A descoberta do frio: a prosa afro-brasileira de Oswaldo de Camargo

Zélia Maria N. Neves Vaz*

(...) enfrentar um preconceito assim tão extenso só poderia trazer o inevitável autoquestionamento, o descrédito de si e o rebaixamento dos ideais que sempre acompanham a repressão e germinam em uma atmosfera de desprezo e de ódio.

As almas da gente negra,

Du Bois

O presente trabalho visa analisar a produção de Oswaldo Camargo referente à prosa, mais especificamente ao livro A descoberta do frio (1979). Entretanto, é inevitável, quando se examina esta obra do escritor, não pontuar, ainda que brevemente, a pouca influência da literatura afro-brasileira, atestada em seus primeiros escritos, que compreendem os anos cinqüenta e sessenta. Nesse sentido, a literatura de Oswaldo de Camargo não busca, explicitamente, já em seu início, retratar a problemática afro-descendente. Essa conduta de não valorização da negrura, verificada em suas poesias iniciais, é, indubitavelmente, o reflexo de um sujeito negro descentrado, que se autoquestiona ao se deparar com um universo ocidental dominante, preconceituoso e excludente. Deslocado nessa sociedade etnocêntrica, que o inferioriza, o negro, por mais que objetive recorrer à sua negritude, acaba por ser sufocado pela cultura branca, assim como nos esclarece, de forma brilhante, Jean Paul Sartre, em seu ensaio “Orfeu negro”:

(...) a alma negra é uma África da qual o preto está exilado no meio dos frios buildings da cultura e da técnica brancas. A negritude toda presente e oculta o obseda, o roça, ele se roça em sua asa sedosa, ela palpita, toda distendida através dele, como sua profunda memória (...). Mas tão logo o negro se volve para encará-la de frente, ela se esvanece como fumaça, erguendo-se entre ambos as muralhas da cultura branca, sua ciência, suas palavras, seus costumes. (SARTRE, 1963: 97)

 

A descrição da negritude que deseja emergir da alma do negro, mas, no entanto, perde-se nestas “muralhas brancas”, nos valores hegemônicos, é um exemplo esclarecedor, quando toma-se como parâmetro a primeira fase literária de Oswaldo de Camargo. Nela, a cultura do dominador se sobressai e, dessa maneira, a herança africana, o questionamento da ordem vigente, enfim, o empenho com a causa negra não se fazem presentes. Tais apontamentos são fundamentais para que se estabeleça um contraponto com a obra a ser analisada. Assim, numa vertente oposta a esta acima referida, o ficcionista Oswaldo de Camargo refletirá em sua produção posterior um escritor consciente de sua ancestralidade africana, a qual culminará em uma estética negra que objetiva primeiramente transformar em “obra de arte seu próprio drama” (Clóvis Moura). Esse amadurecimento literário, quando tomamos como referência a literatura afro-brasileira, mostra-se, indubitavelmente, reproduzido na novela A descoberta do frio (1979). Neste livro, Camargo apresenta-se como um intelectual negro atento às questões da população afrodescendente, na medida em que propõe como temática a discriminação racial, sem, no entanto, desvencilhar-se do recurso artístico. Nesse sentido, o prefaciador da novela, Clóvis Moura, assevera:

A descoberta do frio é um livro desconcertante. Nasce como um simples exercício literário. Sua espiral sobe, envolve o leitor. A dramaticidade através da qual Oswaldo de Camargo trata o seu tema e manipula os seus personagens permite-lhe terminar o livro numa postura de artista que domina sua técnica. (MOURA, 1979: 10)

A tônica desenvolvida na novela é a problemática do preconceito que, articulada de forma sutil e inteligente por Oswaldo de Camargo, aparece subentendida na própria estrutura narrativa. A história é ambientada em uma grande cidade e traz personagens afrodescendentes, muitos deles poetas, e já conscientes do espaço social desprivilegiado ocupado pelo negro. Em sua maioria, se inserem em grupos que discutem e produzem a cultura, a arte, e, sobretudo, a literatura negra, objetivando, assim, afirmar-se enquanto sujeitos e subverter a realidade precária que os rodeia. Considerando que o universo dos personagens encontra-se fortemente vinculado ao caráter artístico, não é de se estranhar a presença, a todo instante, dos intertextos e referências a escritores, que vão desde os africanos ou afro-brasileiros, até os canônicos, são eles: Agostinho Neto, Arlindo Barbeitos, Oliveira Silveira, Mallarmé, Elliot, Cruz e Sousa, dentre outros.

O elemento que conduz a narrativa, já em seu início, é um suposto “frio”, e este atinge somente aqueles marcados pela cor negra. Este “frio”, desacreditado por muitos, segundo o personagem Zé Antunes, existe desde tempos muito remotos, contudo, os fatos referentes a ele jamais eram divulgados. Após o aparecimento na cidade da primeira vítima deste “bafo gélido” (CAMARGO, 1979), o jovem Josué Estevão, surge então a oportunidade de Zé Antunes comprovar a veracidade da temível doença. Em momento algum é afirmado explicitamente qual a procedência, ou há quanto tempo precisamente a “frialidade” (CAMARGO, 1979) existe. Cabe ao próprio leitor desvendar esse mistério. Para tanto, o mesmo deve ficar atento à narrativa, uma vez que a explicação não salta aos olhos, é necessário analisar e refletir acerca desse “frio”. Se, por um lado, a doença apresenta-se como uma incógnita, já por outro, os sintomas podem ser verificados claramente. É o que nos comprova o personagem Zé Antunes ao descrever, por meio de uma carta ao Padre Antônio Jubileu, o mal que assola os negros e agora está a rondar a cidade:

A doença, padre, é o frio. Um frio que faz o coitado entrar no ridículo de se cobrir de flanelas, bonés, peles: o queixo treme, de se ouvir de longe, a vítima não consegue falar, dos olhos descem lágrimas, mas, padre, dentro é que está a miséria: o infeliz vira um campo de batalha onde a desgraça dá vivas à sua completa vitória. Parece que o seu pensamento, o único possível no momento, é este: Meu Deus, se eu fosse branco!? (...) Sou um micróbio preto, vou desaparecer! E some, definitivamente. (CAMARGO, 1979: 52)

 

O trecho evidencia um “frio” que aparentemente atinge o corpo físico, entretanto, o que se verifica é justamente o contrário. A doença afeta a alma, o mais profundo do ser e tal ocorrência se refletirá externamente no frio sentido pela vítima. Este, como é possível notar, não é um “fenômeno atmosférico, meteorológico” (MOURA 1979: 10), mas antes uma enfermidade, que, ao atingir o negro, acarreta o sintoma da vergonha, do desejo do desaparecimento, do descrédito de si mesmo, enfim, tudo o que se almeja é negar sua negritude. Assim, o intuito maior é o de se tornar branco, como se esta fosse a única forma de obter respeitabilidade e conseqüentemente um espaço mais digno e igualitário. Devido ao desaparecimento da vítima, e, portanto, à incapacidade de se constatar a real manifestação do melanoscrios (CAMARGO, 1979: 48), nome científico da doença, as opiniões irão se confrontar entre aqueles que reconhecem a sua existência e aqueles que optam por desacreditar da mesma.

No desenrolar da história, Zé Antunes segue incessantemente sua luta pela comprovação do “frio”, que, segundo alguns relatos, fazia vítimas desde os tempos da escravidão, o que vem a ser certificado pelo episódio dos Montes Piracaios. Tal evento é anunciado já nos primeiros capítulos do livro, sem que haja, no entanto, uma explicação para o mesmo, característica que aguça a curiosidade do leitor e corrobora um envolvimento maior com a história. O fato será, de certa forma, esclarecido pelo personagem Padre Antônio Jubileu, que detém a informação acerca deste acontecimento histórico. O leitor, dessa forma, espera ansiosamente o relato do episódio, por julgar que assim o “enigma” da “frialidade” será finalmente desvendado. Neste momento, Padre Antônio Jubileu, em entrevista a um programa televisivo, narra, então, a curta trajetória de um grupo de escravos que, em 1746 com intuito de fugir de sua triste condição, vão em direção aos Montes Piracaios e lá morrem atingidos por misteriosa doença:

Não se sabe por que, todos morreram de repente, machucados por estranha doença. Todos morreram! Todos morreram! As ossadas, porém, permaneceram sobre as pedras; as habitações apodreceram. (...) Já não possuíam alma aqueles negros, de muito não a possuíam. Minha opinião é esta: a alma deles, no momento, consistia em somente subir até uma certa altura dos montes onde nunca mais pudessem ser alcançados. (CAMARGO, 1979: 68).

Nota-se que nem mesmo neste momento há a elucidação do que seja a misteriosa doença. Sabe-se que ela atinge a alma e faz desaparecer os negros que por ela são atingidos, mas não é possível compreender o que ocasiona tal efeito. É interessante observar neste ponto a quebra da expectativa do leitor por meio do anticlímax, pois, durante toda a leitura, espera-se que o episódio dos Montes Piracaios venha esclarecer melhor a doença provocada pelo “frio”, entretanto, tal fato não ocorre.

Outro momento substancial, que corrobora a constatação da “frialidade”, é o instante em que o personagem e poeta Batista Jordão encontra, em seus velhos jornais da imprensa negra, versos de Pedro Antônio Garcia que, em 1920, difundiu em seus poemas a temida “doença”. Há dois pontos relevantes a serem salientados acerca deste episódio: o primeiro refere-se obviamente à questão do “frio”, visto que ratifica a sua procedência em períodos remotos, levando-nos a certificar sua antiga existência. O segundo é que juntamente com a problemática do “frio”, é posta em discussão a literatura produzida pelo intelectual negro. Este, por tornar-se consciente de sua negrura, desveste sua arte dos padrões canônicos, buscando uma poesia mais vinculada à sua realidade, e às suas raízes africanas, como nos comprova a seguinte passagem:

Quando Pedro Antônio Garcia, parnasiano em 1920, rompeu com a métrica, a rima rica e outros regulamentos, para dizer com versos mancos, frouxos: “Eu vago toda noite, vago, vago/ pela cidade, retraído e mudo,/ caiu-me inesperado, n´alma o frio. (...)”. Quando escreveu isso, testemunhava simplesmente o frio. (...). Pedro Garcia morreu na miséria. Falou e escreveu por doze anos sobre o frio. E os versos se comportaram mal; e palavras de cunho quimbundo surgiram, batucando sobre o chão onde imperava, por largo tempo, o soneto alexandrino. (CAMARGO, 1979: 77)

 

Neste caso, Oswaldo de Camargo, sem desvencilhar-se do elemento dramático condutor da história, retrata a necessidade do poeta negro se esquivar do branqueamento, refutando o estilo literário do dominador e criando uma arte mais autêntica que contemple e problematize o drama existencial do negro. O ficcionista mescla, em várias circunstâncias da trama, a temática principal com outras questões secundárias, porém de extrema importância como é, neste exemplo, a polêmica existente na literatura entre “estética negra” e “estética branca”. A partir destes e alguns outros depoimentos, manifestos no decorrer da narrativa, vai-se inferindo aos poucos que o frio sugere a representação do preconceito, concretizado em uma “doença” de difícil identificação.

Já nos acontecimentos finais da trama, por um único momento, o “frio” pode ser testemunhado e comprovado por todos, entretanto, o elemento causador da “frialidade” insiste em não se revelar. Ao ser difundida pela cidade a notícia de que uma doença misteriosa estava a assolar a comunidade negra e que o garoto Josué Estevão, a primeira vítima, havia desaparecido, a presença do “frio” torna-se perceptível e o mesmo é então sentido pelos afrodescendentes. Tal qual afirma Clóvis Moura, “um frio que vem como uma peste desconhecida ao molde de Edgar Allan Poe, cola-se às epidermes, verticaliza-se, vai ao âmago daqueles que o sentem”:

(...)e começou a aparecer gente com os sintomas. Pretos luzidios (...) submetidos a inimagináveis tremores, gelidez, o olho morto, vertendo água (...). Na alma, ah, na alma o frio, berrando o seu grito de mando”. (...) Tal foi o primeiro, único e visível aparecimento do frio. Zé Antunes, dizem que sumiram com ele. Quem sumiu com ele? Como!? O frio? Mas, provou-se que o frio... O frio, velho, alvo e impiedoso frio...(CAMARGO, 1979: 90 - 94).

 

Ao finalizar a história utilizando as reticências, o autor responsabiliza o leitor pela conclusão da narrativa, incitando o mesmo à meditação. Nesse sentido, o leitor encerra um papel substancial na novela, uma vez que irá construir a significação do “frio”, ao ler nas entrelinhas, ou mesmo identificar nas sutilezas dos diálogos, realizados entre os personagens, que esta “doença” é a representação do “alvo” e “velho” preconceito. É interessante observar a maneira pela qual o ficcionista utiliza um recurso simbólico para trabalhar a discriminação racial. É como se escritor alertasse o leitor de que, assim como na ficção, o frio/preconceito no Brasil é ainda algo velado, desacreditado por muitos e de difícil identificação. Esta “doença”, e aqui não deixemos escapar a força deste signo, se afirma, em muitos momentos, de forma sutil, verificada quando menos se espera, por meio de um gesto, uma palavra ou atitude do branco. Esse desmascaramento do mito da democracia racial, incinta-nos a uma reflexão e conseqüentemente nos faz perceber que o “frio” é secular e revela uma cultura dominante que condena os negros à eterna marginalização.

Oswaldo de Camargo, por meio do recurso metafórico, trabalha brilhantemente a questão do preconceito, envolvendo o leitor, fazendo com que o mesmo, juntamente com os personagens, busque incessantemente a revelação do mistério. O ficcionista realiza, enquanto escritor, aquilo que Sartre assevera em seu livro Que é a literatura, ou seja, decide “desvendar o mundo e especialmente o homem para os próprios homens, a fim de que esses assumam em face do objeto, assim posto a nu a sua inteira responsabilidade.” Nessa vertente, Camargo adota um posicionamento condizente com seu papel de intelectual negro, visto que se responsabiliza por escancarar, ou “por a nu” – nos dizeres de Sartre – o preconceito racial, para que assim o homem, sobretudo o branco, da mesma forma que o escritor, arque com a realidade de uma raça que carrega por longo período os estigmas de sua cor.

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*Graduanda em Letras pela UFMG.

 REFERÊNCIAS:

CAMARGO, Oswaldo de. A descoberta do frio. São Paulo: Edições Populares, 1979.

SARTRE, Jean-Paul. “Orfeu Negro” In: Reflexões sobre o racismo. São Paulo: Difusão européia do livro, 1963.

SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura?. São Paulo: Editora Ática, 2004.

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