Vozes afrodescendentes e metalinguagem na poesia de Salgado Maranhão

Eduarda Rodrigues Costa*

Poeta brilhante da geração atual, Salgado Maranhão quando criança teve contato com o verso através da literatura de cordel. Aos dezenove anos já escrevia sonetos, participando de recitais e desde então a poesia é parte de sua vida. Possui diversos livros publicados: Punhos da serpente (1989), Palávora (1995), O Beijo da Fera (1996), Mural de ventos (1998) – Prêmio Jabuti de poesia – Sol sanguíneo (2002), Solo de gaveta (2005), A pelagem da tigra (2009) e da coletânea A cor da palavra (2009), que reúne os títulos anteriores e ainda alguns inéditos.

Salgado Maranhão destaca-se pelo trato apurado da linguagem e pelo domínio da mesma. Sua relação de intimidade com a palavra escrita denota uma postura centrada diante do fazer poético e da vida. Influenciado pela filosofia oriental, o poeta traz para seus versos o estado de equilíbrio empenhado na relativização dos valores instituídos. O ser humano mostra-se cada vez mais limitado e distanciado da realidade em que vive e torna-se necessário soltar as amarras do convencionado e experimentar o desconhecido. É isso que o autor faz com sua poesia: toma a palavra e desnudando-a de seus significados usuais, explora sua condição polissêmica apontando para o caráter simples e transitório das coisas.

Segundo Carlito Azevedo, na apresentação do livro Palávora, a produção poética do autor é marcada por extremos e sutilezas:

poesia colhida ao rés da existência, no banal e no fortuito, cheia de sutilezas que parecem originar-se na região do desencanto, do esvaziamento utópico, onde o demiurgo dá lugar ao observador, e o poeta passa a trocar as grandes pelas pequenas esperanças: uma rede gostosa ou uma franja de sol que nos rosse pelo dorso. (Apud MARANHÃO: 1995)

Tal posicionamento é evidenciado no desvendar de sentidos colhidos no viés do texto. O próprio título já denuncia esse caráter múltiplo de significação que se estende por toda a obra. “Palávora” engloba os termos “palavra” e “voraz”, que por sua vez representam a inquietude do signo em se colocar em movimento e a avidez em se tornar poesia. Ainda compreende o verbo “lavorar”, apontando para o trabalho de lapidação desenvolvido com o signo pela escrita. O neologismo também faz lembrar de “pólvora”, que indica o poder e a capacidade de tumulto exercida pela palavra.

Em “Horas rubras” o eu enunciador vê-se na necessidade de rugir, pois falar não adianta mais. O homem transmuta-se em fera para usar a “palávora”, a linguagem sem amarras destituída de estereótipos:

o jeito é rugir
                 a palávora
e despir a voz
de sua língua
                   de sombras.
[...]
para além das vísceras
há uma música
                    que açoita os ossos
como se feita
para ninar os mortos.
 
as horas estão rubras
os heróis estão rotos
e a noite é dos lobos.
                     (Palávora, p. 37) 

O discurso não se detém apenas no âmbito da linguagem, remete também para a questão social. A escolha do vocabulário, bem como a composição rítmica, apontam para especificidades de uma voz afrodescendente que emerge do texto. O eu lírico ouve uma música feita para além de seu corpo e esse som reproduz a mesma dor causada pela chibata, porém esta é sentida na alma dos vivos e dos mortos. É a memória ancestral que traz o som de lamento, aludindo que os tempos não mudaram e o preconceito permanece imperioso, pois não há mais heróis. Outro aspecto importante que marca o poema é a descrença e a desilusão que caracterizam o sujeito pós-moderno. Nesse sentido, percebemos um eu lírico cético, cujo processo de identificação está comprometido pela fragmentação dos “heróis” e pelo caráter transitório de suas “verdades”. Ele se encontra na arena onde cada um luta por si.

Nessa mesma linha, o poema “Deslimites 2” exprime o desencanto do sujeito com a realidade em que se encontra. Com o recurso da personificação, o século se esvai e dele fazem parte a usura dos bens, da glória, certamente não alcançados por mãos mais calejadas, verdadeiras donas dos méritos. Tencionando delatar os disfarces de que a falsa harmonia do país se traveste, o poeta utiliza o termo “primavera” com significação pejorativa, contrariando o seu uso comum. Neste caso, tal palavra vem a designar possivelmente essa classe acumuladora de bens às custas do mais fraco. Vestida de tule, que reforça o caráter de delicadeza, a “primavera” destila seu ódio e seu veneno pelas mãos, ou melhor “sob as unhas do feitor”. Já menos disfarçada, a servidão ou escravidão se regozija e delira chagar o outro:

[...]
expira o século
                    a vinte
em usura exausto
a destilar cinza ao suor,
 
de tule
                    a primavera gane
                    sob as unhas do feitor,
 
de tanga
           a servidão sorri
           talhada ao delírio voraz
           de ferir.
 
quem paga o carcereiro
do mundo,
o sensor da paralítica paz?
 
[...] 
 
em que sonho
esqueci meus limites?
                    (Palávora, p. 45-47)

 

No trecho acima, percebe-se uma identificação entre o sujeito e sua história, de modo que este questiona quem são os donos da prisão que governa a todos e quais são leis que regem o mundo a sua volta. Numa atitude de reflexão sobre as circunstâncias em que se encontra, este sujeito se depara com o verdadeiro caos e incrédulo de tanta hipocrisia, pensa ser tudo um sonho.

Em “Deslimites 10”, persiste esse ponto de vista identificado com um imaginário afrodescendente, porém traz um tom mais afirmativo. O poema inicia com o discurso de resistência que pode ser atribuído aos escravos e contradiz o mito de que estes foram passivos com o regime. Assumindo uma voz que fala por uma coletividade, este sujeito descreve o modo como fez com que sua cultura, que fora “entregue aos urubus”, tenha resistido e se consolidado como exemplo de manifestação cultural. E, abraçando sua diferença, este eu lírico mostra-se como aquele que transgride a ordem instituída, que não recua diante das barreiras e que, na mais cinzenta quarta-feira, sempre encontra um colorido de domingo.

eu sou o que mataram
e não morreu,
o que dança sobre os cactos
e a pedra bruta
                     – eu sou a luta.
o que há sido entregue aos urubus
e de blues
              em
                  blues
endominga as quartas-feiras.
                                  – eu sou a luz
sob a sujeira.
[...]
 
eu sou ferro. eu sou a forra.
 
e fogo milenar desta caldeira
elevo meu imenso pau de ébano
obelisco as estrelas.
                      (Palávora, p. 61-62)
 

Assim como a poesia, capaz de atribuir beleza ao mais ínfimo dos objetos, este sujeito considera-se iluminado, cheio de esperança em meio à imundície. Nota-se ainda que o poeta escolheu “sujeira” para se opor a “luz” e não escuridão, termo carregado de metaforicidade e geralmente empregado com valor pejorativo. Tal postura sugere a recusa ao embrutecimento e aprisionamento da palavra, principalmente em favor do preconceito, que limita esta e tudo o que a rodeia. Assemelhando-se ao fogo que mantém quente a caldeira, o eu enunciativo se apresenta como porta voz da memória ancestral africana, que é milenar. E num ato de homenagem aos antepassados, este eleva seu cajado que é de ébano, negro como sua pele.

Noutra linha, “Ode à rede” é exemplo de sensualidade e delicadeza, de modo que este leito de algodão é às vezes confundido com a figura feminina. O delineamento que adquire com o corpo e a sua forma côncava como o “abraço de mulher” são imagens sugestivamente criadas para o deleite e contemplação:

o design da rede
se aprimora no corpo
 
e no espaço. seu côncavo
abraço de mulher
               (Palávora, p. 75)

Construído sob apurado erotismo, “Fortuna 2” exprime o desejo pelo sexo e confere a este valor de tesouro. Este sujeito não vê, mas “plurivê”, imagina com todo seu querer esse objeto cobiçado. Sendo este largamente metaforizado como flor no discurso poético, o nosso autor transcende e compara a razão de sua inquietude a uma “orquídea de dez mil pétalas” a fim de exprimir a dimensão do seu desejo:

meu olho plurivê
prospecta
             tua mina
entre coxas
plataformas
teu minério
– orquídea de dez mil pétalas.
                    (Palávora, p.74)

Para o poeta, assim como a orquídea do trecho acima, a palavra se conforma na espera de ser poetizada, e é nesta constante reflexão sobre o fazer poético e o existir humano no mundo que Palávora se estrutura.

Já em Sol sanguíneo, seu mais recente livro, são preservadas todas essas características e percebe-se ainda um aperfeiçoamento da técnica escrita. Adriano Espínola, a respeito da obra acrescenta:

diria que, pela maneira com que trata o corpo da língua, neste livro – a golpes delicados de imagens e ritmos precisos, praticando aqui uma espécie de reiki verbal, em que infunde doses de energia vital à linguagem cotidiana – o resultado desse trato não é outro senão o de proporcionar prazer e encantamento ao leitor. O que me leva à conclusão que a poesia é uma arte corporal; lê-la ou praticá-la faz bem ao corpo. Como nos demonstra aqui a mão de mestre de Salgado Maranhão. (In http://www.revista.agulha.nom.br/ag31livros.htm).

O poema de abertura que dá nome ao livro remete ao tempo da posse de terras. Tudo que nela existia também foi violado e tratado como bens comerciais. “Sol sanguíneo: terra chã” faz esse movimento de volta às origens de seu povo quando o eu lírico narra a chegada do navio negreiro no cais. Enquanto isso as noites, “a terçar atabaques”, esperavam os cativos que estavam a chegar, evidenciando o sincretismo de elementos da cultura européia e africana.

[...]
Do cais rasurado de esperas
velam noites a terçar
atabaques.
 
Minha terra é minha pele.
 
[...]
vieram o sol –
e o azeviche
conjugado à carne;
e vieram moendas de açúcar
e súplica;
e vieram demandas de açoite
e séculos
a desatar fonemas
à fervura.
      (Sol sanguíneo, p. 15-27)
 
Nesse trecho do poema, o eu enunciador assume sua especificidade étnica e cultural encarando a terra como segmento de sua pele. Nota-se um cuidado na opção pelo vocábulo que irá representar a sua cor: o azeviche, tipo de carvão fóssil utilizado em joalheria. O efeito seria outro se em seu lugar estivesse simplesmente “carvão”. Além disso, destaca que junto com os escravos vieram as “moendas de açúcar”, que representa uma das contribuições dos negros à economia brasileira, e as súplicas dos cativos tratados como mercadoria. Desse regime vieram os açoites que duraram séculos e a imposição cultural dos brancos sobre os negros.

Tratados apenas como corpo vazio de cultura e espírito, esses homens foram entregues ao cativeiro devido à ganância do branco que se julgava superior. Além de terem sido separados do seu povo, viram-se obrigados a receber os valores dos senhores, que lhes eram impostos, em geral, de maneira violenta.

Já em “Mater”, o eu lírico faz uma homenagem à mãe África e chama a atenção para o descaso da história em representar sua herança entre o povo brasileiro. Seus descendentes em nosso país foram obrigados a se curvarem diante do branco. Porém o fio de sua memória ancestral, como “impressões digitais num rio”, mantém ligados seus filhos ao longo dos tempos:

I
 
De ti não há sequer
um álbum de família:
retratos da infância
nos campos de arroz e gergelim.
 
Talvez reste em pensamento
pedaços de tua voz
                            no vento
como impressões digitais
num rio.
 
II
 
No dia em que o azul
roubou teus olhos
e o silencio rival rasgou
teu nome,
cotovias cantaram no teu rastro.
No dia em que a manhã
cerrou teus olhos.
          (Sol sanguíneo, p. 94-95)

No poema, o azul aparece como metonímia para o mar e metáfora para o traficante que levara os filhos da mater africana. Silenciosa foi como se deu a captura e dura foi a partida. Porém quando não havia mais corpo, foi ao som das cotovias, aves que voam para a África no inverno, que o espírito retornou a terra mãe.

Noutra linha, totalmente metapoética, ”Fero” descreve a inquietação que a escrita causa ao poeta e este, que tenta representar o mais inimaginável como a oração dos pássaros, vê-se numa luta constante com a palavra quando esta parece se fechar às possibilidades de figuração:

Tento esculpir a Litania
dos pássaros
e as palavras mordem
a inocência. Aferram-se
ao que é de pedra
e perda.
 
[...]
insights de insânia
e súplica; volúpias insolúveis
acossam-me a página
em branco
qual bandido bárbaro
ou mar revolto
a rasgar a calha
do poema.
      (Sol sanguíneo, p. 65-66)
 

O processo de escrita configura-se conflituoso; o poeta é tomado por uma onda de embriagante loucura e perseguição. Seu maior inimigo então se vislumbra na “página em branco” a exibir o não-resultado de trabalho. É este, portanto um forte veio da poesia de Salgado Maranhão, escritor comprometido com a reflexão da linguagem, empenhado em recriá-la, explorá-la ao máximo e encontrar, nas bordas da palavra, o sentido buscado. Foi possível perceber também o envolvimento com situações íntimas de um sujeito que, assumindo-se como negro filho de África, deixa vozes de tempos remotos falarem em seus poemas, aludindo às atrocidades do passado escravo e rebelando-se contra as do presente.

Referências

AZEVEDO, Carlito. Apresentação. In: MARANHÃO, Salgado. Palávora. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.

ESPÍNOLA, Adriano. In http://www.revista.agulha.nom.br/ag31livros.htm

MARANHÃO, Salgado. Palávora. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.

MARANHÃO, Salgado. Sol sanguíneo. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

VALENTE, Luís Fernando. O traço apolíneo de Salgado Maranhão. In: PEREIRA, Edimilson de Almeida (Org.). Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições; Juiz de Fora: PPG-Letras/ Estudos Literários/ Faculdade de Letras - UFJF, 2010, p. 460-467.

Nota 

* Eduarda Rodrigues Costa é Graduada em Letras pela UFMG e ex-bolsista do projeto de pesquisa "Afrodescendências na literatura brasileira".

 

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