Confissões de um negro

 

Lívia Menezes da Costa Molina

Contarei toda a verdade.

Ainda que mordendo os lábios de vergonha.

Romeu Crusoé

 

O romance Maldição de Canaan, de Romeu Crusoé, escrito em 1951, retrata a questão do negro e de suas dificuldades de adaptacão à sociedade pós-escravista. Através de um texto de feição memorialística, em formato de diário, Crusoé narra os impasses vividos pelo protagonista Ricardo, em suas tentativas de afirmação como cidadão, num contexto marcado pelo preconceito de cor. A trama se desenrola a partir dos registros expressos, em primeira pessoa, pelo jovem que deixa o torrão natal em busca de realização pessoal e amorosa na metrópole que vivencia o progresso industrial de meados do século XX. Um dos traços fundamentais da narrativa encontra-se no projeto de exprimir a realidade do preconceito e dos danos que o racismo pode causar.

No início do livro, na parte chamada de “Explicação”, o autor apresenta ao leitor uma afirmação de que tudo o que será recontado a seguir se baseará na simples e pura ‘’realidade”, como em:

Não vou tecer o enredo de um drama nem de grosseira novela engendrada pela imaginação de um cérebro anormal, porém retraçar a cópia fiel de minha atribulada existência. Não invento nem fantasio; não me move a vaidade ao escrever estas linhas. O fito deste livro é ceder a outros minhas experiências e sofrimentos, para que tirem deles algum ensino em proveito das relações sociais. (CRUZOÉ, 1951, p.19)

Já de início, o leitor é levado a crer que não está lendo uma obra de ficção, mas um relato de experiências vividas. Tal fato se explica pela antiga tendência do memorialismo negro, existente em quase todas as sociedades que vivenciaram a escravidão e o preconceito de cor. Assim, o discurso de uma memória social marcada pela subalternidade deságua, pela via da ficção, numa possível memória individual. Ouçamos o narrador:

Porém, eis-me chegado ao fim da explicação, sem ter resolvido por onde começar o relato das memórias. Pensando bem, acho que vou principiar pelo meio. Sim: pelo meio. (Ibid, p. 20)

Assim, a Maldição de Canaan assume com todas as letras o disfarce memorialístico como forma de ressaltar os vínculos da história narrada com a realidade de exclusão vivida pelos negros, mesmo passadas varias décadas do fim da escravidão. Ricardo recobre suas memórias com um tom de desabafo e isto enfatiza o caráter de empenho político do romance. A presença constante da inferioridade sofrida por Ricardo por conta de sua cor é bastante marcante no romance, o qual mostra um eu deslocado da atmosfera em que vive. Assim, a dicotomia eu x mundo é essencialmente baseada no preconceito vivenciado por Ricardo, que o torna a priori condenado a uma sub-cidadania bem próxima da morte social. Através da primeira pessoa, o personagem lembra amarguradamente os casos de rejeição que sofreu. No início, Ricardo relembra o apelido, que julgava ser pejorativo, mesmo vindo de seu amigo Rodrigo:

Vinha de um fracasso, procurava esquecê-lo na diversão, em companhia dos esquecidos; precisava de consolo, ansiava por palavras amigas, e aparecia-me Rodrigo. Dias depois, apelidou-me Black. Excluiu meu nome e só me maltratava assim: “Black, você não se faça de besta!” “Black, você está jogando muito”. Se ele puxava o lenço para enxugar o suor: “Isto aqui é perfume bom, não é do que você usa, Black; você não pode usar isto”. (Ibid., p. 52)

Como se pode perceber, Ricardo era julgado o tempo todo pela sua cor, trazendo-lhe consequentemente sentimentos de humilhação e inferioridade. Tudo isso fazia com que ele se sentisse terrivelmente excluído, até mesmo por aqueles que considerava serem seus “amigos”. O preconceito atingia-lhe a alma e o coração, e transformava-o num sujeito rancoroso consigo mesmo e com a humanidade. Ele próprio se inferiorizava, não se sentindo capaz intelectualmente de realizar seus objetivos. E o drama se amplia quando ele apaixona por Alice, jovem pertencente a uma das famílias mais importantes da cidade:

Nada ousava confessar a ninguém, pois sabia constituir a revelação motivo de mofa. Tornava-se horrível suportar sozinho o peso da cor. Tenebrosa situação. Num mundo preconceituoso, numa cidadezinha mexeriqueira, eu, preto e pobre, apaixonara-me por uma branca pertencente a família orgulhosa, considerada rica. Exasperava-me comigo próprio, esforçando-me por esquecê-la, mas não o lograva. (Ibid., p.62)

Ricardo passa, então, grande parte de sua vida dedicado a seus pensamentos a respeito do porquê ser tratado tão rudemente pelos brancos. Indignava-se com esta discriminação que julgava ser completamente absurda. Durante todo o texto, ele questiona o jeito que nascera, pobre e preto, como “Por que Deus, se me dera esta alma meditativa, me aprisionara num corpo considerado inferior? O mundo tornava-me difícil a tarefa de ser eu mesmo” (Ibid: 67) e “Então, por que eu e os de minha raça tínhamos um pouco de melanina a mais na epiderme, devíamos ser escorraçados como cães?” (Ibid: 128). Devido às exclusões que sofria em seu dia a dia, Ricardo começava a ver sua negrura como sendo uma falha, um desvio de Deus, e é por isso que em tantas vezes em seu relato, pergunta a Ele o motivo de tanta mediocridade e a razão pelo qual a humanidade tanto julgar sua cor.

Julgava-se incapaz todo o tempo e assim, a discriminação pior que sofria ecoava de sua própria existência, como neste desabafo “- Mas eu não sou homem, se lembra? Eu sou negro! (Ibid: 185). Aquele sofrimento que o acompanhava continuamente deixava marcas em sua alma e em sua maneira de ser e agir:

Aí chegava a odiar a minha própria pele: preto, porque e para que? Exclusivamente por esta falha, muitas portas permaneceriam fechadas para mim. Imediatamente me arrependia e mudava de opinião: odiar, mas a humanidade errada e idiota, que me martirizava sem necessidade, pelo crime de não ter nascido branco. Quantas coisas pensava! (Ibid: 68)

A pobreza que Ricardo sofre na vida o atinge bruscamente, mas o preconceito é o que mais o machuca. A sua maior felicidade é ter um mundo sem diferenças raciais e sem desigualdade. A injustiça que se instaura durante toda a sua vida chega a causar-lhe dores físicas. Constantemente, aparecem situações constrangedoras que Ricardo sofre por conta de sua cor, seja em festas, emprego, amores, amizades, enfim, em tudo o que ele fazia ou tentava fazer, o preconceito o incomodava, como se aquilo fosse um pecado mortal, postulado pela humanidade, “portanto, só o preconceito me enclausurava. Minha cor constituía meu pecado”. (Ibid: 112). Até mesmo o seu nome é vítima de rejeição e desprezo, como mostrado a seguir:

- Ricardo, é? O senhor se chama Ricardo?! Mas isso é lá nome de gente da sua cor? O senhor devia se chamar era Benedito. Pois não tem nada, seu Ricardo. No momento, não tem nada para o senhor. (Ibid: 122)

Pelo fato de não ver esperança em ninguém e em lugar algum e encarar a sua negritude como um “erro” que o marcaria para o resto de sua vida, Ricardo carregava consigo o sentimento de inferioridade, que o sufocava por inteiro. A citação seguinte exprime isto:

Eu tinha que ser introverso à força. Sabia que, por causa da pele, não: por causa do orgulho da humanidade, muitas portas permaneceriam eternamente fechadas para mim. Ignorava quantas e quais eram, mas previa serem muitas. Por isso, procurava viver em mundos imaginários, que eu desejava existissem de verdade, onde não havia preconceitos nem violências de qualquer espécie; mundos sem fronteiras nem xenofobismos geradores de guerras; mundos de harmonia e amor. (Ibid: 78)

Há diversas passagens em que o desespero e a dor causados pelo preconceito faziam-lhe se subestimar diante dos outros, como nesta passagem “desejava não ser preto, ter nascido branco, ou moreno; renegava a minha raça e minha origem.” (Ibid:162) Como consequência, Ricardo se assumia negro, porém de alma branca... A sua identidade, muitas vezes, via-se comprometida em meio a tanto racismo e assim, já não sabia mais se deveria lutar contra tudo isto ou simplesmente acatar a diferença imposta pela sociedade. Há outra citação que representa o próprio desprezo como “Era só fingimento! Não podia gostar! Eu, preto! Como era que você podia gostar!” (Ibid: 166). O incômodo era tão sufocante que Ricardo sentia preconceitos que talvez não existissem em situações que a mente dele, já torturada pelo racismo, acabava por idealizar:

Até nos elogios, descobria ofensas. Que inferno! Quando comparecia a uma festa ou conferência, já temia deparar o ferrete de algum olhar ou riso irônico. Eles me estrangulavam a alma com gilvazes. (Ibid:163)

Romeu Crusoé intenciona, por meio da Maldição de Canaan, mostrar as diversas facetas que circundam a vida do negro neste país e suas cicatrizes deixadas pela humanidade, como conseqüência da escravidão. O autor se apropria de situações corriqueiras para revelar um negro em meio a uma sociedade preconceituosa e injusta, que o exclui e o danifica moralmente. Portanto, Crusoé tematiza o dano que a desigualdade racial traz para o negro e coloca Ricardo como a representação geral de todas estas vítimas. Assim, o principal personagem sofre complexos de inferioridade, revoltas, ódios, ilusões e desilusões em um mundo onde o que prevalece é o mais forte, rico e branco.

Romeu Crusoé expõe, através deste romance, um forte sentimento de revolta quanto ao preconceito. E o que o torna ainda mais intrigante é ter este desabafo em forma de diário, que sustenta uma imagem de confissão – de ser um desabafo completo das angústias do negro oprimido pela sociedade. Entretanto, por mais que aconteçam os diversos casos de exclusão em qualquer lugar e que eles sejam realmente comprovados, a forma confessional abre a possibilidade de tais sentimentos serem também frutos de uma imaginação marcada pela baixa auto estima.

Não se pode deixar de destacar o acontecimento marcante no mesmo ano da publicação de Maldição de Canaan, em 1951. A Lei Afonso Arinus, acabava de ser aprovada no Brasil e através dela, a discriminação racial no país tornava-se crime. Foi proposta por Afonso Arinos de Melo Franco, jurista, político, professor e crítico brasileiro. Portanto, o país, neste período, vivia a efervescência da luta pela criminalização do racismo e paralelamente, Crusoé torna publico seu romance.

Este fato pode coincidir com muitas questões debatidas no romance, pois mostra a introjeção dos valores preconceituosos no negro e as graves consequências que isto pode trazer a ele. Há a menção do fim da escravidão, em 13 de maio de 1888, e como que, mesmo com a lei decretada, a liberdade continuou sendo utópica e funcionando apenas no papel. Através da voz da personagem, Crusoé critica todas as pendências sociais, culturais e morais que afetam os negros do país, ainda como consequência da triste história escravista brasileira. Em relação a 13 de maio, Ricardo aponta, revoltado, em seu diário:

Com efeito, extinguira-se o tronco e o libambo ao pescoço; todavia, com essas segregações – seleção na língua dos racistas – nossos espíritos ainda vegetavam prisioneiros do estado de coisas anterior a 13 de maio de 1888. Eu queria erguer um grito tão intenso, que perfurasse os corações e as consciências: Libertai nossas almas! Corpo livre e alma cativa. Corpo livre para locomover-se, não para entrar em qualquer logar. Roubam-nos assim o sagrado e inalienável direito da igualdade humana. Excluem-nos da fraternidade universal. (Ibid:161)

Logo em seguida, o desabafo continua e Ricardo relata o sofrimento de ser vítima de deboches e exclusão e relembra, indignado, a falta de reconhecimento da nação brasileira pelas conquistas dos negros:

Porque, além das dificuldades financeiras, nos antepõem as dificuldades dos olhares e sorrisos escarnecedores nas salas de conferências e de aulas; porque nos brecam com a negativa de acesso a todas as carreiras. Porém, trabalhamos na medida do possível e na do que nos permitem; concorremos para a riqueza e engrandecimento da pátria, também nossa. Já a História, agradecida, falou pela voz autorizada de João Ribeiro: “O negro, o fruto da escravidão africana, foi o verdadeiro elemento criador do país e quase o único. Sem ele, a colonização seria impossível”... E vai por aí afora. Quem não sabe que adubamos com o nosso sangue as terras dos canaviais nordestinos, para citar apenas a região onde mais intensa se fez essa cultura? Contudo, alguns esquecem estas verdades. Esquecem ou ignoram. Com tanta porta fechada, querem espoliar-nos do direito de ser brasileiros. E com que direito? (Ibid: 161)

A raiva se instaurava dentro da alma de Ricardo e o fazia ver somente desigualdades num mundo sem esperança, porém tinha um lado otimista, em que tentava igualar brancos e negros e mostrar a cor da sua alma. “Não adormeci, mas acordado sonhei com o meu desejo: um mundo de amizade e concórdia, sem cores nem desigualdade, um mundo só, de amor e união”. (Ibid:102).

Romeu Crusoé, como já dito, se apropria de diversas situações para demonstrar a presença do preconceito no humano. Para isso, mostra a incapacidade intelectual que é atribuída aos negros, como os papéis os quais os negros obtinham nos filmes. Ricardo, no romance, relembra a época que freqüentava o cinema da cidade e se manifesta criticamente sobre o racismo até nos telões. A intenção do autor é desconstruir a correlação, postulada como conveniente, entre o ser negro e sua pretensa incapacidade de executar cargos que exijam inteligência e perspicácia:

Frequentava assiduamente o cinema de minha cidade e vira, portanto, muitas fitas. Segundo elas, lá na terra dos filmes, não havia pretos médicos, advogados ou engenheiros. Só executavam serviços subalternos: ascensoristas, copeiros, choferes, porteiros, criados. Ainda mais, mostravam-se invariavelmente cobardes, possuídos dum medo ridículo e odiento, que os fazia bater os dentes, apavorados com assombrações. Negros que, medrosos de fantasmas, o corpo a tremer, deixavam bandejas cheias de taças de champanha ou de iguarias para os brancos valentes; estes sim, arrostavam todos os perigos, possuídos duma coragem sobrenatural, enquanto a platéia, aliás, as platéias do mundo inteiro riam às bandeiras despregadas do pavor infantil do negro aplaudiam as proezas do branco destemido e todo-poderoso. (Ibid: 117)

A passagem remete à verdadeira lavagem cerebral propiciada pelo cinema de Hollywood, que se encarregava de disseminar mundo afora os valores racistas existentes nos Estados Unidos na primeira metade do século XX. Valores que remetem ao passado escravista brasileiro, materializados na legislação do “defeito de cor”, que impedia negros livres de assumirem funções públicas. O estigma do “defeito de cor” assombrava sua mente em relação ao preconceito que o perseguia. A pressão era tanta, que o sujeito se esquivava de todos e até de si. Em várias passagens de seu diário, ele recorda momentos em que se sentia completamente excluído ou que então percebesse olhares equivocados em direção a ele, como no exemplo a seguir:

 

Ocultava-me, encolhia-me a um canto da aula, olhos fitos no professor. Tinha que passar pela vida esgueirando-me, escondendo-me como um leproso, um tipo inspirador de asco. Mas, por que?! Que crime hediondo cometera eu? Nem os estudos me era dado continuar sossegado? (Ibid: 129)

Em diversas passagens, Ricardo confessa não se lembrar do fato exatamente como ocorreu, “não me lembra mais o que lhe disse. Foi uma carta lamuriosa, cheia de ironias e ódio” (Ibid: 120). Estes lapsos refletem a coexistencia da memória com o esquecimento, provocado pelo recalque derivado do trauma. As situações de desprezo e preconceito que o atingiram são narradas de forma marcante, e cada olhar suspeito que recebia, cada insulto e cada decepção é relatada de forma minuciosa, causando comoção ao leitor quando se depara com tamanho racismo. Entretanto, a grande quantidade de detalhes nos deixa intrigado, pois é impossível relembrar de tudo detalhadamente. Ricardo comenta no início que, ao recordar de sua vida, nenhum fato seria deixado para trás. Porém, ele mesmo se contradiz e confessa que:

Impossível seria referir todas as criaturas que cruzaram meu caminho e todos os fatos que me sucederam. Contudo, vou desenterrando, aos poucos, deste baú velho, que é minha memória, os acontecimentos julgados importantes. O que sucedeu, numa tarde, na Associação onde eu estudava, foi importante. Importante e sutil. Sutil e doloroso. (Ibid., p. 132)

Na citação a seguir, Ricardo confessa cumprir com o prometido de contar ao leitor toda a verdade detalhada, “Desejaria não escrever esta página, para não espertar as feridas que me dormem no peito... Diabos levem a promessa de contar tudo! (Ibid: 169). Já nesta outra, diz sobre a incapacidade de expor toda emoção vivida “Há certas emoções que não conseguimos exprimir, por mais que nos esforcemos; só sabemos sentir. O olhar que Alice me atirou no instante em que nos vimos, deu-me essa impressão indefinível”. (Ibid: 179).

Ricardo estabelece um discurso direto com o leitor, assim como Machado de Assis em muitas de suas obras, como “Já me considero no fim da vida e, até hoje, não encontrei justa resposta para esta pergunta” (Ibid:118) e também “Bem, mas isso tudo são reflexões. Voltemos àquela sala maldita, onde me cruciava o preconceito racial”. (Ibid:134) Este diálogo permite instaurar um texto íntimo do leitor, fazendo com que este se sinta também acoplado a estória e se comova mais com os casos narrados, em especial os de racismo. Machado chega ser citado em suas memórias, “A paciência é a gazua do amor” – veio-me logo à mente a frase que lera num romance de Machado de Assis”. (Ibid:166)

 

De Ricardo a Isaías

Em se tratando de textos de feição memorialística, tem-se outro romance, uma espécie de desabafo, assim como Maldição de Canaan. Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, é um romance em que um jovem mulato relembra sua estória de vida trabalhando num jornal famoso no Rio de Janeiro, O Globo. Isaías, o personagem principal, faz crítica ao sistema vigente no início do século XX, em 1909 e diz “O público que nos lê, não sabe o quanto esta vida de jornalista é esgotante e ingrata...” (BARRETO,1984 p.125). Inteligente, pobre e aparentemente, sem perspectivas de vida, resolve ir para a metrópole em busca de uma vida melhor e acaba trabalhando no jornal, ou seja, realizando o oposto daquilo que sonhara para ele.

As recordações de Isaías narram a vida social da época e como o homem era inserido no meio o qual vivia, em especial o negro. Através de seu livro considerado pré-modernista, Lima Barreto constrói um texto diário e utiliza Isaías para realizar seu desabafo sobre a condição do negro num país completamente racista e juntamente a isto, critica a sociedade, como Caminha mesmo a define “Porque é feita para diminuir em nós o que é de mais estrutural e de mais profundo: a individualidade, o prazer e os instintos” (Ibid: 96).

Através de uma literatura que narra sua própria condição de negro e seus dramas individuais, Lima Barreto torna este livro um desabafo bastante sincero e simples, tomando o leitor como cúmplice de seus sentimentos em relação à sociedade injusta e seus anseios pela conquista de um mundo melhor. O Governo, em geral, é alvo de questionamento para Lima também, e em várias partes do livro, o protagonista desabafa a experiência disso a qual ele mesmo vivenciou:

A atitude do Governo era curiosa. Às vezes ostentava-se forte, mandava dizer pelos seus jornalistas que o lançaria pelo corretor que entendesse. Os artigos rompiam, mostrando as vantagens da operação, mas Loberant, ou alguém por ele, atirava no dia seguinte um artigo descompassado, pejado de descompostura, e os adversários esfriavam. Neles não se raciocinava, não se ia adiante dos argumentos do adversário. Afirmava-se e insultava-se o contendor com alguns palavrões do calão do Quinhentos ou do Seiscentos. E essas palavras ressuscitadas eram de efeito seguro. A multidão guardava-as de cor, procurando-lhes a significação e o sentido. (Ibid: 98)

Isaías Caminha chega a confessar, assim como Ricardo em Maldição de Canaan, a expressar o propósito de “escrever tudo” de sua vida pessoal e promete não deixar que nenhum fato seja ocultado: “embora possam ser tomadas nesse sentido, as minhas palavras dirão fielmente o que vi e o que senti” (Ibid: 100). Entretanto, a situação é a mesma do outro romance, pois nos deparamos com um diário, em que os registros de memória ali contidos podem representar fatos em que não aconteceram exatamente como o narrado, ou situações em que a memória não foi capaz de armazenar. O que é possível Isaías relembrar são flashes, apesar de muito bem frisados, do que ocorreu, mas não se pode destacar a impossibilidade humana de memorizar exatamente tudo da vida passada.

A imprensa brasileira e os seus bastidores constituem um dos principais alvos de crítica de Lima Barreto no livro, e seu personagem admite “É outra mentira dos jornais que logo senti” (Ibid: 111). Portanto, Isaías desabafa:

Oh! A vaidade dos desconhecidos da imprensa é imensa! Todos eles se julgam com funções excepcionais proprietários da arte de escrever, acima de todo o mundo. Não reconhecem que são como um empregado qualquer, funcionando automaticamente, burocraticamente, e que uma notícia é feita com chavões, chavões tão evidentes como os da redação oficial. (Ibid: 102)

O racismo também se encontra nos desabafos pessoais de Isaías Caminha. Vale ressaltar que Lima Barreto era mulato e fez questão de apontar a questão do negro mal inserido em sua própria sociedade. No romance, o personagem representa a vítima do preconceito, uma vez que ele tinha tudo para se dar bem na vida e acaba sem perspectiva alguma. Portanto, o personagem se apresenta como sendo massacrado pelo preconceito e por culpa dele, seu sonho de ser médico e de realizar uma grande carreira profissional não é alcançado. Apesar do tema central de sua obra ser este, o racismo em si aparece de forma mais sutil, diferentemente de Romeu Crusoé, que retrata abertamente as consequências que a exclusão pode causar nos negros e mostra, de maneira mais dramática, uma visão internalizada do oprimido. Isaías Caminha aproveita seu distanciamento frente à sociedade para se posicionar:

De longe, parece que toda essa gente pobre, que vemos por aí, vive separada, afastada pelas nacionalidades ou pela cor; no palacete, todos se misturavam e se confundiam. Talvez não se amassem, mas viviam juntos, trocando presentes, protegendo-se, prestando-se mútuos serviços. Bastava, entretanto, que surgisse uma desinteligência para que os tratamentos desprezíveis estalassem de parte a parte. (Ibid., p.109)

Há uma passagem em que a mulher negra ganha importância no romance e seu sofrimento em meio à sociedade considerada branca é revelado:

Por aí, calava-se e ficava olhando o chão, absorta em recordações e em saudades. Eu então indagava:

- Não teve filhos, Dona Felismina?

- Tive dous; uma moça e um rapaz.

- Estão bem; não?

- Um, o rapaz, morreu; e a moça...

- Está casada?

- Não... Vive com um homem... Deu muitas cabeçadas... Não foi ela... O senhor sabe: nós, quando não temos ninguém, é isso... (Ibid:111)

Em seu diário, Isaías chega a fazer uma comparação entre o regime estabelecido no jornal e o sistema feudal, indicando ser o seu trabalho uma espécie de aprisionamento, onde a mediocridade entre as pessoas é algo constante. O ponto de vista mostrado é totalmente negativo e, por meio da crítica ao jornal, acusa o regime escravista, o qual reduzia os negros escravos a simples objetos, separando-os de sua própria descendência, raiz cultural e famílias:

No Jornal, o diretor é uma espécie de senhor feudal a quem todos prestam vassalagem e juramento de inteira dependência: são seus homens. As suas festas são festas do feudo a que todos têm obrigação de se associar; os seus ódios são ódios de suserano, que devem ser compartilhados por todos os vassalos, vilões ou não. A recepção do redator português era uma festa sua e ele exigia esse aparato para que tivesse uma repercussão favorável na grande colônia portuguesa. (Ibid: 111)

Por fim, o último desabafo que envolve o racismo é sobre um preto mendigo, que dependia de esmolas para comer. A maneira pela qual Isaías relembra sobre o indivíduo esfomeado é bastante emocionante e conta ter tido constrangimento ao ver o velho negro em sua terrível condição, e se mostra profundamente incomodado diante tal diferença social. Ele faz questão de tentar, ao menos, relembrar com detalhes a imagem que ficou marcada em sua memória:

Sob aquele sol muito forte, à rebrilhante luz daquela manhã de verão, por entre tanta gente rica e forte, aquele seu instrumento infantil, a puerilidade da música, o seu aspecto de sombra, juntavam-se para dar um relevo cortante à sua miséria e à sua fragilidade... Ele, com a sua resignação e miséria, e o sol, com a sua força e indiferença, tinham um certo acordo oculto, uma relação entre si quase perfeita. O negro ia... Ia tocando já sem forças a plangente música das recordações do adusto solo da África, da vida fácil de sua aringa e do cativeiro semi secular! (Ibid., p. 115)

Em um tom de retrospectiva, Lima Barreto, através do personagem Isaías, se assegura no seu próprio desabafo sobre tudo que lhe ocorreu como tentativa de vencer, em parte, os problemas e as humilhações que o meio preconceituoso lhe impunha. A narração das memórias de “Isaías” representa a crítica ao meio social e ao governo que julgava ser hipócritas, e a diferença social e racial que se instaurava na sociedade no século XIX e início do XX. Nesse aspecto, Lima Barreto e Romeu Crusoé tiveram um mesmo propósito de denúncia e revolta, por serem vítimas deste meio essencialmente racista. Crusoé, por meio de Ricardo, também se apropria de seu baú de memória e de recordações para liberar as humilhações que sofreu durante sua vida e demonstrar as conseqüências morais que isto lhe causou.

A introjeção dos valores preconceituosos trouxe danos para Ricardo e Isaías, como a revolta, o sentimento de incapacidade e de inferioridade. A condenação da exclusão do negro é feita por estes dois autores no intuito de tentarem causar alguma repercussão neste mundo conformado com o preconceito e com as diferenças postuladas pelo próprio homem. Maldição de Canaan e Recordações do escrivão Isaías Caminha direcionam formas de narrar o preconceito e as acusações sociais de formas um pouco diferentes, mas o propósito se converge em um apenas: tematizar o dano que o racismo traz para o negro e para a sociedade como um todo.


 

Referências:

BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Ática, 1984.

CRUSOÉ, Romeu. Maldição de Canaan. 1951.

 

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