Do emparedamento solitário aos planos de voo:

caminhos em Paulo Colina.

 

Gustavo de Oliveira Bicalho*

O sentimento de solidão (...) não é uma ilusão
– como às vezes é o de inferioridade  –,
e sim a expressão de um fato real:
somos, na verdade, diferentes.
E, na verdade, estamos sós.
Octavio Paz,
O Labirinto da Solidão

Consta de 1980 a publicação de Fogo Cruzado, primeiro livro de Paulo Colina. Naquele ano, o escritor paulista completava 30 anos de idade e fundava, junto aos escritores Oswaldo de Camargo, Abelardo Rodrigues, Luiz Silva (Cuti) e o argentino Jorge Lescano, o Grupo Quilombhoje, cujo objetivo central era discutir “o papel do negro na Literatura Brasileira” (COSTA, 2007). A simultaneidade dos acontecimentos – lançamento do livro e fundação do grupo – carrega consigo, sem dúvida, pouco de acaso.

Sabidamente, são marcas do século XX (as quais, aliás, se prolongam durante o séc. XXI) as dificuldades enfrentadas por escritores de origem afro-brasileira desejosos de publicar seus primeiros livros. Além de terem de lidar com o crivo rigoroso das editoras, como todo autor de primeira-viagem, tais escritores enfrentam, ainda, o desafio de driblar barreiras histórico-sociais relacionadas a um preconceito de cor altamente disseminado, metamórfico e complexo. Da dificuldade de financiamento da edição à resistência do público leitor em relação a uma escrita que experimente a presentificação, no texto, de elementos culturais ligados à descendência africana, os obstáculos multiplicam-se, relegando à condição de exceção empreitadas individuais de publicação. Nesse terreno áspero, as associações entre escritores podem ser vistas como caminhos alternativos para se chegar à publicação e aproximar-se do leitor. O Grupo Quilombhoje, através principalmente da série Cadernos Negros, foi, na São Paulo dos anos oitenta, a empreitada coletiva de maior sucesso, nesse sentido, permitindo o aparecimento de um número considerável de escritores afro-brasileiros1. Mais tarde, muitos deles viriam a publicar obras individuais, ainda que por meio de edições independentes.

Como provocação para os caminhos críticos que seguiremos neste trabalho, vale ressaltar alguns aspectos problemáticos da relação entre o autor e o Grupo, os quais servirão como provocação para os caminhos críticos que seguiremos neste trabalho. Se Paulo Colina tece uma rede literária importante com os demais fundadores do Quilombhoje, por outro lado, essa relação não será estável, apresentando divergências no que concerne a projetos estéticos e ideológicos.

O autor só colabora com textos para duas das edições da série Cadernos Negros (números 2 e 3, de 1979 e 1980, respectivamente). A partir de então seguirá seus próprios caminhos, sem deixar de conservar, entretanto, fortes relações com a coletividade. Alguns dos primeiros passos desse projeto aparecem marcados desde o pequeno texto de autoapresentação escrito por Colina e publicado em Cadernos Negros 2, do qual destacamos um trecho:

Escrevo porque há que se despertar a consciência adormecida e preguiçosa de nosso povo, porque há que se cutucar com punhais/palavras os marginalizados que são meus personagens (e que provavelmente – não por falta de empenho de minha parte – nem venham a ler meus textos), porque há que se tentar sacudir a classe média, que só tem monstros sagrados e empoeirados e best-sellers que em nada condizem com a nossa realidade, em suas estantes, uma realidade que fingimos não ver, e porque entendo que a literatura não deveria pertencer a uma determinada classe social e/ou raça. (COLINA, 1979, p. 103)

Em linhas gerais, as preocupações de Paulo Colina vão ao encontro das preocupações do Grupo Quilombhoje e com a proposta da série. As ideias de “despertar a consciência” de um povo, usar a palavra como arma de resistência, fazer contraponto a uma literatura classista e racista, estão presentes em ambos e são bons indicativos dos sentidos explicitados pelo nome “Quilombhoje”. No entanto, as divergências não demorariam a aparecer e, embora não tenham sido capazes de criar uma inimizade entre Paulo Colina e o restante do Grupo, parecem ter sido suficientes para provocar um afastamento e deixar suas marcas na literatura do autor. Por ocasião de uma comunicação, realizada no I Simpósio Internacional de Estudos Sobre Jorge Amado, Paulo Colina elabora um texto no qual chama a atenção de seus interlocutores para as causas dessa dissidência. O escritor relembra uma reunião com certo “grupo de negros (ou afro-brasileiros)” (COLINA, 2000, 232), o Quilombhoje, aparentemente:

O dono do apartamento, universitário, professor, dispara: ‘– Acho que nós não devemos ler os escritores brancos, para não absorver seus vícios, seus cacoetes, suas visões estereotipadas’. A sala é ampla. Atrás dele, uma estante abraça livros do chão ao teto; de parede a janela. Títulos vários. Romances, contos, ensaios, novelas, teatro, poesia crônica, história, sociologia. Autores diversos. Países diversos. África Negra e Branca, Europa, Américas, Drummond, Fernando Pessoa, James Baldwin, Joyce, Poe, Lima Barreto, Cesário Verde, Machado de Assis, Jorge Amado, Faulkner, Cortazar, Borges e tantos. Miro através dos óculos do anfitrião. Os aspirantes, concordando. Assim, também, demais: penso. A cor da minha pele não pode me limitar, nunca. Tenho certeza de que meu quintal não é o mundo, mas o mundo precisa estar no meu quintal. Alegando outro compromisso, saio. (COLINA, 2000, p. 232).

O incômodo acima demonstrado, em relação às limitações e delimitações propostas e acatadas pelos escritores e “aspirantes” do Quilombhoje, parece ser uma constante ao longo da carreira literária do autor, do início dos anos oitenta até o fim de sua vida. Daí a necessidade de tomar novos rumos: “Literatura, propostas/perspectivas de trabalho, luta, vida: aquele grupo que me espere. Eu caminho pra frente!”; “Sigo. O tambor, nas costas. Quem vier atrás, que se esqueça das cancelas.” (COLINA: 2000, p. 237).

Nos textos citados, assim como em outros de seus trabalhos, o autor se auto define como essa espécie de griot, ligado à tradição oral africana, cuja arte consiste em contar histórias capazes de envolver a comunidade de onde e para quem fala, estabelecendo com ela uma atitude crítica. No caso de Paulo Colina, porém, a relação que o griot estabelece com seu espaço-tempo é paradoxalmente marcada pela solidão. Se o autor não se identifica, por um lado, com as diretrizes literárias do Grupo Quilombhoje, por outro, as ruas da metrópole paulistana, que o miram com os olhares do preconceito e da violência, tampouco lhe trarão referências identitárias. Permanecerá, assim, “território ermo / plantado na esquina do mundo” (“Para tocar no rádio”, in: COLINA: 1984, p. 18); solitário, à margem da margem, como o Cruz e Souza de Emparedado (1961, p. 646-664). Diante disso, podemos ver, em Colina, a imagem de um escritor atento à necessidade constante de romper com as barreiras sufocantes que limitam sua existência, sobrevoar as muralhas que se levantam, ressignificadas, na metrópole pós-moderna.

Feitas essas considerações, nosso trabalho se ocupará, daqui a diante, em pontuar os caminhos seguidos ficcionalmente por Paulo Colina, nesse ambiente singular de criação. Destacaremos três momentos de sua produção literária, representados por três de seus livros. Para isso, seguiremos os caminhos temáticos do emparedamento e da solidão, vinculados à problemática da constituição da identidade étnica.

1 – Fogo Cruzado, emparedamento e marginalização

O livro de contos Fogo Cruzado vem a público em 1980, conforme menção anterior, e conta com prefácio de Fábio Lucas. Nele, o escritor e crítico literário consegue enxergar, com propriedade, as tentativas de realização do já comentado projeto literário apresentado por Paulo Colina em Cadernos Negros 2: a busca de uma “mirada participante” (LUCAS apud COLINA: 1980, 10), em oposição a um olhar distanciado; o engajamento crítico com a temática da marginalidade; o contraponto a uma literatura presa à realidade social das camadas média e alta da sociedade, principalmente a urbana.

Não podemos concordar, porém, com o teor das tentativas, operadas pelo prefaciador, de estabelecer a ligação entre a literatura de Colina e seu contexto social2. Em nossa opinião, Lucas distancia-se do texto do autor de Fogo Cruzado, ao atribuir a ele a função de inversão de posicionamentos sociais binários, tais como: primeiro mundo x terceiro mundo, ricos x miseráveis, donos de terra x servos de terra, negros x brancos, índios x brancos. Cremos que a literatura de Paulo Colina não está interessada em simples inversões binárias de ponto de vista, com o intuito de revelar uma sociedade urbana dual, que “duplica as velhas relações de poder” (LUCAS apud COLINA, 1980, p. 8). A diversidade de personagens, enredos, conflitos e recursos narrativos encontrados nos contos apontam, ao contrário, para uma flexibilidade das categorias exclusivas de classe, etnia, gênero, sexualidade, sem deixar de abrir espaços para a construção de identidades e posicionamentos.

Cremos que a posição de Lucas no prefácio, ainda que sem essa intenção, acaba por conformar-se com um olhar fascinado da pós-modernidade sobre a diferença e a marginalidade, o qual, somente nos últimos anos do século XX, seria notado pela crítica cultural como problemático. O ensaio de Stuart Hall, Que “negro” é esse na cultura negra?, de 1998, toca diretamente nesse ponto e apresenta um trecho emblemático, no qual Hall critica o olhar binário sobre a marginalidade:

Não quero sugerir, é óbvio, que podemos contrapor à eterna história de nossa própria marginalidade uma sensação confortável de vitórias alcançadas – estou cansado dessas duas grandes contranarrativas. Permanecer dentro delas é cair na armadilha da eterna divisão ou/ou, ou vitória total ou total cooptação, o que quase nunca acontece na política cultural, mas com o que os críticos culturais se reconfortam. (HALL, 2006, p. 320).

Acreditamos, como mesmo Hall parece admitir, que o uso de contranarrativas foi inevitável e de suma importância para o discurso das minorias, durante, pelo menos, a segunda metade do século XX. Não se pode negar, porém, que o caráter de homogeneização desses discursos acaba por emudecer algumas diferenças.

A leitura de Fogo Cruzado permite perceber justamente o ruído das vozes dessas diferenças emudecidas. Os contos buscam o ponto de vista de sujeitos em condições extremas de emparedamento, a despeito de uma simples inversão de lados do jogo “ou/ou”, de que fala Hall. O título do livro é significativo nesse sentido: as personagens encontram-se, no mais das vezes, encurraladas e esquecidas entre a violência de duas ou mais forças em embate – situação que é, frequentemente, geradora de profunda angústia. O conto de título homônimo, “Fogo Cruzado”, apresenta a visão de um foragido da polícia, encurralado em um barraco, ciente da eminência de sua captura ou morte:

Ele sabia que ali era o fim da linha; o último refúgio. Desde o dia em que eles chegaram de surpresa em seu barraco e ele conseguiu fugir pela janela do quarto, tinha ido para todos os lugares que considerava seguros, porém eles sempre o encontravam. (COLINA, 1980, p. 13).

O emparedamento, aqui, é completo. No “último refúgio”, a personagem não possui qualquer tipo de aliados, ninguém em quem possa confiar: está absolutamente isolado. No corpo desumanizado da personagem Boneco – visitada, no IML, em uma digressão da narrativa –, a personagem principal parece entrever seu destino, que acaba por concretizar-se ao final do conto: a polícia cerca o barraco e, através de uma bomba de gás lacrimogêneo, força sua saída. Eis o desfecho trágico:

Inutilmente, esfregou os olhos com as costas das mãos, sem contudo largar as armas. A vista submersa vermelha, semicerrada. Através de um pequeno filamento horizontal, conseguiu visualizar a porta que caiu com o pontapé. Correu atirando a esmo feito mil fuzileiros e por poucos segundos ainda foi capaz de ouvir e sentir o fogo cruzado. (COLINA, 1980, p. 16).

A situação extrema de emparedamento, como se vê, é levada às últimas consequências. A única saída encontrada pela personagem é a de um salto em direção à morte e sua única referência passível de identificação é um corpo já desprovido de qualquer humanidade – fator intensificado pelo nome, Boneco – e marcado pela violência policial.

A quase totalidade dos contos de Fogo Cruzado carrega essa ausência de saídas e de possibilidades de identificação harmônica com o elemento humano, características do emparedamento solitário. “A Flor, de presente”, “Eles pensam que ninguém sabe”, “Montanha Russa”, “Pancho e Valdo Kidi” e “Meu Artista Preferido” são cinco dos contos que exploram nitidamente esses elementos. Os três primeiros seguem a linha do conto que dá nome ao livro, apresentando a violência como elemento que irrompe de situações extremas de emparedamento. “Eles pensam que ninguém sabe” é, inclusive, uma reescrita de "Fogo Cruzado", com a introdução de um novo narrador: uma testemunha, que assiste por acidente à morte do foragido e vive encurralado pelo medo de que os policiais o descubram e o silenciem, matando-o. “A Flor, de Presente” é construído com a estrutura clássica do conto policial, a partir de notícias do tipo fait divers3, mas no ponto de vista de um narrador-criminoso, que assassina sua amante – Flor, uma prostituta, “piranha de luxo”, nas palavras do narrador –, ao perceber que a havia perdido para o poder econômico de um outro homem. Atacado pela solidão inquietante, trazida pela perda da amada – sua referência absoluta – o narrador a mata, esquarteja-a, e envia seus pedaços, em três caixas, para o novo amante. Já “Montanha Russa” mostra a relação desigual entre duas solidões em uma cela de presídio. De um lado, o preso Fogaça vive o paradoxo entre o respeito ao “código-de-honra” da razão e a incapacidade de reter seus desejos sexuais pela personagem homossexual Cizinha (Sidney): “Nada que possa lhe sufocar a vontade do corpo; esse desejo incontido, animal” (COLINA, 1980, p. 37). De outro, Cizinha, a desejar o afeto de Fogaça e obrigado a ser usado sexualmente por ele e pelos outros presos. Ao fim do conto, o resultado de uma relação sexual marcada pela violência entre as duas personagens é apresentado:

Quando o sol, penetrando pelas grades da janela, iluminou o cubículo, um vulto, totalmente coberto por um lençol, se estremecia num pranto silencioso. (COLINA, 1980, p. 39).

“Pancho e Valdo Kidi” e “Meu artista preferido” apresentam um diferencial, em relação aos quatro primeiros: trazem crianças como narradoras, as quais, na ausência de uma referência humana, buscam-na em outros seres: dois cães, no caso do primeiro, e vários retratos de artistas, no segundo. A emulação da linguagem – com vasta exploração de recursos vocabulares e ortográficos do registro oral – e imaginação infantis introduzem o leitor no jogo psicológico das crianças que narram, dificultando a percepção imediata dos referentes da narrativa. Citamos um parágrafo de “Pancho e Valdo Kidi” abaixo, para que se perceba:

Sabi, eu gosto muito dos dois. Gosto muito do Pancho i gosto muito do Valdo Kidi também. Agora, si tivé qui fala a verdadi, o Pancho é mais legal. Pra tudo quanto é lugar qu’eu vô ele vai junto. Topa brinca di qualqué brincadeira qu’eu arranjo. O Valdo Kidi não. È muito sério. Tá sempre mudo, di cara invocada i nunca anda co’a genti. Some di manhã i volta só di noite pra jantá i durmi. Ele é igualzinho meu tio Ordo qui quase nunca cunversava cum nóis. (COLINA: 1980, 52).

A descrição física e psicológica dos cães pela criança aproxima-se ao máximo de características humanas, de modo que, apenas nos últimos trechos do conto, o leitor poderá ter certeza de tratarem-se de animais, e não pessoas. Algo semelhante ocorre em “Meu artista preferido”, com a diferença de que, neste conto, os cartazes de artistas são apresentados como objetos para o leitor, desde o começo. Porém, o grau de humanização (ou personificação) da imagem dos artistas é altíssimo, o que pode ser evidenciado pela referência a eles pelo primeiro nome: Tarcísio (Meira), Jerry (Lewis), Regina (Duarte), Betty (Davis), Roberto (Carlos), Ney (Latorraca). Ambos os contos apresentam um ponto relevante em comum: as duas crianças tiveram seus pais levados pela polícia (“os home”), depois de humilhados na frente dos filhos. Este parece ser o ponto detonador do conflito que conduz a narrativa, nos dois casos.

Não nos cabe, aqui, traçarmos uma análise psicanalítica desta coincidência. No entanto, é importante notar seu papel na situação de emparedamento das duas personagens. No primeiro conto, embora os dois cães sejam o assunto central, é a ausência do pai que definirá os rumos da narrativa e seu desfecho: o menino termina o conto assumindo, com si mesmo e com seu interlocutor, o compromisso de, junto a Pancho e Valdo Kidi, proteger seu pai contra a polícia, “si fô priciso”. No segundo, o assunto central é a mãe, mas a prisão do pai é também determinante. Depois de o terem levado, a menina que narra o conto tem seu espaço de circulação restringido ao interior do quarto da mãe. No entender desta última, seria perigoso para a menina transitar naquele “curtiço fedorento”, longe da proteção do pai. Confinada ao quarto, cercada apenas da TV e das fotografias de artistas coladas nas paredes, a menina acompanha o definhamento progressivo de sua mãe até a morte. A menina se pergunta, então, o porquê de sua mãe estar daquele jeito:

Já chamei, chacoalhei e ela num responde e nem se mexe. Ta tão fria. Num sei o que acontece. Também num sei onde ela guardou a chave da porta. Acho que vou trepar numa cadeira, abrir a janela e gritar pra ver se alguém lá fora me ajuda, porque eu já pedi pro Tarcísio e pro Ney e eles só sabem ficar lá na parede, sorrindo (COLINA, 1980, p. 61).

Esses dois contos introduzem discretamente um elemento diferencial em Fogo cruzado. Embora apresentem situações extremas de solidão, vislumbram, através da capacidade imaginativa das duas crianças, a possibilidade de superação, ainda que provisória, desse emparedamento. E é justamente a exploração e ampliação significativa desse elemento que observaremos em Plano de Voo, segundo livro publicado pelo autor, em 1984.

2 – O voo dos pássaros da noite

Plano de voo é dividido em três partes, das quais a terceira, que leva o nome do livro, é mais extensa e com maior volume de poemas. A primeira leva o nome significativo de “Viveiro” e delineia, com o teor sintético característico da poesia de Paulo Colina, o terreno de onde e sobre o qual o poeta versifica. Para isso, apoia-se na metáfora recorrente em todo o livro – e talvez a mais importante para sua unidade – da coletividade negra (ou afrodescendente) como grupo de aves enjauladas, desejosas de levantar voo. Nos oito poemas de “Viveiro”, Colina poetiza a angústia do sujeito emparedado, inquieto frente ao “medo que me acovarda/ a tesoura que me retalha/ e poda” (COLINA, 1984, p. 13). A essa poda indesejada, os poemas articularão, como em todo o restante do livro, o espaço minado, labiríntico e, sobretudo, contraditório da metrópole pós-moderna:

ainda que
            por fim
                     nos reste
essa lua embebida
       em silêncio e estrelas
recortada na poça
              da calçada
essa baba de sol e vento
respingando pelos porões
(...)
te direi sim
te direi sim
      (COLINA, 1984, p. 14)

Embora a cidade seja, por vezes, estetizada como reedição atualizada dos porões de navios negreiros, os labirintos entrecortados das ruas guardam a promessa de liberação do desejo. Por esse caminho, o amor representa, nos poemas de Plano de voo, um lugar de realização “contra-lei” da liberdade almejada, ou, como quer Octavio Paz, com quem Colina traça intenso diálogo:

o amor [é], sem se propor a isso, um ato antissocial, pois cada vez que consegue ser realizado, viola o casamento e o transforma no que a sociedade não quer que ele seja: a revelação de duas solidões que criam por si mesmas um mundo, que quebra a mentira social, suprime o tempo e o trabalho e se declara autossuficiente. (PAZ, 1992, p. 179-180).

Essa função antissocial do amor já vinha, aliás, sendo ensaiada em Fogo Cruzado, por contos como “Ronda” e “Esta noite, Gardel”. No entanto, esse encontro de duas solidões será muitas vezes notado, pelo poeta, como insuficiente e impotente, frente às duras grades/paredes que cercam a cidade-viveiro:

Isolados,
embora juntos,
continuamos arrastando nossas almas
ao encontro dos ecos do coração
                                    emparedado
alegando inocência.
                       (COLINA, 1984, p. 16)

A necessidade de ganhar os céus torna-se, então, iminente. Passa a ser necessário, ao pássaro negro, preparar suas asas, que “só precisam de fibras/ um pouco mais fortes” (COLINA, 1984, p. 15) e alçar voo, rompendo as barreiras do viveiro e “Do tempo das sombras”, nome dado à segunda parte do livro. Nela, ressaltamos a riqueza do poema “Pequena balada insurgente”, em que se canta o mapa sombrio do universo de confinamento das aves negras, ao mesmo tempo em que insiste, com vigor, na exigência do voo. No início do poema, Colina aproxima-se do conhecido texto de Jean Paul-Sartre, Orfeu Negro, em que o filósofo fala do tom insurgente dos poemas presentes na Anthologie de La nouvelle poésie nègre et malgache, organizada por Léopold Senghor. O filósofo abre seu ensaio indagando: “O que esperáveis que acontecesse, quando tirastes a mordaça que tapava essas bocas negras? Que vos entoariam louvores?” (SARTRE, 1963, p. 89). Enquanto Colina fala do medo estampado na cidade de que

essas palavras amordaçadas
a força de covardes ameaças postadas,
de placas impunes que cantam pneus
                                 em meio ao dia
(cheio de compromissos, como sempre)
ou a tarde
              (tão cansada!)
invadam, anômalas,
comandadas por um súcia de merda,
nossas janelas
ou lacrem nossas portas
ao raiar da incerteza.
                      (COLINA, 1984, p. 25)

Esse medo da revolta do outro é relacionado pelo poeta à “alegoria crua” das grandes cidades, que insistem em manter uma relação de continuidade entre “senzala favela e sarjeta” (COLINA, 1984, p. 26), como espaços de figuração do emparedamento. Diante disso, Colina termina seu poema alertando, impassível:

Há que se decidir, senhores,
pois mesmo entre as noturnas sombras
                              desse imenso véu,
as asas negras de meu nariz
continuarão insistindo em ganhar
                o espaço aberto dos céus.
                      (COLINA, 1984, p. 26)

A terceira parte do livro, Plano de Voo, ocupar-se-á de investigar poeticamente as possibilidades do grande salto rumo aos céus, tendo sempre em mente a reflexão feita no poema “Primeira Regra de Voo”: “Quando sonhamos/ com o horizonte,/ a precisão é fundamental”. Assim, o que observaremos em poemas como “Pulsações”, “Interiores”, “Plano de Voo”, “Solitude”, “Força” ou o provocativo “Cantando conto uma lenda (Desenredo)”, é uma incessante busca de caminhos alternativos por onde o voo possa ser realizado, sem que se caia, novamente, nas arapucas de um emparedamento solitário.

Não há, nessa parte como nas outras, respostas conclusivas, traçados definitivos de uma solução capaz de rasgar o véu que cobre o viveiro dos pássaros negros. As buscas esbarram sempre em novas paredes do labirinto da solidão (PAZ, 1984) representado pela cidade. O sujeito sangra, como sangra todo o corpo do "Emparedado" de Cruz e Sousa, sem que por isso aceite abrir mão de sua liberdade: “era mister que me deixassem ao menos ser livre no Silêncio e na Solidão” (SOUSA: 1961, p. 651). O diálogo entre os dois autores, intenso em Plano de voo, é indicativo de uma mesma ferida, ainda não cicatrizada, cutucada pelas frustrações constantes do cotidiano: “Os dias gotejam/ gotas de vida” (COLINA, 1984, p. 38). De um fim de século a outro, Colina identifica o mesmo sangramento de um corpo negro em busca de reatar os laços com sua ancestralidade, desfeitos “a golpes de correntes e ondas” (COLINA, 1984, p. 60). Corpo de aves negras, enjauladas e cobertas pelo véu da noite, que, “mesmo sangrando de nostalgia e espaço” (COLINA, 1984, p. 61), ousam “erguer sua voz às alturas”, mas têm seus gritos abafados por altas paredes. E é a partir dessa identificação que Colina traçará, no poema “Cantando conto uma lenda (Desenredo)”, sua crítica mais dura ao carnaval, como expressão da cultura popular negra:

Com um pouco de sorte,
Podemos vê-las algumas horas por anos,
Em tempos de festa e vento,
Quando saem do viveiro
Tecido de uma maldição secular
A trinar canções em iorubá, kimbundu, ronga...
                                   (COLINA, 1984, p. 61)

Como se vê, o sujeito de Plano de Voo não pode conciliar com formas de expressão que precisem da licença da razão para se fazerem ouvir, abafadas por entre as paredes de uma avenida. Seus planos são de amplidão, realização absoluta do voo noturno, sob o signo do desejo.

A seguir, será possível notar como, em A noite não pede licença (1987), esse sujeito ampliará seus caminhos, ao identificar a múltipla natureza imagética da noite. Ora verá nela o lugar ideal de realização de sua existência, ora a identificação com a cor de sua pele, ou ainda, o tempo de reflexão dolorosa sobre o emparedamento solitário, através das caminhadas noturnas pela cidade.

3 – A noite não pede licença, nem mesmo o tempo.

A noite não pede licença (1987) estabelece com o livro anterior uma relação mais de continuidade que de ruptura. A inquietação frente ao sufocamento, à solidão e ao sentimento constante de perda é, também aqui, recorrente, como no poema “Sina”:

romper no grito
madrugas inertes
este vão de carinhos estranhos
ao que tudo sonhei

impossível aceitar
nas palavras
o destino das pedras
a espera sem hora marcada

às vezes ferro em brasa
solidão
         (COLINA, 1987, p. 16)

O trecho do poema acima poderia estar em Plano de voo, sem que isso prejudicasse a unidade do livro. Porém, no conjunto dos poemas de A noite não pede licença, o poema integrará um novo plano de sentidos. Se os poemas do livro de 1984 priorizavam a busca do traçado minucioso e subjetivo de um caminho rumo à libertação do “pássaro/ louco/ que se bate/ há tanto tempo” (COLINA, 1984, p. 35) dentro do eu-lírico, nas reflexões poéticas do livro de 1987 o lugar que atravessa o voo das aves negras ganhará destaque. A noite figurará, dessa forma, como véu que cobre a pele negra (DuBois, 1999), filtrando o olhar de quem se encontra dentro e fora dele:

o que sobra para a noite
                  que veste nossa pele
encruzilhadas
velas sob céu fechado
muros como varais de sonhos
                (COLINA, 1987, p. 22)

Há um tom ligeiramente pessimista em A noite não pede licença. O sujeito vê-se cercado por muros labirínticos, olha para o céu e o encontra fechado para voos. Mesmo o apelo à ancestralidade, visto, por vários escritores afro-brasileiros, como uma saída possível desse terreno de dúvidas e solidão, é colocado sob o signo da dúvida, em poemas como “Negros”:

convivência possível
no passar cabisbaixo
no abraçar as origens
                    do medo
(cera pingando na retina
de nossas encruzilhadas)
no saudar de costas
e essa porta
que nem para o mundo dá
               (COLINA, 1987, p. 49)

Nos últimos dois trechos citados, a encruzilhada – lugar de encontros de caminhos distintos e de ligação com os orixás, nas religiões afro-brasileiras, via Exu - aparece do lado de dentro do véu, mediando de maneira enigmática as relações entre o sujeito poético e o entorno problemático. A melancolia observável nesses poemas – como em muitos outros –, nascida com o pingar cotidiano das velas acesas sob céu fechado, é fruto da realidade sufocante que embaça a retina do olhar ancestral, tornando extremamente complicadas as tentativas de realização do desejo. É o que observamos, por exemplo, no poema “Turning point”:

ainda que seu corpo
               insinue caminhos
todas as portas da cidade
                           fechada
ainda que sua voz desalinhe
               algodão línguas cetins
o eco carcomido de grilhões
                   intimidando o passo
                  (COLINA, 1987, p. 29)

Aqui, a temática do amor impotente retorna, implacável. Embora possamos deparar-nos com versos como “resistência/ codinome amar”, ou “senhor de todas as tormentas/ enquanto saboreio teu batom”, não faltam imagens fortes nas palavras de Colina para lembrar-nos dos seculares cortes que impedem a realização plena do desejo amoroso:

ao seu turno
                  porém
uma navalha cumpre
                              amarga
sua metódica tarefa
           (COLINA, 1987, p. 37)

O amor seguirá, assim, condenado à fratura cotidiana e como objeto do sonho utópico de restabelecimento da unidade perdida. Colina parece finalmente encontrar, em A noite não pede licença, a maturidade poética capaz de delinear, com precisão, o mapa lírico das relações entre a falta causada por um amor fraturado, “pássaro de asa quebrada” (COLINA, 1987, p. 59), e as caminhadas noturnas pela cidade, de bar em bar, já encenadas em Fogo Cruzado e Plano de voo. Há, sem dúvida, algo do Baudelaire de As Flores do Mal nesse caminhar embriagado e solitário, carregado de spleen, pelas ruas da metrópole; algo da figura do flâneur, fixada no conhecido ensaio de Walter Benjamin (1994). Basta destacar alguns fragmentos do texto Benjaminiano para que se tenha a clara dimensão do alcance de tal interpenetração:

O melhor artifício para capturar, sonhando, a tarde nas malhas da noite é fazer planos. O flâneur faz planos. (BENJAMIN, 1994, p.194).

Na figura do flâneur prefigurou-se a do detetive (...) Convinha-lhe perfeitamente aparentar uma indolência, atrás da qual, na realidade, se oculta a intensa vigilância de um observador que não perde de vista o malfeitor incauto (BENJAMIN, 1994, p. 219).

A cidade é a realização do antigo sonho humano do labirinto. O flâneur, sem o saber, persegue essa realidade (BENJAMIN, 1994, p. 203).

Ora, se os trechos acima são exemplares dos pontos de diálogo entre o sujeito dos poemas de A noite não pede licença e a figura do flâneur, há neles uma série de dissidências igualmente relevantes e capazes de nos levar a um conjunto de reflexões finais sobre os caminhos aqui traçados.

O flâneur faz planos para capturar a tarde nas malhas da noite. Muitas vezes, como Balzac, escreve de noite e dorme de dia. Planeja caminhadas (promenades) pelo espaço banalizado (para não dizer fetichizado, ou transformado em mercadoria) das ruas. Na Paris moderna, vê diluídos os limites antes rígidos entre exterior e interior e transforma “as ruas em interiores” (BENJAMIN: 1994, 192). Já o sujeito de A noite não pede licença, tal como o esboçado em Fogo Cruzado e Plano de Voo, já se encontra capturado de saída pela tarde – identificada nos textos como os golpes do cotidiano - e veste a roupagem da noite.

O caminhar perdido do flâneur, dá lugar, em Colina, à ronda alerta às permanentes ameaças, por meio de versos curtos como: “narinas alertas/ rondo perdigueiro a cidade”. Ou ainda em poemas como “Pressentimento”:

A noite sobressaltada
por sirenes me sacode.

Reviro os bolsos a procura do passe
que me permite, São Paulo, cruzar ruas
em latente paz.
                        (COLINA, 1987, p. 52)

O poema acima, que inicia e termina com uma crítica ao caráter falacioso da abolição, assinada em 13 de Maio, deixa claro como o ser negro na cidade de São Paulo do final do século XX opõe-se ao ser flâneur, na Paris, capital do século XIX. Se, para Benjamin, a figura do detetive está prefigurada na do flâneur, a do marginalizado em estado de exceção está presentificada nas vozes dos textos de Colina. Vozes vigiadas pelos olhares racistas de uma população que enxerga, por trás do véu, a imagem de um criminoso em potencial. Assim, a cidade, realização do antigo sonho ocidental do labirinto, como bem nota Benjamin, elege seus marginais e a eles fecha todas as portas. Emparedados, resta a eles vagar pelas ruas, anti-flâneurs, na eterna busca da superação da ferida secular, como no poema “Vídeo Game”:

No labirinto
de cimento armado da cidade
a Noite tromba
em busca de alternativas
                      possíveis.
           (COLINA, 1987, p. 55)

Nesse videogame urbano, em que o aviso de game over (fim de jogo) parece sempre já anunciado, Paulo Colina insiste em realizar jogadas obstinadas, minuciosamente planejadas, contra o emparedamento solitário:

jamais aceitei passivo as contradições
do que chamam destino

sigo porém criança velejando
contra ventos e marés do mundo

a angústia é uma roleta russa
                    (COLINA, 1987, p. 42)

Resta-nos indagar, por fim, até que ponto essa bala da angústia não foi fatal para o autor, colocando um ponto final em seus projetos literários. A última publicação do autor, Todo fogo da luta, livro de poemas, consta de 1989 e, provavelmente, teve circulação mais restrita. Pelo menos três outras obras do autor permanecem inéditas, à espera de publicação: o livro de contos Senta que o dragão é manso, a coletânea de ensaios, artigos e crônicas Águas-fortes em beco escuro, e Entre dentes – drama em um ato para negros. Paulo Colina morre em outubro de 1999, aos quarenta e nove anos, vítima do mal de chagas. No entanto, “para alguns dos amigos mais próximos, a causa mortis foi outra: Colina morreu assassinado pelo desemprego, que o consumia há quase dez anos” (HAJE, 2009). Aliados à consciência desses fatos, os textos de Paulo Colina obrigam-nos a repensar criticamente o lugar relegado não só ao escritor afro-brasileiro (ou negro), no campo literário e na sociedade contemporânea, como também aos cidadãos marginalizados, condenados a situações limítrofes de emparedamento solitário.

Referências

BENJAMIN, Walter. O Flâneur. In: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1997. 3ª ed. p. 185-236.

CADERNOS NEGROS 2: contos. São Paulo: Ed. dos autores, 1979.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1984. 4ª ed.

COLINA, Paulo. A noite não pede licença. São Paulo: Roswitha Kempf, 1984.

____________. Fogo Cruzado. São Paulo: Edições Populares, 1980.

____________. Plano de voo. São Paulo: Roswitha Kempf, 1987.

____________. Um breve tambor nos olhos. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS SOBRE JORGE AMADO, 1., 1992, Salvador. Um grapiúna no país do carnaval. Salvador: Edufba, Casa de Palavras, 2000. p. 231 - 250.

COSTA, Aline. Uma história que está apenas começando. in: RIBEIRO, Esmeralda, BARBOSA, Márcio (orgs.). Cadernos Negros, três décadas: ensaios, poemas, contos. São Paulo: Quilombhoje, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2008.

HAJE, Bahiji. E lá se foi Colina... “nos ombros largos da noite”. in: Homenagem a Paulo Colina. disponível em: http://www.pco.org.br/joaocandido/colina/e_la_se_foi_colina.htm. Acesso em: 20 de Outubro de 2009.

HALL, Stuart. Que “negro” é esse na cultura negra? In: Da diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: UFMG, Humanitas, 2006.

PAZ, Octavio. O Labirinto da solidão e Post Scriptum. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

SARTRE, Jean-Paul. Orfeu Negro. In: SARTRE, Jean-Paul. Reflexões Sobre o Racismo. 3. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1963. p. 89-125.

SOUSA, Cruz e. Obra Completa. Rio de Janeiro: José Aguiar, 1961.

Notas 

1 Dos escritores lançados pela série Cadernos Negros, no final dos anos setenta e ao longo dos anos oitenta, podemos citar, como exemplos: Jamu Minka, Henrique Cunha Jr., Márcio Barbosa, Miriam Alves.

2 O procedimento crítico de Fábio Lucas parece buscar os elementos “externos” (sociais, no caso), que tornam-se “internos” à estrutura do texto, procedimento bem caro à crítica sociológica brasileira (ver CANDIDO, 1984).

3 Fait divers é um termo francês que se refere, em geral, a notícias que não se encaixam nas categorias convencionais dos jornais, por se tratarem de assuntos de exceção, excêntricos, na maior parte das vezes. A literatura policial explorou amplamente esse formato para a construção de suas narrativas.

* Gustavo de Oliveira Bicalho é professor, pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA, da FALE-UFMG, Mestre em Letras e Doutorando em Estudos Literários pela mesma instituição, e membro da Comissão Editorial do LITERAFRO – Portal da literatura afro-brasileira.

 

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