Fiapos de Lembrança de um Negro Brasileiro

Ricardo Riso*

A presença de negros autores escrevendo na primeira pessoa do singular ainda é uma experiência incipiente na literatura negro-brasileira, apesar de termos o célebre registro autobiográfico de Luiz Gama no século XIX, sendo um marco estimulante para narrativas de negras e negros e os seus diferentes cotidianos negligenciados pela literatura canônica e historiografia oficial brasileira. Para as cabeças que não se deixam guiar por autoenganos, sabemos que esse “esquecimento” das histórias negras não é gratuito, constitui, de forma basilar, o projeto de nação inicial do Brasil republicano, parte de uma série de estratégias para manter negros na subalternidade, na humilhação imposta pela miséria, que seguiria firme ao apoiar um determinismo biológico fortalecido pelo autoritarismo da ditadura Vargas como estratégias de controle social e identificação de setores da população que deveriam ser perseguidos, sustentando o uso da força em tais inimigos objetivos (FERLA, 2009), os negros.

Dentro dessa perspectiva celebra-se o lançamento de Raiz de um negro brasileiro: um esboço autobiográfico, de Oswaldo de Camargo (1936), o escritor e intelectual considerado o “elo de gerações” (CUTI, 2010) da literatura e do movimento negro brasileiro. Com uma longa história nessas duas categorias, Oswaldo de Camargo participou e permanece participando de momentos essenciais da história dos negros brasileiros. Apenas para citar alguns eventos relevantes de sua trajetória, tem-se a participação do autor na Associação Cultural do Negro, que reuniu nomes marcantes da Imprensa Negra paulista e da Frente Negra Brasileira ao final dos anos 1950; participou do jornal O Ébano.

Entre suas publicações, temos, Um homem tenta ser anjo (1959); 15 Poemas Negros (1961), incluindo prefácio de Florestan Fernandes; e O estranho (1984); na prosa, títulos como O carro do êxito (1972), A descoberta do frio (1979, 2011) e Oboé (2014); no ensaio, O negro escrito (1987). Organizou ainda a antologia A raiz da chama (1986); integrou o primeiro volume da série Cadernos Negros (1978); foi cofundador do Quilombhoje. Seu nome compõe algumas das principais antologias de literatura negro-brasileira, tais como Schwarze Poesie (1988) e Literatura e Afrodescendência no Brasil (2011). Raiz de um negro brasileiro, mais uma publicação da Ciclo Contínuo Editorial, que vem se destacando pelo cuidado de possibilitar acesso a títulos de nomes históricos da literatura negro-brasileira, tais como Carlos de Assumpção e Abelardo Rodrigues, além do olhar atento para as novas produções – caso do prosador Fábio Mandingo, tem prefácio de Mário Augusto Medeiros da Silva e texto de capa sob a responsabilidade de Lígia Fonseca Ferreira.

Raiz de um negro brasileiro é um livro que inscreve a sua importância extrema na literatura ao apresentar a narrativa em primeira pessoa, ao trazer a tão esperada autobiografia de um dos nossos principais autores, de alguém que encanta pela memória privilegiada constatada em palestras e conversas diversas. Quando lemos o conteúdo desse livro, é inevitável não pensarmos no pacto autobiográfico de Phillipe LeJeune (2008), porém não vamos nos deter nele, apesar dos incontáveis fatos verificáveis ao longo do texto, da reiteração da narrativa em primeira pessoa, da plena consciência da conjuntura histórica que impôs sobre si, das mutilações sofridas pelas adversidades vividas desafiadas pela memória fragmentada, resultando em um texto de reflexão provocante e de caráter aberto (GALLE, 2006).

“Sou um negro brasileiro”. Esta é a constatação que inicia de forma seca, direta e contundente a narração de Oswaldo de Camargo, que durante todo o livro demarca o lugar de onde veio, de seu pertencimento racial e a sua posição frente a um Brasil racista da sua infância e adolescência e ainda do nosso tempo. Por isso, o autor aproveita-se da indeterminação do artigo para navegar entre um eu singular e plural, individual e coletivo, com maestria de linguagem que encanta pela verve sólida, concisa, irônica e veemente. Vejamos:

Quando nasci, era mais fácil para meu país prever a via pela qual transitariam corpo e sombra de um recém-nascido preto, e até pôr-se à espreita, observando o seu trajeto, quase sempre pouco interessante ou mesmo enfadonho, de tão repetitivo: ‘Será, entre os demais, um brasileiro comum, nada soerguido acima do chão que recolheu as suas primeiras pegadas; a pretidão que o realça – o seu mais notado emblema – não se enveredará por caminhos imprevisíveis. [...]

A Pátria sabia a segurança que era ter, no futuro, sobre seu solo, tal matiz de negro brasileiro, pois o inesperado é terrível, ameaça o construído, corrói obras a que se chegou com esforço até demasiado. [...] Foi esta minha situação e da maioria dos meus companheiros (CAMARGO, 2015, p. 21).

Camargo nasceu quarenta e oito anos após a abolição da escravidão, no dia 22 de julho de 1936, em um Brasil ainda influenciado pelas teorias racistas dos intelectuais do período, de um país que conviveria com políticas públicas baseadas na eugenia durante a ditadura Vargas, do total abandono da população negra, entregue à própria sorte, sem emprego digno, sem acesso à educação. O autor narra o seu drama e o entrelaça aos dramas de outros negros de seu tempo, enriquecidos pela elegância no trato com a linguagem e a precisão no uso da ironia, desmascarando a hipocrisia do discurso hegemônico.

O registro autobiográfico de Camargo demonstra sua potência ao focalizar a sua infância na cidade de Bragança Paulista, interior de São Paulo, privilegiando o mapeamento de uma cidade negra com seus clubes sociais, escolas de alfabetização e os escassos espaços de circulação permitidos à população negra. Em menor escala, temos contato com a sua juventude, já na capital paulista, a importante passagem pela Associação Cultural do Negro merece nosso destaque. Retomando a vivência interiorana, na Fazenda Sinhazinha Félix a narração demonstra o passado escravocrata, ainda, infelizmente, tangível na memória da criança e nos mais velhos que vivenciaram diretamente a crueldade do sistema ou o convívio com descendentes escravizados. A materialização disso está na Capela da Santa Cruz dos Enforcados, onde se castigava escravizados que tinham cometidos “faltas graves”:

[...] Ali, cara a cara com um passado que ainda gritava amarguras e, por vezes, desesperança, posta-se, ainda hoje, o memorial à servidão e ao sacrifício, durante muitos anos, do negro em minha cidade. [...]

Muitos daqueles negros sabiam ou imaginavam o que tinham sido as Capelas dos Enforcados e seus arredores. Remetiam à vida de quase todos, especialmente à dos mais idosos [...]. (CAMARGO, 2015, p. 69-71).

Nesse sentido, o texto de Camargo é pungente no uso da ironia ao realizar autocrítica quando reflete acerca da mentalidade subalterna e da resignação de seus pares diante de um Brasil desigual, valendo-se de recursos discursivos para valorizar a elegância de suas ideias ao demonstrar a base estrutural que mantém a exclusão racial e social tão evidenciada na população negra durante a sua infância. Nessa escrita de si, Camargo demonstra segurança e criatividade ao encruzilhar fatos de sua vida para construir a sua ficção, esgarçando vida e ficção, assim como o gênero autobiografia ao inserir as reproduções integrais de textos de prosa ou poesia citados ao longo da autobiografia, em um caderno cuidadosamente intitulado “Aproximações”. Frisamos que essas aproximações somente enriquecem a percepção da tessitura textual, o apuro do autor com sua obra, pois não é apenas a transposição de fatos e personagens de sua vida para o texto literário, mas sim um cuidado estético que valoriza a nossa percepção do real. Ponto de relevância extrema nessa autobiografia.

Pertinente recordarmos Florestan Fernandes (2008) ao demonstrar o quanto que o pós-abolição foi cruel para a população negra, uma vez que a necessidade de “ganhar a vida” era a questão principal para essa parcela da população, alijados da competição exigida pela industrialização, incapazes, pelos parcos recursos econômicos, a se prepararem para alcançar postos que diferissem das tarefas empregadas durante a escravidão. Camargo, expõe, dentre outros exemplos, um jornal da cidade exaltando a abolição e a necessidade de todos aderirem a esse novo tempo e contrapõe com a situação de seu pai, entregue ao alcoolismo, como muitos de seus contemporâneos, o destino determinado durante a narrativa. Infelizmente. Tanto que a conduta reta, a moral, a valorização da família, a importância do emprego, o combate ao comportamento inadequado eram motivos da poesia de Lino Guedes e de artigos da Imprensa Negra paulista, como forma de inserir a população negra na sociedade brasileira do início do século XX (RISO, 2014).

A narrativa de Camargo emociona ao expor essas dificuldades, da tia que era considerada um exemplo por ser “arrumadeira de fora”, já que “arrumadeira de dentro” era para moças (brancas) de “boa aparência”, expondo os eufemismos característicos da linguagem racista brasileira. Outra “referência de vida melhor” encontrava-se no Tio Sebastião, com emprego fixo na rede ferroviária, ordenado certo final do mês; exemplos que revelam a dimensão de miserabilidade de negras e negros. Para a época, o ápice era exaltado na Família Faria, que tinha uma filha professora. Ou, ainda, os poucos registros fotográficos que desvelavam as carências no vestir, ou, ainda pior, escancarando a ausência de patrimônio, de registros dos passados das famílias negras, das nossas famílias. Como reitera o autor: “[n]ão há diferença. Ontem pode ser hoje” (CAMARGO, 2015, p. 46). Tristeza e revolta perante o sadismo da permanência dessa ordem.

Raiz de um negro brasileiro traz outro aspecto comum às famílias negras e motivador de sofrimento e dor: a dispersão dos familiares, o leit motif do despejo, comuns aos negros diaspóricos, assim assinalados por Eduardo de Assis Duarte, ou seja, as separações forçadas de filhos em razão de problemas financeiros, morte de pais etc. Esses são fatos que compõem a autobiografia, aparecem no texto literário e no livro aqui referenciado, encontrando-se nos capítulos “Caos” e “Caos, ainda”. Momentos difíceis, inclusive para quem lê, diante da angústia do narrador: “Deus fez a pergunta no asilo: ‘que estava acontecendo na vida da gente?’” (CAMARGO, 2015, p. 84). Ou seja, fatos que acompanham as trajetórias de negras e negros desde a fatídica escravidão e são constituintes da diáspora negra. Ontem e hoje.

O que pode causar aflição ao leitor, consciente das histórias fragmentadas da população negra, seja exatamente essa fragmentação da memória, os fatos dispersos, vestígios de acontecimentos que se revelam na angústia do narrador ao realizar perguntas inquietantes ao longo do texto, ou na constatação da inutilidade de buscar informações diante de questões sem respostas. Vazios que ficam ao concentrar a narrativa na sua infância e na parca compreensão dos acontecimentos em virtude da pouca idade. Talvez por isso os capítulos sejam breves, talvez por isso o final abrupto, porém tornam-se coerentes quando se trata de um esboço autobiográfico, conforme advertido pelo autor. O que, em nenhum momento, compromete a qualidade desse texto tão caro para todos nós, preenchendo uma lacuna importante na literatura brasileira.

Raiz de um negro brasileiro: um esboço autobiográfico contribui para o reconhecimento dos múltiplos cenários da memória nacional esquecidos pelos discursos hegemônicos e homogêneos (ACHUGAR, 2006), impondo-se como leitura obrigatória para conhecermos um pouco de nós, um pouco de um Brasil que insiste em não se enxergar, que insiste em não aceitar nossa diversidade étnico-racial. Um livro que contribui para pensarmos e agirmos não como “homeless” (PEREIRA, 2010) dentro da nossa terra, mas sim como negrxs brasileirxs, ou como finaliza Camargo, “Sou, então, um negro brasileiro. [...] Impossível, a essa altura, sustar as consequências dessa verificação” (CAMARGO, 2015, p. 89).

Referências

ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre Arte, Cultura e Literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

CAMARGO, Oswaldo de. Raiz de um negro brasileiro: esboço autobiográfico. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2015.

CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.

DUARTE, Eduardo de Assis. Oswaldo de Camargo: poesia, ficção, autoficção. Disponível em: <http://150.164.100.248/literafro/>. Acesso em: 24 out. 2015.

FERLA, Luis. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo, São Paulo (1920-1945). São Paulo: Alameda, 2009.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: (o legado da raça branca). 5. ed. São Paulo: Globo, 2008, vol. 1.

GALLE, Helmut. Elementos para uma nova abordagem da escritura autobiográfica. In: Revista Matraga, Rio de Janeiro, ano 13, n. 18, p. 64-91, 2006.

LEJEUNE, Philippe. O pacto aubiográfico. In: LEJEUNE, Philippe. O pacto aubiográfico. De Rosseau à internet. Organização Jovita Maria Gerheim. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 14-47.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Homeless. Belo Horizonte: Mazza, 2010.

RISO, Ricardo. Negro preto cor da noite: a poesia negra de Lino Guedes no Brasil à procura da regeneração racial. Trabalho de conclusão de disciplina Raça e Eugenia: de 1870 a 1945. Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais, CEFET/RJ. 2014.

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* Ricardo Riso é graduado em Letras, professor, ensaísta e Mestre em Relações Étnico-Raciais pelo CEFET/RJ.

 

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