O preconceito não pede licença

Eduarda Rodrigues Costa*

Autêntico poeta da negritude, Paulo Colina se destaca pela preocupação em denunciar o preconceito racial de que é vítima a população afro-brasileira. Sua militância pela causa negra reproduziu a luta pelo respeito à diferença mostrada, primeiramente, nos dois volumes dos Cadernos Negros, de que fez parte como poeta e contista e, pouco depois, em sua obra individual, que começou a ser publicada a partir da década de 80. Como tal, produziu uma textualidade marcada pelo projeto político do grupo Quilombhoje, do qual foi um dos fundadores. Porém sua literatura não se resume ao texto engajado na denúncia da condição subalterna da população afro-descendente. Em sua auto-apresentação no número 2 de Cadernos Negros afirma:

Não sou um negro escritor e muito menos um escritor negro. Na verdade, sou um contador de es/histórias tal como meu avô ou meu tio-avô, quando nos reuníamos no quintal, no verão, ou na cozinha, nas noites frias, sentados em banquinhos de madeira. Sou um repórter do dia-a-dia, da nossa realidade. Sou um olho nas vilas, favelas, cortiços, nos sambas, na cidade-vida nossa. O que me difere do meu avô contador de es/histórias é que eu escrevo ao invés de falar, pois as nossas realidades mudaram um pouco, e que, contar, para ele era um ato lúdico enquanto que para mim é algo compulsório, do qual não posso fugir. Escrevo porque há que se despertar a consciência adormecida e preguiçosa do nosso povo, porque há que se cutucar com punhais/palavras os marginalizados que são meus personagens (e que provavelmente – não por falta de empenho de minha parte – nem venham a ler meus textos), porque há que se tentar sacudir a classe média, que só tem monstros sagrados e empoeirados e best-sellers que em nada condizem com a nossa realidade, em suas estantes, uma realidade que fingimos não ver, e porque entendo que a literatura não deveria pertencer a uma determinada classe social e/ou raça. (COLINA, 1979, p. 103).

Essa profissão de fé condiz bem com o momento histórico de emergência do movimento negro no país, em sua opção pelo relato quase jornalístico objetivando atingir um público mais amplo. Nessa perspectiva, Eduardo de Oliveira (1998) assinala que o autor “pertence à corrente literária da negritude que melhor se identifica com um posicionamento de consciência político-social. Visto por esta vertente, Paulo Colina é o criador de uma obra capaz de motivar as militâncias dos movimentos rebeldes de causas justas e determinadas, tanto quanto os que hoje estão engajados no realismo da negritude pulsante que permeia a consciência e a sensibilidade de negros e brancos desse país”.

Comentando o livro de estréia do autor, que vem a público em 1980, Fábio Lucas (1983: 168-172) aponta para a superação do tom militante dos primeiros escritos e afirma “a ficção de Paulo Colina, especialmente em Fogo cruzado, escapa, no fundo e na forma, de modo distanciador, por isso o relato narrativo se faz nitidamente após uma observação participante. Ademais, a predominância aqui, nesta coleção de contos, da corrente do pensamento e do monólogo interior, estabelece uma visão de dentro para fora, e não inversamente, de fora para dentro”. E prossegue: “as estórias de Paulo Colina, recorrentes, às vezes, no relato da situação existencial dos personagens, pretendem justamente dar evidências à desproteção total em que se encontra uma parcela dos brasileiros.”

O poeta foi incluído por Zilá Bernd em sua antologia Poesia negra brasileira, na seção intitulada “A consciência trágica”, devido ao questionamento que Colina fez acerca da existência de uma comunidade em que os afro-descendentes sintam-se parte integrante social e culturalmente. Sua preocupação foi além dos limites da etnicidade, de modo que se preocupava em mobilizar um leitor, tanto negro quanto branco, pois tinha consciência de que o preconceito se encontra em toda parte.

Em 1987, Paulo Colina publica o livro de poemas A noite não pede licença, obra na qual a atmosfera noturna da atualidade aparece como lugar onde reminiscências de um passado escravo emergem, evidenciando os desejos e dores que foram transmitidos para as gerações de descendentes. Consciente de que a afirmação identitária do afro-brasileiro contribui para a reivindicação de um lugar comum na sociedade que insiste em excluí-lo, o poeta discute a situação de subalternidade a que os negros foram submetidos:

SINA

 

impossível aceitar

 

nas palavras

 

o destino das pedras

 

a espera sem hora marcada

(COLINA, 1987, p. 16)

O sujeito, numa atitude de resistência, recusa-se a aceitar “o destino das pedras”, a ser tratado como objeto por uma sociedade que insiste em colocá-lo em segundo plano. Nessa mesma linha, o poema “Balanço” aponta para um levantamento da situação do afro-descendente diante da realidade desigual a que é relegado desde outros tempos. Contrariamente ao contexto repressivo em que se encontra imerso, através da escrita, o poeta busca dar voz aos que permaneceram por muito tempo calados, inserindo um eu lírico que abraça sua negritude, exaltando a beleza negra e declarando sua especificidade étnica:

coubesse a mim escolher

novamente abraçaria a noite

entranhada em minha pele

 

jamais aceitei passivo as contradições

do que chamam destino

(COLINA, 1987, p. 42)

O livro é marcado constantemente pelo movimento entre passado escravo e presente opressivo, sem, contudo, adotar uma postura de autocomiseração. Pelo contrário, os símbolos escolhidos por Colina apontam para uma identificação com a luta palmarina. Luta esta que tem como armas os versos do poeta:

 

PRESSENTIMENTO

 

A Princesa esqueceu-se de assinar

nossas carteiras de trabalho.

 

Desconfio, sim, que Palmares vivo

é necessário.

(COLINA, 1987, p. 52)

O poeta ironiza o “esquecimento” da Princesa que, uma vez tendo assinado a lei da abolição, seria necessário que conferisse, aos escravos, meios com os quais assumissem sua liberdade dignamente, o que, de fato, não aconteceu. O tema é retomado no poema “Oferenda”:

 

Os tambores que persistem nas noites

dos tempos

não embalam simples recordações: -

há que se recriar paciente

nosso universo turvo.

(COLINA, 1987, p. 32)

O som dos tambores que não cessa funciona como alimento para lutar por uma realidade diferente da atual, que aceite os elementos herdados de África tão bem como recebe os vindos da Europa. Neste sentido é que à palavra “turvo” é atribuído um sentido positivo, termo que em geral é metaforizado negativamente.

A noite também é palco para o cenário amoroso, que é cantado em vários poemas dotados de refinado erotismo, nos quais a figura da amada é exaltada. No poema “Forma e conteúdo”, o fazer poético é identificado com o ato sexual:

Quero a rima no tremor

de nossas carnes em delírio,

paixão,

no marulhar sudorento

dos nossos corpos saciados.

E só.

(COLINA, 1987, p. 44)

Nesta mesma linha, “Dobrando Solidão” ilustra bem a confluência que o poeta estabelece entre o casal e a noite, de modo que esta, negra como os dois amantes, se entranha no ninho amoroso, que, por sua vez, contrasta com a brancura do “linho revolto”:

úmidos suspiros

respingando a noite

espraiada em nossa pele

sobre linho revolto

(COLINA, 1987, p. 57)

Os versos acima demonstram o trato apurado que o autor teve com sua obra, pois ele acreditava que a arte não se improvisava e que só por meio de um alto nível estético se alcançaria o reconhecimento desejado. Um poema que comprova isto é “Corpo a corpo”:

a vida é uma horda bárbara

de sentimentos

 

as noites tentam desde o princípio

de tudo

a derrubada de estigmas primários

 

o cotidiano tem sempre à mão

um repertório de sambas e blues

 

o papel branco vive me jogando

desafios na cara

 

ser marginal todavia

só interessa à paixão

 

bastaria ao poema apenas

a cor da minha pele?

(COLINA, 1987, p. 41)

Nos versos acima a noite adquire caráter afirmativo na tentativa de abolir os vícios do preconceito, porém esbarra num cotidiano que busca desviar o olhar crítico da realidade injusta para outra, adornada de sambas e blues. Isto condiz bem com as idéias de país cordial e de democracia racial, largamente difundidas no século passado. Embora sejam inconcebíveis na atualidade, tais pensamentos se arraigaram no senso comum, representando entraves no exercício de cidadania dos afro-descendentes. No poema, é apontado o constante desafio a que é levado o homem negro, agora testado pelo papel branco, - ou do branco - situação que remete para a dificuldade de acesso ao conhecimento intelectual pelo outro. Mas o eu lírico alerta que a marginalidade só interessa ao imaginário das paixões, nunca enquanto posição em relação ao outro. Para tanto ele expõe seu caráter étnico como elemento de exclusão e questiona se isso seria suficiente para a sustentação da sua escrita.

Deste modo, o poeta exemplifica de forma precisa a preocupação em produzir uma escrita que não se limitasse ao “tema negro”, mas que se destacasse pela consistência de sentido estético. Além disso, é necessário observar que a literatura afro-brasileira não se limita à cor da pele, mas à cor da escrita negra que o autor faz emergir do texto. Essa especificidade é obtida a partir de um assumir-se afro-descendente que culmina na admissão de um ponto de vista identificado com as questões relativas ao mesmo, no emprego de uma linguagem dotada de ritmo, vocabulário e imaginário particular. Paulo Colina produz uma arte marcada pelo cunho político e em nada perde para os outros modelos que dela se diferem, pelo contrário, o autor se destaca pela preocupação, sobretudo, com o ser humano e não somente pela questão étnica.

Referências

BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.

BERND, Zilá. O plano de vôo de Paulo Colina. In: http://www.pco.org.br/joaocandido/colina/plano_de_colina.htm

CAMARGO, Oswaldo de. Meu companheiro Paulo Colina, Poeta no claro e no escuro. In: http://www.pco.org.br/joaocandido/colina/paulo_colina.htm

COLINA, Paulo. A noite não pede licença. São Paulo: Roswitha Kempf, 1987.

IANNI, Octavio. Literatura e consciência. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Ed. comemorativa do Centenário da Abolição da Escravatura. São Paulo: USP, n° 28, 1988.

 

* Eduarda Rodrigues da Costa é professora, graduada em Letras pela UFMG.

 

Texto para download