assim sejam melhor aceitos. Muitas vezes, tal assimilação leva o afrodescendente a negar a si mesmo, sua cultura e seus valores. Observemos esse aspecto em outro texto do autor: “muitos negros por sua vez interiorizam um complexo de inferioridade em relação a sua condição e, por isso não assumem a negritude e tem como padrão ideal a situação do branco”. (O menestrel desvairado, inédito).

A alusão ao passado escravocrata e ao branqueamento, na obra de Santiago, propõe-nos um questionamento dos valores sociais e culturais vigentes em nossa sociedade além de valorizar a identidade afro-brasileira. Para finalizar vejamos o poema “Raça”:

Os tambores da África silenciavam
A flor de nossa raça
Nossas mulheres
E meus guerreiros irmãos
Foram raptados...
Os tambores da África silenciaram

     (O menestrel desvairado, inédito).

Este poema curto, composto de uma estrofe, nos soa como um desabafo e denúncia. O colonizador europeu impôs sua lei, sua língua, sua fé, silenciando a identidade afro.

Santiago difunde em sua obra a busca por integração social, por aceitação de etnias, por liberdade cultural, e, sobretudo, por novos horizontes. Neste sentido, seus textos podem ser entendidos como produção literária capaz de levantar questionamentos e promover reflexões acerca da identidade étnica brasileira. Assim, sua literatura vislumbra a existência de um futuro promissor para o afrodescendente e para outros grupos minoritários, que se encontram à margem de nossa sociedade.

Referências

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura, política, identidades. Belo Horizonte: FALE / UFMG, 2005.

SOUZA, Florentina da Silva. Afrodescendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

MENEZES, Maria Edna de. Reflexos negros: a imagem social do negro através das metáforas. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, 1998.

BIBLIOTECA NACIONAL (BRASIL). Para uma história do negro no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1988.

BERND, Zila; BAKOS, Margareth Marchiori. O negro: consciência e trabalho. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1991.

Nota

* Ana Bárbara Valentim Silva é graduada em Letras pela UFMG.