TRAFEGANDO NA CONTRACORRENTE:

A DESCOBERTA DO FRIO COMO CONTRALITERATURA1

Auliam da Silva2

RESUMO: A proposta deste trabalho busca compreender a novela A descoberta do frio (2011), do escritor afrodescendente Oswaldo de Camargo, como contraliteratura, isto é, uma obra situada fora do cânone da literatura brasileira, mas que questiona e subverte um discurso específico – a “democracia racial” no Brasil. Para a realização deste trabalho, partimos dos pressupostos de Bernard Mouralis, Zilá Bernd, Florestan Fernandes, Munanga e Gomes, Florentina Souza entre outros estudiosos.

 

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Negra. Racismo. Oswaldo de Camargo.

A obra

Oswaldo de Camargo, na seção “Sobre esta edição” de A descoberta do frio, nos traz algumas considerações acerca dessa narrativa literária. Esse escritor afirma que sua obra teve a primeira edição publicada em 1979, pelas Edições Populares, momento de grande efervescência no meio cultural negro no estado de São Paulo. Para Camargo (2011), algumas obras publicadas um ano antes evidenciam essa “movimentação cultural”, tais como Memórias da noite, de Abelardo Rodrigues, Poemas da carapinha, de Cuti, e os Cadernos Negros nº 1, de vários autores.

Na presente edição, da Ateliê Editorial, Oswaldo de Camargo ressalta que sua obra está distinta daquela de 1979, visto que a edição de 2011 foi “(...) revista e ficcionalmente ampliada” (ibidem, p. 19). De acordo com o escritor, a obra mantém o prefácio de Clóvis Moura e o núcleo da história, entretanto, sua narrativa pode ser compreendida como um novo livro, pois ela adquiriu acréscimos e diferentes reflexões acerca do “frio”.

Desde o início de A descoberta do frio somos envolvidos em uma das intrigas da narrativa: a existência de um mal, o “frio”, que afeta somente os(as) negros(as). No primeiro capítulo, “É o frio, Irmãozinhos, É o frio”, somos informados de que o “frio”, para alguns, existe há muito tempo (desenvolvendo-se sem as autoridades terem conhecimento). Contudo, a maioria das pessoas ignorava esse “friíssimo bafo”, enquanto outras consideravam esse mal apenas como uma sarna, isto é, algo que “(...) coça um bocado, sim, mas não mata” (ibidem, p. 23).

Ainda no primeiro capítulo, surge a figura de Zé Antunes, “um negro magro, alto, pixaim embaraçado por onde nunca andava pente” (ibidem, p. 23). Segundo essa personagem, o “frio”, o qual só os negros sentiam, já fez desaparecer um número incontável de afrodescendentes.

Quando Antunes surgiu na cidade proclamando a existência do “frio”, quase todos que o ouviram debocharam e trataram com indiferença tanto a notícia quanto o próprio anunciador. Alguns escarneciam dizendo: “o frio de que ele tanto fala, ao contrário, deve ter vindo do bafo de conhaque, de que, convenhamos, Zé Antunes anda abusando” (ibidem, p. 25). Mas, em meio aos descréditos, ocorreu um caso de “frio”, para a surpresa de alguns. Muitos afirmavam ter visto, mas resistiam em acreditar.

A vítima dessa “ameaça glacial” foi Josué Estêvão, um garoto negro morador de rua. Todo o episódio aconteceu na Praça Lundaré e foi o grupo Malungo (jovens, na maioria negros, que se reuniam para discutir poesia e “Africanitude”) que presenciou a situação de Josué Estêvão:

Aproximava-se [Josué Estêvão] do bando, batendo o queixo, um ruído seco que se ouvia à distância de metros. Retalhos de flanela enrolavam-lhe as mãos, a cabeça achava-se coberta com três gorros grosseiros de lã amarela, porém, o mais extraordinário: saiam-lhe do tênis várias tiras de couro de gato, imitando canos de botas. Subiam até a barriga das pernas de Josué. Magro, desajeitado, avançava com dificuldade, a cabeça pendia. Algo absurdo, algo inimaginável sob o calor de setembro. Via-se, grudada no rosto, brutal, a vergonha de se achar em tão esquisito molestamento (ibidem, p. 27).

Laudino (o líder do grupo Malungo), ao ver o estado de Estêvão, anunciou aos berros: “É o frio, irmãozinhos, é o frio!” (ibidem, p. 28), depois pediu que procurassem Zé Antunes para ele confirmar se era realmente um caso de “frio”. Enquanto iam procurar Antunes, Laudino e mais alguns amigos decidiram auxiliar o pobre garoto levando-o ao médico.

Em meio a todo o tumulto que tinha ocorrido (alguns acreditavam que tudo era uma encenação de Estêvão, o qual tinha exagerado nas precauções contra a gripe), a narrativa nos traz um momento em que Antunes faz algumas considerações sobre o “frio”. Na Praça Lundaré, há alguns meses atrás, esse jovem negro alertou a um grupo de pessoas que existiam casos de “frio” e em números inimagináveis. Entretanto, essa afirmação não teve uma boa recepção por aqueles que o ouviam. Com o intuito de abalar e questionar a validade de tal afirmativa, os ouvintes indagaram-no: se existe o “frio”, por que não o vemos? Antunes, aproveitando a oportunidade, evidenciou alguns efeitos dessa “ameaça glacial”:

A primeira coisa que o sofredor faz é se esconder, sumir. O cara vira piolho, sente-se desprezado, muito além do natural. Parece que a vergonha de si mesmo é um dos sintomas. A partir daí é capaz de largar os amigos, largar o emprego, esquecer-se de sua própria alma. O cara se vê como se andasse cagado na rua (ibidem, p. 34).

Como evidenciou a personagem Antunes na citação acima, aquele que sofre de “frio” desaparece, some; assim ocorreu com Josué Estêvão. O jovem garoto “(...) sumira, após o terem deixado na casa de três cômodos onde morava com a tia” (ibidem, p. 60). Mesmo sabendo dos efeitos do “frio”, Antunes procurou durante um dia inteiro o jovem pela cidade. Contudo, ao final da tarde, o “teórico do frio” confirmou o que já sabia: “(...) o frio faz desaparecer as pessoas, leva-as a esvanecerem-se, perder o nome, vergar-se, microbiar-se, bater a testa mesmo contra o ar, achando-o duro, instransponível; isso consegue o frio” (ibidem, p. 77).

Após algumas tentativas de Zé Antunes provar a existência do “frio”, a narrativa nos apresenta seu clímax: a cidade inteira é tomada pelo gélido sopro do “frio” e as únicas vítimas são os afrodescendentes:

(...) sem demora o frio, começando com o respiro de uma quase imperceptível brisa, pôs-se a soprar, livre, sobre o “território negro”. E, logo, palpáveis, os sintomas.

Pretos luzidios, senhores de músculos duros como nós de corda, mostraram-se nas ruas, submetidos a tremuras inimagináveis, gelidez, olho morto, vertendo água, sem palavras para explicar o mísero estado. Nas bocas, só silêncio. Na alma, ah, na alma o frio, berrando o seu grito de mando.

Branco, velho, rijo, o frio envesgava-lhes os olhos, a cidade virava tropeço, a vida se tornara vexame, o jeito era, se possível, desnascer, ser descriado (...).

(...) um negro magrelo, ainda moço, cabelos grisalhos, olhos mortiços fixados no nada. Um mendigo errante, buscando refúgio. E havia sol, um sol que berrava sua luz, borrando de ouro e prata os prédios, as praças, toda a cidade (ibidem, p. 108-109).

Os sintomas tão apregoados por Zé Antunes da “ameaça glacial” tornaram-se visíveis na cidade: milhares de negros sentindo “frio” (mesmo no verão), pálidos, aos prantos e com uma intensa vontade de desaparecer, sumir, “desnascer”. Após esse acontecimento, nos encaminhamos para o último capítulo, o qual se encerra de forma misteriosa:

Zé Antunes, dizem que sumiram com ele.

Quem sumiu com ele?

Como!? O frio?

Mas provou-se que o frio... O frio, o velho, alvo e impiedoso frio... (ibidem, p. 112).

O final de A descoberta do frio foi elaborado de forma que o leitor termine a narrativa e infira suas próprias conclusões acerca do “frio” e sobre o que aconteceu com Zé Antunes. Acreditamos que até mesmo Zé Antunes, um afrodescendente cônscio da existência do “friíssimo bafo”, foi afetado pelo “frio”, haja vista que o seu último efeito sobre a vítima é fazê-la desaparecer, sem deixar nenhum vestígio.

Em nenhum momento somos informados, explicitamente, sobre a procedência dessa “ameaça glacial” e porque ela atinge somente os(as) negros(as). Isso fica a cargo do leitor. Contudo, para Clóvis Moura

(...) esse frio não vem apenas da atmosfera – outros não o sentem –, porém de uma situação existencial e social. É um frio centenário. Somente os termômetros do protesto ou da raiva o registram (...) o frio em si não existe na obra, mas o negro que sente frio: um sentimento social, síndrome de uma doença que vai mutilando, desarticulando a sua temperatura humana, o seu mundo, a sua humanidade maior (MOURA, 2011, p. 13).

Ao se apropriar do “frio”, como uma metáfora da discriminação e preconceito racial, Oswaldo de Camargo reelabora esteticamente uma questão política, social e étnica. E para incrementar sua ficção, esse escritor insere na obra elementos históricos: as ossadas dos oitenta negros mortos nos Montes Piracaios; a Imprensa Negra; os jornais A Voz da Raça e Árvore da Palavra e personalidades brasileiras como Zumbi dos Palmares, Castro Alves, Cruz e Sousa e Solano Trindade. Contudo destacamos que em nenhum momento de A descoberta do frio está evidente que os acontecimentos narrados ocorreram em determinada época do Brasil. Entretanto, a obra apresenta alguns indícios que nos ajudam a situar o tempo e espaço da narrativa, como podemos perceber na citação:

[Laudino da Silva] De profissão era bancário, mas vinha tentando teste nas redações de vários jornais, onde propunha espaço para noticiar sobre a comunidade negra, a respeito da qual – queixava-se – não se ditava uma sequer vírgula.

Por outro lado, se, como havia um decênio, aparecessem ocasião e clima para a volta das publicações alternativas da coletividade, ele iniciaria a Palavra Negra, jornal que gostaria ver lido como porta-voz do Grupo Malungo.

No entanto a expressão escrita da coletividade desaparecera. Da quase dezena de publicações da década anterior tinham sobrado duas páginas mimeografadas, Árvore da Palavra, representando toda a Imprensa Negra.

Laudino teria seu jornal, sem dúvida (CAMARGO, 2011, p. 39-40, grifo nosso).

Na citação acima temos referência a Árvore da Palavra e a Imprensa Negra3. Essa última diz respeito ao conjunto de publicações alternativas que buscam discutir os problemas do negro na sociedade brasileira, publicações que se concentravam, principalmente, na capital de São Paulo; a Árvore da Palavra, por sua vez, é um dos jornais que fazem parte da Imprensa Negra. Ao informar que os jornais da coletividade afrodescendente tinham estagnado, sobrando apenas duas laudas do jornal Árvore da Palavra, a novela de Oswaldo de Camargo nos apresenta alguns indícios que nos possibilitam conjecturar o tempo e o espaço da narrativa.

Com relação ao tempo, acreditamos ser ambientado em 1980, haja vista que A descoberta do frio (2011) se refere ao jornal Árvore da Palavra4 como uma publicação do decênio anterior em que ocorre a narrativa. No que diz respeito ao espaço da novela, supomos ser a capital de São Paulo, pois quando a obra menciona a estagnação das publicações de grupos negros da cidade, pode estar se referindo à capital paulista da década de 1980, na qual a Imprensa Negra, segundo o historiador Petrônio Domingues (2013), não estava ativa nesse período da história do Brasil.

A “democracia racial” em A descoberta do frio

Florestan Fernandes, no ensaio Aspectos da questão racial (2007), nos afirma que em 1951 Alfred Metraux (intermediário da Unesco5 no Brasil), juntamente com Roger Bastide, Thales de Azevedo, Aniela Ginsberg e entre outros estudiosos, realizaram uma pesquisa sobre a situação racial brasileira. Essa investigação foi realizada por haver hipóteses de que no Brasil não havia preconceito e discriminações raciais, ou seja, vivia-se em uma espécie de “democracia racial”6.

Segundo ainda Fernandes (2007), baldados foram os esforços da Unesco em confirmar tais hipóteses, pois os resultados foram totalmente contrários ao que se imaginava; provavelmente a Unesco utilizaria o Brasil como modelo de “democracia racial” com o intuito de evidenciar para os outros países que é possível “brancos”, “negros” e “mestiços” conviverem de forma igual e democrática.

Juntamente com a colaboração de Roger Bastide, Florestan Fernandes realizou pesquisas sobre a condição racial no Brasil nas décadas de 40 e 50 do século XX. Os resultados desses estudos atestaram que

[a] propalada “democracia racial” não passa, infelizmente, de um mito social. E um mito criado pela maioria e tendo em vista os interesses sociais e os valores morais dessa maioria; ele não ajuda o “branco” no sentido de obrigá-lo a diminuir as formas existentes de resistência à ascensão social do “negro”; nem ajuda o “negro” a tomar consciência realista da situação e a lutar para modificá-la, de modo a converter a “tolerância racial” existente em um fator favorável a seu êxito como pessoa e como membro de um estoque racial (FERNANDES, 2007, p. 60).

Como bem afirma o sociólogo na citação acima, a ideia de existência da “democracia racial” no Brasil foi engendrada por questões ideológicas de uma maioria, além de ser um mito duplamente nocivo; primeiro porque compromete a possibilidade dos “brancos” de atenuarem os preconceitos e discriminações com relação aos “negros”, problemas que dificultam a ascensão (econômica, social e política) desta camada étnico-racial; segundo porque compromete a conscientização dos “negros” e, consequentemente, sua busca por uma sociedade mais justa e igualitária.

A discussão realizada por Florestan Fernandes no seu livro O negro no mundo dos brancos (2007) diz respeito aos seus estudos sobre a questão racial na sociedade brasileira de meados do século XX. Contudo, indagamo-nos: será que as conclusões desse estudioso (de que a “democracia racial” ainda está por se formar no Brasil) ainda são viáveis para o final do século XX e início do XXI?

Para Kabengele Munanga e Nilma Gomes (2010) a situação atual da população afrodescendente no Brasil não mudou muito nos últimos anos (no que diz respeito ao tolhimento por conta dos preconceitos e discriminações raciais). Segundo esses estudiosos, em pleno século XXI vivemos em um país com uma estrutura racista, visto que a história da escravidão ainda incide de forma negativa na vida, na trajetória e na inserção social dos descendentes de africanos em nosso país.

Munanga e Gomes (2010) afirmam que, mesmo após abolição, a sociedade brasileira (nos seus mais diversos setores) não se posicionou ideológica e politicamente contra o racismo. Muito pelo contrário, mesmo com as pesquisas de órgãos governamentais e das universidades, ainda existem discursos que buscam canonizar a ideia de “democracia racial”. Para esses pesquisadores,

O racismo no Brasil se dá de um modo muito diferente de outros contextos, alicerçado em uma constante contradição. As pesquisas, histórias de vida, conversas e vivências cotidianas revelam que ainda existe racismo em nosso país, mas o povo brasileiro, de modo geral, não aceita que tal realidade exista. Dessa forma, quanto mais a sociedade, a escola e o poder público negam a lamentável existência do racismo em nosso país, mais ele se propaga e invade as mentalidades, as subjetividades e as condições sociais e educacionais dos negros (MUNANGA; GOMES, 2010, p. 181).

A ideia de não existir preconceito ou discriminações raciais no Brasil, de que a “população negra” e a “população branca” vivem em completa harmonia e de forma democrática, se deve ao empenho dos discursos que buscam canonizar o mito de “democracia racial” na sociedade brasileira. Esse mito é difundido por uma maioria que leva em consideração seus valores morais e interesses sociais, como bem assinalou acima Florestan Fernandes (2007).

Florentina Souza (2006) também compreende a ideia de “democracia racial” no Brasil como um mito. Para essa estudiosa, desde a década de trinta do século XX podemos perceber o engendramento e propagação de um discurso sobre a existência da “democracia racial”. E mesmo em pleno século XXI, esse “discurso institucionalizado” “(...) continua apregoando a inexistência de racismo ou discriminação para preservar o ‘mito’” (ibidem, p. 49).

A par da falsa “democracia racial” e dos preconceitos e discriminações com relação aos afrodescendentes, várias obras da literatura afro-brasileira buscam discutir toda essa problemática. Para Florentina Souza, essa vertente da literatura brasileira é muito oportuna, pois busca

(...) conscientizar negros e não-negros da fragilidade do mito da democracia racial no Brasil, apontando as implicações deste discurso para a continuidade na estruturação do poder e na sedimentação das desigualdades e injustiças sociais (ibidem, p. 64).

Acreditamos que a novela A descoberta do frio (2011), do escritor afrodescendente Oswaldo de Camargo, insere-se nesse circuito de obras da literatura afro-brasileira que denunciam o mito da “democracia racial” no Brasil. Acreditamos nisso, pois em vários momentos a novela nos expõe personagens que buscam preservar esse mito. A nosso ver, essa é uma forma da narrativa denunciar os discursos canônicos que buscam abafar a existência do racismo na sociedade brasileira.

Em A descoberta do frio as discriminações e preconceitos raciais são compreendidos como um “frio” que aflige somente a “população negra”. Portanto, na medida em que as personagens negam ou dissimulam a existência do “frio” estarão contribuindo para a manutenção da falsa “democracia racial”, como podemos perceber na citação abaixo:

Ninguém sabia donde viera o frio.

Para uns, ele já se havia instalado, há muitíssimo tempo, no País e engordara, sem que as autoridades percebessem. Achavam outros que os dirigentes do País não viam razão para deter o frio de que alguns negros se queixavam, vez ou outra, em páginas de jornais ou em depoimentos aos estudiosos que pesquisavam os efeitos do friíssimo bafo.

Existia o frio?

Muitos duvidavam; outros queriam provas. No geral, contudo, a maioria se mostrava indiferente ante essa pergunta. O frio, se existisse, teria, quando muito, a importância da sarna que se pega nos bancos da escola primária. Coça um bocado, sim, mas não mata (CAMARGO, 2011, p. 23).

Logo no início do primeiro capítulo, a narrativa nos mostra que existia o “frio” e, mesmo sem saberem sua procedência, havia pessoas que acreditavam nesse “friíssimo bafo”. Alguns duvidavam sobre o “frio”; outros, para acreditarem, queriam provas; havia aqueles que o viam como algo que não merecia preocupação, seja por parte da população seja por parte do governo. Contudo, para a grande maioria, o “frio” não representava uma ameaça para a comunidade e, por conseguinte, não deveria ser levado a sério. Para o antropólogo Assunção Amaral (2004), a recusa da situação racial brasileira é mais uma estratégia de sobrevivência do racismo e de continuidade da falsa democracia racial. Segundo esse estudioso:

(...) do ponto de vista prático-concreto e do ponto de vista teórico-abstrato não temos como negar a operacionalização do racismo na sociedade brasileira, mesmo que alguns autores, pessoas, instituição e imprensa tentem obscurecer este fato, fazendo crer que o racismo não existe (...).

(...) Há quem conviva com o racismo como se fosse uma coisa natural, própria da natureza do homem, acreditando que ele não tem fim. Na década de 70, o alemão Anatol Rosenfeld (1993: 24) chegou a afirmar e escrever, sem ironias, que “ideologicamente, o preconceito contra os negros é quase sempre totalmente negado, e o brasileiro se gaba com orgulho de sua falta de preconceito” (AMARAL, 2004, p. 80-86, passim).

Para Assunção Amaral, pensamentos do tipo: “no Brasil já se vive a ‘democracia racial’”; “o racismo não faz parte da realidade brasileira e, portanto, não deve ser levado a sério”; “o racismo existe, mas por este se restringir a poucas pessoas, não necessita de preocupação por parte da população e do governo”, contribuem para a manutenção da falsa democracia racial brasileira. Podemos perceber esses tipos de pensamento em A descoberta do frio na medida em que a narrativa apresenta personagens que desacreditam no fenômeno.

A personagem Zé Antunes, por exemplo, preocupado com o pensamento-comum que tinha se formado – isto é, que o “frio”, se existisse, não devia merecer atenção das pessoas – decide propagar a existência desse malefício, o qual fazia desaparecer, sem explicação alguma, o doente que sofria de tal moléstia.

Com o propósito de alertar as pessoas da cidade em que vivia sobre o problema, Antunes encaminhou-se para um programa televisivo. Seu intuito era, por meio dessa mídia, alcançar o maior número possível de pessoas, avisando-as sobre a “ameaça glacial”.

O programa era da “Comissão Semanal”7, o qual tratava das questões mais urgentes da cidade. Preocupado com a presença do “frio”, Zé Antunes acreditava que no programa, além de alertar a população, poderiam ser discutidas medidas contra o “frio”, contudo,

Ante a afirmação do Zé Antunes, naquela sexta-feira, a “Comissão Semanal” fitou-o, atônita. O certo é que nenhum dos componentes da mesa notara, nas horas do dia ou da noite, o frio que Zé Antunes denunciava. Chamaram-no delicadamente de invencioneiro, louco. Alguns troçaram abertamente dele, enquanto, gaguejando, Zé Antunes tentava esclarecer.

(Zé Antunes gaguejava não pela dificuldade de explicar o frio, mas assustado ante a falta de discernimento daqueles homens respeitáveis).

Um dos cidadãos presentes riu alto, perguntou:

– Jovem! Sente o frio mesmo agora, no calor deste estúdio abafado?

– Sinto! (CAMARGO, 2011, p. 51).

Zé Antunes acreditava que a partir do programa da “Comissão Semanal” o problema seria colocado em pauta e revelado para toda a comunidade. Contudo, malgrado seus esforços, os componentes da “Comissão Semanal” (as pessoas que zelavam pelo bem-estar da cidade) desconheciam – ou, podemos deduzir, dissimulavam – a presença do “frio”.

Para o historiador Joel Rufino dos Santos (1984), grande parte dos brasileiros ainda nega o racismo e visualiza o Brasil como uma “democracia racial” pelo fato de existirem grupos hegemônicos que buscam propagar esse mito, tanto aqui como no exterior. O interesse de tais grupos reside no fato de mascararem a realidade racial do Brasil para, assim, manter seus privilégios.

O posicionamento de algumas personagens da novela de Camargo citadas nos parágrafos anteriores que não acreditam na existência do “frio” nos evidencia uma manutenção da falsa “democracia racial”. Ao negligenciarem os queixumes dos afrodescendentes que padecem do “friíssimo bafo”, tais personagens contribuem com a ideia de que não existem problemas raciais no seu país.

Ao expor essas personagens que desacreditam na “ameaça glacial”, podemos deduzir que A descoberta do frio busca denunciar os discursos canônicos que trabalham para perpetuar a ideia de “democracia racial” no Brasil. E é exatamente a tentativa de desestabilizar tais discursos – juntamente com o fato de ser obra de um autor fora do circuito “canônico” da literatura brasileira8 – que nos possibilitará entender A descoberta do frio, de Oswaldo de Camargo, como uma contraliteratura.

A literatura negra como forma de contraliteratura

Zilá Bernd nos afirma que há algumas “regiões” da literatura brasileira que permanecem na penumbra, como por exemplo, a literatura negra. Para essa estudiosa, não é por simples acaso que determinadas obras não acumulam fortuna crítica. É evidente que em alguns casos falta-lhes qualidade estética. Contudo, Bernd salienta que

(...) Não podemos ser ingênuos a ponto de ignorar os processos de manipulação que sofrem os textos literários e que seu sucesso ou seu esquecimento podem ser forjados de acordo com determinados interesses.

Nossa hipótese é a de que, em determinados contextos, as obras onde emerge A Voz dos Vencidos, representando a sua visão da História, não interessam à literatura enquanto instituição sendo, portanto, ignoradas (BERND, 1988, p. 17).

Para Bernd há “instâncias legitimadoras” que são responsáveis pela trajetória das obras e seu acúmulo de fortuna crítica. Apropriando-se das discussões realizadas por Pierre Bourdieu em Le marché des biens symboliques (1971), a pesquisadora nos assegura que jornais, revistas, editoras e livrarias são responsáveis pela “emergência” das produções literárias; já a crítica e a historiografia literária ficam incumbidas pelo “reconhecimento” desses textos; bem como prêmios e academias garantem a “consagração” enquanto as escolas e bibliotecas possibilitam a “conservação” das obras literárias.

Bernd entende que as “instâncias legitimadoras”, ao interferirem na “canonização” das obras, podem nos evidenciar que a qualidade estética não é o único fator determinante para sua a sacralização ou para o seu banimento. Thomas Bonnici (2011) compactua com o pensamento da ensaísta. Tendo como ponto de partida as discussões de Michel Foucault e Terry Eagleton, Bonnici entende que a consagração de determinadas obras também depende de questões extraliterárias, como por exemplo, o poder e as classes dominantes. Segundo esse autor

(...) a interpretação, o discurso e a escrita, intimamente ligados ao saber, são formas de dominação pertencentes aos poderosos e à classe hegemônica da sociedade. Portanto, a escolha e a interpretação de determinados autores e livros e, concomitantemente, a exclusão de outros, são tarefas poderosas executadas a partir de uma posição social que reflete a ideologia de quem julga e interpreta (BONNICI, 2011, p. 113).

Entendendo que há fatores extraliterários que inviabilizam determinadas obras de terem seu devido reconhecimento, a hipótese de Zilá Bernd (1988) é a de que os textos literários, com um potencial revolucionário e desagregador da ordem vigente, são desqualificados enquanto literatura por apresentarem uma ameaça para as “instituições legitimadoras” e classes dominantes.

Situada nesse âmbito, Zilá Bernd nos apresenta a literatura negra. Para essa estudiosa, várias obras compreendidas como literatura negra (afrodescendente ou afro-brasileira), ao apresentarem aspectos revolucionários e subversivos para com determinado campo literário e/ou discurso específico, são desqualificadas enquanto literatura. Segundo a professora

Por violarem as regras do contrato de escritura em vigor e por permitirem que venha à tona o homem concreto e sua denúncia esses textos, que navegam na contracorrente literária, vão se manter, ao menos por algum tempo, nas fronteiras da marginalidade, se não completamente marginais (BERND, 1988, p. 44-45).

Partindo das ideias de Deleuze e Guattari em Kafka: por uma literatura menor (1977), a pesquisdora entende que a literatura negra pode ser compreendida como literatura menor, pois ela apresenta possibilidades de revolução no âmbito da literatura estabelecida. Entretanto, o termo “menor” (mesmo não apresentando sentido pejorativo), juntamente com “marginal”, pode ser associado a critérios depreciativos. Por conta disso, Zilá Bernd acredita que a expressão mais oportuna para se referir à literatura negra é a ideia de contraliteratura. Segundo essa estudiosa:

Por construir-se, pois, no contrafluxo, é que Mouralis cria a expressão contraliteratura, a meu ver mais adequada para designar este tipo de ação literária [da literatura negra]. Para este crítico, as contraliteraturas se constituem no momento em que surge um discurso “que se assume tão completamente que nem outro, de ora em diante, poderá ocultá-lo ou desviá-lo”. Caracterizando-se por uma postura crítica no interior do campo literário instituído, a contraliteratura se estrutura como contestação sistemática dos valores representados pela cultura dominante (BERND, 1988, p. 43).

Zilá Bernd entende que a literatura negra (por ser uma “região” não canonizada pela literatura brasileira e por apresentar uma proposta subversiva, seja do campo literário ou de um discurso canônico) pode ser compreendida como contraliteratura.

Antes de prosseguirmos com a análise de A descoberta do frio (2011), acreditamos serem necessários alguns esclarecimentos sobre a contraliteratura, pois esse termo pode ser compreendido apenas como um sinônimo da paraliteratura9.

Segundo Bernard Mouralis (1982) há obras que não possuem o estatuto de texto literário, ou seja, textos que não são reconhecidos pela instituição literária. Contudo, Mouralis frisa que dentre essas obras há aquelas que possuem um aspecto “revolucionário” e, portanto, ameaçador para a instituição literária. É com esse duplo aspecto que Mouralis busca conceituar a ideia de contraliteratura Segundo o estudioso

Os textos que a instituição literária recusa e que, por essa razão, não entram no domínio do literário, não são apenas textos à margem da “literatura” – ou inferiores a esta –, mas também textos que, só com sua presença, constituem já uma ameaça para o equilíbrio do campo literário, visto que assim revelam tudo o que nele há de arbitrário. “Literatura” e contraliteratura, muito mais que “literatura” e não-literatura: essa é a perspectiva aqui adotada. (MOURALIS, 1982, p. 12-13).

Para Mouralis é susceptível de serem inseridos ao campo das contraliteraturas os textos que não são entendidos e nem transmitidos como “literatura”, como por exemplo: fotonovela, literatura de cordel, ficção científica, romance popular, romance policial, banda desenhada, títulos de jornais, catálogos etc.

Contudo, é importante destacar o duplo aspecto das contraliteraturas. Em primeiro lugar devemos nos atentar para seu aspecto de amplitude, haja vista que estas referem-se a qualquer tipo de texto não entendido como literatura; e em segundo lugar com relação ao aspecto particular, na medida em que esse termo refere-se também àquelas obras situadas na contracorrente do campo literário ou de um discurso canônico.

Segundo Mouralis a forma mais plena de contraliteratura que tenciona e desequilibra um circuito literário ou um discurso concêntrico é a literatura negro-africana. Esse estudioso acredita nisso, pois essa vertente

(...) consegue verdadeiramente subverter o campo literário: com o texto negro-africano, encontramo-nos, na realidade, perante o exemplo de uma palavra que se assume completamente e que nenhum discurso sobre ela poderá ocultar ou desviar.

(...) Vai assim criar uma ameaça constante para o dogmatismo e etnocentrismo literários, não tende a nada mais do que a relembrar que as coisas podiam passar-se de outro modo (ibidem, p. 13).

Bernad Mouralis entende que a literatura negro-africana surge como forma de recusa e de denúncia ao conjunto de situações que foram impostas aos negros africanos desde que os europeus irromperam no seu continente e nas suas histórias. Tráfico, escravismo, sistema colonial e racismo. Termos como esses sintetizam a experiência histórica dos povos negros desde o século XVI. E a literatura negro-africana, a par da experiência concreta desses povos, traz em seu bojo a recusa dessas situações, a expressão de uma cultura negra (geralmente analisada “cientificamente”, sem ser levado em consideração seu valor estético) e a proposta de questionar todo e qualquer discurso que inferioriza ou estigmatiza os negros africanos. Sendo assim, para Mouralis,

O texto negro-africano define-se assim pela sua oposição global ao mundo europeu e às ideologias que este veicula, e mais precisamente por um trabalho específico destinado a, de modo definitivo, tornar inoperantes os textos que até então tomavam a África e o mundo negro como objeto do seu discurso e usufruíam, neste domínio, uma espécie de monopólio. O protesto contra a situação colonial, a valorização da cultura negro-africana, a neutralização dos diferentes discursos europeus caracterizam inegavelmente um processo de contraliteratura (MOURALIS, 1982, p. 203).

Bernard Mouralis, ao tratar da literatura negro-africana como forma de contraliteratura que, além de não ser “canonizada” contesta e subverte determinados discursos (sejam literários ou não), tinha em mente também a produção literária de outros povos negros – como, por exemplo, nas Antilhas, nas Américas e na África Saariana – que foram marcados profundamente pelo tráfico, colonialismo, racismo, pela escravidão e criação de ghettos.

Mesmo apresentando contextos de produção distintos, Zilá Bernd entende que, assim como a literatura negro-africana, a literatura negra do Brasil pode ser visualizada como forma de contraliteratura. Grande parte das obras da literatura negra está situada fora do circuito canônico nacional; além disso, apresentam aspectos subversivos e desestabilizadores, seja do campo literário, seja de um discurso específico.

A descoberta do frio e seu estatuto de contraliteratura

Como foi discutido acima, as contraliteraturas dizem respeito àquelas obras situadas fora do cânone e que apresentam um aspecto desagregador, seja de um campo literário, seja de um determinado discurso.

Seguindo essa linha de pensamento, nossa hipótese é a de que A descoberta do frio pode ser compreendida como contraliteratura. A novela de Oswaldo de Camargo se enquadra nos dois aspectos propostos por Bernard Mouralis. Primeiro, porque é obra de um autor não “canonizado” pela historiografia literária do Brasil; segundo, porque A descoberta do frio, na tentativa de evidenciar a existência do racismo, coloca-se contra o discurso que concebe a “democracia racial” como um fato da sociedade brasileira.

Como forma de desestabilizar e questionar a validade desses discursos sobre a “democracia racial”, o texto de Camargo apresenta personagens que nos evidenciam a presença do “frio” no país. Além de Zé Antunes (e sua obsessão em provar a presença do “friíssimo bafo” na comunidade negra), temos: Batista Jordão, padre Antônio Jubileu e Vovô Cumbuca.

Batista Jordão acreditava que o “frio” era uma realidade entre os afrodescendentes. Queria opinar, mas não tinha provas. Entretanto, certa noite, ao olhar seus antigos jornais da Imprensa Negra, ele encontra um poeta (Pedro Antônio Garcia) que se tornaria a prova cabal de que o “frio” estava presente no país. Com relação a esse poeta, Batista Jordão afirma:

Pedro Antônio Garcia morreu na miséria. Falou e escreveu por doze anos sobre o frio. E os versos se comportaram mal; e palavras de cunho quimbundo, alforriadas, começaram a visitar, com extraordinária frequência, os seus textos. E, sem vergonha do étimo africano, surgiam batucando sobre o chão onde imperara, por dilatado tempo, o soneto alexandrino. Mas a palavra ‘frio’, mesmo assim, continuava a invadir-lhe os poemas, sibilando entre os destroços dos versos de pés-quebrados, outrora tecidos sob os regulamentos rígidos do Parnaso.

Nos jornais, de 1920 a 1932, os versos de Pedro Antônio Garcia. Nos jornais – sobretudo em A Voz da raça – os inúmeros sintomas de que havia frio e o frio secava, engordava o desencanto, separava os grupelhos em associações românticas, tolas. E ele denunciou-o por doze anos, meus amigos. Hoje vemos Zé Antunes tentando provar, indo à televisão, levando declarações aos jornais, acorrentando-se ao ridículo. (CAMARGO, 2011, p. 94-96).

Como Batista Jordão pode descobrir, Pedro Garcia era um poeta do início do século XX que estava presente em alguns jornais da Imprensa Negra. Por um período percebia-se elementos da estética parnasiana nos poemas de Pedro Garcia, contudo, os padecimentos do “frio” que os afrodescendentes sofriam (incluindo ele) evidenciaram-se em sua poética. Se antes adotava versos alexandrinos e palavras requintadas, agora utilizava étimos de origem africana e versos entrecortados. O “frio” estava presente em seus poemas, exprimindo os seus “efeitos” sobre os negros e as negras, fazendo-os desaparecer.

Outra personagem que nos mostra ser “frio” um malefício presente no país é o Vovô Cumbuca. Dom Geraldo (conhecido como o bispo de Maralinga), preocupado com os “casos de frio” que estavam aparecendo na cidade, decide procura-lo para confirmar se o “frio” realmente existia. Em forma de testemunho, esse amigo de Dom Geraldo relata como o “frio” se manifestava no passado:

– Houve geadas em 1918. Eva, a avó de Vossa Excelentíssima, trocou por cobertores as terras recebidas de Sinhazinha. Houve muita geada. Muito moleque caiu enregelado nas estradas e ali começou a dormir para sempre. Sei de geadas, colheitas perdidas, os negros chorando, o patrão nos talhões, olhando cego, desgovernado (...). Tenho noventa anos, Excelentíssimo. Não se compara a situação de hoje com a de antigamente. Disseram-me, já antes, que eu devia falar a Vossa Excelentíssima (...).

– Sim, houve naqueles tempos muita geada, fortes geadas. Muita geada...

As mãos de Vovô Cumbuca tremiam. E no interior do silêncio se poderia ouvir, no topete dos cafezais punidos, o ruído noturno das gotas de gelo. Vovô Cumbuca expusera o que sabia (ibidem, p. 102-103).

Por meio do relato do personagem podemos perceber que o “frio” era uma ameaça que sitiava a população afrodescendente desde início do século XX. Pela idade avançada, Vovô Cumbuca se atrapalha ao narrar os feitos da “ameaça glacial”. Contudo, mesmo com suas limitações, sua memória pode alertar Dom Geraldo sobre a presença do “frio” e seus efeitos sobre os(as) negros(as) do início do século XX.

O padre Antonio Jubileu é outra personagem apresentada em A descoberta do frio que nos possibilita confirmar a existência da “ameaça glacial”. Esse religioso, ao participar de uma entrevista, nos revela um mistério que pode ter ligação com o “frio”:

– Nos montes Piracaios ainda estão as ossadas.

– De quem? – perguntou, entusiasmado, o entrevistador.

– Dos negros fugitivos, um grupo de oitenta.

A 14 de outubro de 1796 entraram no mato, ao pé dos montes. Cândido Justino Alvarenga, apelidado Cândido Canela Fina, chefiou o grupo. Breve, ergueram moradias, feitas com folhas de palmeiras, bambu, o que houvesse, o que aparecesse. Não se sabe por que, todos morreram, de repente, machucados por estranha doença. Todos morreram! Todos morreram! (ibidem, p. 84).

Sobre o que causou a morte desse grupo de afrodescendentes, nem a personagem Antônio Jubileu nem a narrativa como um todo explicitam. Contudo, acreditamos que esse é um artifício utilizado pelo texto para expor a existência aniquiladora do “frio” desde o final do século XVIII.

A obra, ao trazer para o tecido narrativo personagens que nos possibilitam confirmar a presença do “frio” na sociedade em que vivem, prontifica-se no sentido contrário ao dos discursos que apregoam a ideia de “democracia racial”, haja vista que o “frio” existente na narrativa aponta para o racismo vigente na sociedade brasileira. O posicionamento questionador com relação a esses discursos, juntamente com o fato do autor dessa obra não ser “canonizado” pela historiografia literária do Brasil, nos possibilita entender A descoberta do frio como contraliteratura. Sobre a questão desse conceito, Zilá Bernd nos assegura ainda que

Os textos da contraliteratura quase sempre se afastam de uma tradição eufórica ou ufanista que encobrem a realidade. Organizando-se como contradição a esse tipo de retórica grandiloquente, que camufla os aspectos deprimentes da sociedade como miséria, guerra, racismo, subdesenvolvimento, etc. ela abre uma brecha para o aparecimento da realidade oculta, permitindo ao mesmo tempo o resgate da imagem real do homem e a emergência de um discurso de resistência à opressão (BERND, 1988, p. 43-44).

No intuito de desmistificar a ideia da “democracia racial”, a novela reelabora esteticamente o racismo, transformando-o em um “frio” que aflige a coletividade afrodescendente. Como mecanismo de confirmação dessa “ameaça glacial”, a narrativa de Oswaldo de Camargo nos apresenta várias personagens que, seja por meio de suas lembranças ou de suas experiências, afirmam a presença do “frio” – o qual compreendemos como o racismo que atinge os afrodescendentes.

Portanto, por posicionar-se no contrafluxo dos discursos que buscam naturalizar a existência da “democracia racial” na sociedade brasileira, juntamente com o fato de ser escrita por um autor ainda não consagrado pela crítica, acreditamos que A descoberta do frio possui o estatuto de contraliteratura.

 

Referências

AMARAL, Assunção José Pureza. Relações raciais no Brasil. In: _______. Da Senzala à Vitrine: relações raciais e racismo no mercado de trabalho de Belém. Belém: Cejup, 2004, p. 31-86.

BERND, Zilá. Introdução à Literatura Negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.

BONNICI, Thomas. O cânone literário e a crítica literária: o debate entre exclusão e a inclusão. In: BONNICI, Thomas; FLORY, Alexandre; PRADO, Márcio. (Orgs.). Margens Instáveis: tensões entre teoria, crítica e história da literatura. Maringá, EDUEM, 2011, p. 101-128.

CAMARGO, Oswaldo de. A Descoberta do Frio. São Paulo, Cotia: Ateliê Editorial, 2011.

CEIA, Carlos. Paraliteratura. In: E-Dicionário de Termos Literários (EDTL). Disponível em: <http://www.edtl.com.pt/undefined/>. Acesso em 17 de abr. de 2013.

DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a07>. Acesso em 21 de mar. de 2013.

FERNANDES, Florestan. Aspectos da questão racial. In: _______. O Negro no Mundo dos Brancos. São Paulo: Global, 2007, p. 38-63.

MOURA, Clóvis. Prefácio. In: CAMARGO, Oswaldo de. A Descoberta do Frio. São Paulo, Cotia: Ateliê Editorial, 2011, p. 11-17.

MOURALIS, Bernard. As Contraliteraturas. Coimbra: Almedina, 1982.

MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. Racismo, discriminação racial e ações afirmativas: a sociedade atual. In: _______. O Negro no Brasil de Hoje. São Paulo: Global, 2010, 171-197.

SANTOS, Joel Rufino dos. O Que é Racismo? São Paulo: Abril Cultural: Brasiliense, 1984.

SOUZA, Florentina da Silva. Afrodescendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

 

1 Este artigo é um recorte do meu trabalho de conclusão de curso, o qual foi escrito sob orientação do Dr. Sérgio Afonso Gonçalves Alves, professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Pará.

2 Graduado em Letras (Língua Portuguesa) pela Universidade Federal do Pará.

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3 Em nota ao final da novela, Oswaldo de Camargo afirma que a Imprensa Negra foi uma “imprensa alternativa feita por negros, cujo início pode ser datado a partir de 1833, com a publicação de O Homem de Cor (Rio de Janeiro, Tipografia Fluminense de Brito & Silva), nome alterado a partir do 3º número para O Mulato ou o Homem de Cor. O negro Francisco de Paula Brito, iniciador do movimento editorial no Brasil, foi o proprietário da mencionada tipografia. É a partir de 1890 que aparecem em São Paulo as primeiras tentativas para o estabelecimento de um jornalismo a serviço da coletividade negra da cidade, com ‘as publicações A Pátria, órgão dos homens de cor; O Propugnador (1907), órgão da Sociedade Propugnadora 13 de Maio, composta por homens de cor e que tinha entre seus objetivos a criação de aulas primárias diurnas e noturnas para seus associados’ (Heloisa de Faria Cruz, São Paulo em Papel e Tinta: Periodismo e Vida Urbana – 1890 -1915, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, p. 129). Esses jornais foram seguidos em 1911 por A Pérola e O Menelick. Após essas duas publicações, ano a ano aparecem outros títulos, como a Princesa do Oeste (SP); A Rua (SP), 1915; O Xauter (SP), 1916; O Bandeirante (Campinas, SP, 1918); União (Curitiba, PR, 1918); O Patrocínio (Piracicaba, SP, 1924). Nesse mesmo ano, Jayme Aguiar e José Correia Leite fundam o Clarim da Alvorada, cujas atividades foram suspensas em 1933. A Voz da Raça (1933-1937), órgão do movimento Frente Negra Brasileira, dirigido por Raul Joviano do Amaral, teve como finalidade formular uma doutrina social para a Frente. Em 1946, apareceram Alvorada, dirigido por José Correia Leite; Novo Horizonte, por Ovídio Pereira dos Santos, sendo redator Aristides Barbosa, e a revista Senzala, por Geraldo Campos de Oliveira. Em 1960, Ébano e Níger (órgão da Associação Cultural do Negro)” (CAMARGO, 2011, 113-114).

4 Em nota ao final da novela, Oswaldo de Camargo afirma que a Árvore da Palavra foi uma “publicação mimeografada da década de 1970, editada pelo poeta negro Jamu Minka (José Carlos de Andrade). Árvore da Palavra foi, por algum tempo, o único jornal da Imprensa Negra em São Paulo” (ibidem, p. 113).

5 Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.

6 Igualdade entre a “população branca” e a “população afrodescendente”, sem discriminações, preconceitos ou qualquer tipo de racismo (SANTOS, 1984).

7 Segundo o autor, a “Comissão Semanal” era composta por “(...) cidadãos respeitáveis, representantes de bairros ou de grandes grupos habitacionais. Homens sérios, de inquestionável formação, reputação sem nódoa e grande amor às coisas públicas” (CAMARGO, 2011, p. 51).

8 Cf. História Concisa da Literatura Brasileira (2006), de Alfredo Bosi; História da Literatura Brasileira (1995), de Nélson Werneck Sodré; Introdução à Literatura no Brasil (2001), de Afrânio Coutinho; História da Literatura Brasileira (2001, 3 volumes), de Massaud Moisés; Formação da Literatura Brasileira (1997, 2 volumes), de Antonio Candido.

9 Segundo Carlos Ceia (2013), a paraliteratura é a designação para todas as formas não canonizadas da literatura, a saber: romance ultra-light, literatura pornográfica, policial, popular etc. Textos que, em via de regra, não são aceitos por eruditos, por instituições acadêmicas ou pelos meios de comunicação. Para Carlos Ceia “a vantagem da designação paraliteratura (em vez de infraliteratura) reside no tom não depreciativo que o prefixo para- tem, uma vez que remete para tudo aquilo que fica na margem de e não necessariamente tudo aquilo que não entra na categoria de um clássico, por exemplo” (ibidem).

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