A maldição de Canaan: um clamor pela igualdade racial

 

Michele Gonçalves*

 

A nação ainda não se libertou dos seus pecados; o liberto ainda não encontrou na liberdade a sua terra prometida. O que quer de bom que tenha vindo nesses anos de mudança, a sombra de um profundo desapontamento paira ainda sobre o povo negro – um desapontamento ainda mais amargo porque o ideal inalcançado ainda era irrealizável, exceto para a ignorância simples de um povo humilde.

Du Bois

 

A literatura afro-brasileira é uma das formas de representação do universo do negro em nosso país. Através dela temos acesso à sua cultura, além de depararmos com as insatisfações de um povo que tem sido oprimido ao longo dos séculos por uma sociedade de hegemonia branca imbuída de convencionalismos excludentes e fomentadores da desigualdade racial. Entretanto, vale ressaltar: para que uma obra se inscreva nesse contingente discursivo, não basta ter sido escrita por um afro-descendente. É importante analisar os assuntos abordados e, sobretudo, o ponto de vista que enforma sua perspectiva de mundo. A questão não é pacífica, como sabemos. Ironides Rodrigues, escritor e intelectual historicamente vinculado ao movimento negro, assim se posiciona:

 

A literatura negra é aquela desenvolvida por autor negro ou mulato que escreva sobre sua raça dentro do que é ser negro, da cor negra, de forma assumida, discutindo os problemas que a concernem: religião, sociedade, racismo. Ele tem de se assumir como negro. (Apud IANNI: 1988)

 

A fala de Rodrigues expressa o radicalismo dos primórdios do movimento negro, que exigia dos escritores a postura incisiva de protesto contra o racismo e de afirmação identitária da “minoria” afro-descendente, tão estigmatizada pelo preconceito disfarçado existente no Brasil. E Romeu Cruzoé bem se enquadra nessa postura. Tendo nascido em 1915 e presenciado as primeiras iniciativas de organização política refletidas na imprensa, nas organizações recreativas e culturais e na própria Frente Negra Brasileira dos anos 1930, o autor surge vinculado aos começos de uma expressão artística e literária pautada pela intencionalidade de manifestação explícita do pertencimento étnico.

 

Publicado em 1951, o livro A maldição de Canaan conta a história de um afro-descendente que sofre a discriminação racial praticada no Brasil em meados do século XX. O jovem Ricardo conhece desde a escola o problema, quando é impedido pela professora de representar o papel principal em uma peça de teatro. A partir daquele momento, começa a notar que sua cor o distinguia das demais crianças. Durante a adolescência e fase adulta não vai ser diferente, pois torna-se alvo constante de desprezo e galhofas. Em muitos momentos da narrativa, o universo psicológico do personagem toma conta do texto, e este assume um caráter confessional, voltado para a angústia do protagonista frente à situação vivida: “minha cor era pretexto para me rebaixarem e eu teria que suportar humilhações durante a existência, pagar pelo crime involuntário e impraticado de ter nascido negro”. (CRUSOÉ, 1951:26).

 

Já de início é importante ressaltar a intertextualidade do livro com o discurso bíblico. O título do romance remete ao Gênesis, que dentre outras histórias, relata a vida de Noé, que era lavrador e possuía uma vinha. Um dia, Cam, um de seus filhos, depois de embriagar-se, o viu nu. Seguindo a tradição de proferir bênçãos ou maldições aos filhos e descendentes, Noé, irritado com a afronta, amaldiçoou a geração de seu filho a ser serva de seus irmãos. O castigo de Canaan, filho de Cam, foi carregar a marca de um delito que ele não cometeu.

 

O romance de Romeu Crusoé se apropria do motivo bíblico para representar o drama dos indivíduos postos à margem da sociedade por sua cor e condição de descendentes de escravos. Eis o tema central da obra. Narrado em primeira pessoa, o texto adquire um tom “biográfico” e transmite uma impressão realista de veracidade das ações vividas pelo narrador: “o feito deste livro é ceder a outros minhas experiências e sofrimentos, para que tirem dele algum ensino em proveito das relações sociais”. (CRUSOÉ, 1951:19). Para o crítico Osório Borba,

 

o romance de Romeu Crosoé não é, assim, criação arbitrária da fantasia, obra literária sem base na realidade social, ou imitação de obras estrangeiras com tema estranho ao Brasil. É, salvo engano, o nosso primeiro romance que articula os sofrimentos, a surda humilhação, a revolta surda dos negros, ulcerados por um preconceito secular que se manifesta em prevenções, desdéns e mesmo tentativas de segregação em tantos setores da vida social. (APUD Camargo: 1987: 81)

 

Esse tom de denúncia é marcante. A vida do protagonista é marcada por perdas e injustiças, sendo Ricardo órfão de pai e mãe. No período relatado na obra, nosso país já se gabava por não haver estabelecido aqui uma luta declarada entre as raças como houve nos Estados Unidos. Contudo, o livro nos mostra, por exemplo, que os negros eram mal recebidos em muitos espaços sociais tidos como “de brancos”. A única pessoa com quem Ricardo contava e dividia o teto era sua irmã Luzia. Ele sabia bem o que era, por exemplo, frequentar alguns lugares e não ser bem recebido. Além disso, o narrador encarna o jovem desenraizado, com poucos amigos brancos que o tratavam como igual. As palavras de ofensa dirigidas aos negros – como “preto é filho do diabo” –, evidenciam a crueldade do preconceito existente na sociedade, que propagava ainda a idéia de que o negro era raça inferior e, portanto, não possuía a imagem e semelhança de Deus. É importante salientar que esse pensamento, que vigorava no Brasil antes da abolição da escravatura, insiste em querer se propagar ao longo século XX.

 

Ricardo tenta não se abater com o estigma da cor, começa a trabalhar numa repartição pública em sua cidade e à noite ter aulas de inglês. Entretanto, ele se pergunta para que um preto deve aprender outros idiomas. A passagem deixa perceber que o narrador personagem chega a incorporar, ainda que por alguns momentos, a ideia racista de que os negros são desprovidos de capacidade cognitiva e, por isso, só servem para trabalhos que exigem o mínimo de raciocínio. Mesmo assim, ele dá provas de sua persistência indo para a capital à procura de melhores oportunidades de emprego. Com duas cartas de recomendação de seu professor e amigo Amâncio, Ricardo chega aos locais indicados por ele e, apesar de preencher todos os pré-requisitos necessários à admissão no trabalho, se choca com a barreira da cor. Ao se depararem com Ricardo, os supostos contratantes dizem sempre que a vaga já está preenchida.

 

Todavia não é só para conseguir trabalho que o afro-descendente se vê diante do preconceito. O romance representa as relações inter-raciais no Brasil como marcadas basicamente pela tensão, fato que indica o ponto de vista do autor empenhado em construir a voz narrativa irmanada à condição étnica e social vivida pelo personagem. Nesse contexto, algumas mulheres brancas chegam a ser apresentadas como prostitutas, fato que pode indicar certa contaminação pelo discurso excludente de rebaixamento do outro como forma de defesa. Esse possível revanchismo, contudo, nem de longe supera o discurso do lamento que prepondera nas reflexões de Ricardo:

 

Eu tinha que ser introverso à força. Sabia que, por causa da pele, não: por causa do orgulho da humanidade, muitas portas permaneceriam eternamente fechadas para mim. Ignorava quantas e quais eram, mas previa serem muitas. Por isso, procurava viver em mundos imaginários, que eu desejava existissem de verdade, onde não havia preconceitos nem violências de qualquer espécie; mundos sem fronteiras nem xenofobismos geradores de guerras; mundo de harmonia e amor. (CRUSOÉ: 1951, 78)

 

A passagem resume o tom que prepondera na narrativa. O isolamento faz com ele crie para si a utopia de um mundo em que as pessoas não se enxergam a partir da cor, mas pelo caráter que possuem. O despertar cotidiano desse sonho carrega o texto de cores melancólicas que bem indicam o estágio em que se encontrava o projeto de construção de um romance afro-brasileiro nos idos de 1950. No livro de Romeu Crusoé percebe-se a presença de um narrador capaz de refletir sobre sua condição, as ocorrências do cotidiano que o cerca e o comportamento dos grupos sociais detentores do poder. A maldição de Canaan se insere, portanto, no processo de formação, talvez ainda incipiente naquele momento histórico, de uma narrativa não apenas brasileira, mas explicitamente afro-brasileira. E isto se deve à abordagem da temática negra sob uma ótica distinta do negrismo praticado por nossa tradição modernista, o que confere ao romance a possibilidade de retratar, a partir de um lugar de enunciação comprometido com um projeto de afirmação identitária, as diversas formas de preconceito racial existentes na sociedade brasileira.

 

* Graduanda em Letras pela UFMG

 

Referências Bibliográficas

CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito. São Paulo: Imprensa Oficial, 1987.

CRUSOÉ, Romeu. A maldição de Canaan. [S.I.]: Di Giorgio & Cia, 1951.

IANNI, Octávio. Literatura e consciência. In revista de estudos brasileiros. Edição comemorativa do centenário da abolição da escravatura. São Paulo, n° 28 1988.

 

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