Diáspora e afro brasilidade

Riverson Silva*

A negritude é um elemento fundamental e presente na obra de Nei Lopes, que não se restringe apenas à música, mas também em um consistente trabalho literário, o qual é permeado pela temática negra no que tange à religião, à música, às paixões, ao idioma, e aos conflitos peculiares do afro-descendente.

Em seu livro Incursões sobre a pele, de 1996, Lopes escreve sobre a condição do negro, seu passado, seu futuro e seu presente, tanto no Brasil como em Cuba e no próprio continente ancestral. Retrata os abusos e crueldades da escravidão e suas sequelas. No entanto, emprega um tom otimista e esperançoso ao falar de um povo que se formou através da luta pela sobrevivência e pela liberdade. Também se faz presente a força mística representada por elementos da religiosidade afro-brasileira.

Nesse livro, o autor apresenta uma divisão temática, tendo na primeira parte o título “Incursões sobre a pele”, na qual desenvolve aspectos étnicos da afro descendência, relacionados à história e à identidade do povo negro e de seus ancestrais trazidos à força da África:

Sinto a pele
Como um fato
Da cor do Homem
Da História
Da Luta e da Vitória
(1996, P.21)

Nesses versos, o sujeito de enunciação se assume como negro, consciente de sua origem, sente que sua pele traz as marcas inseparáveis da memória de seu povo, as marcas de derrotas e conquistas, das quais se sente participante.

Uma das características da poesia de Nei Lopes é a denúncia social e política, que se encontra presente, por exemplo, em “História para ninar Cassul-Buanga”. Nesse poema, o eu lírico descreve a chegada em África de uma “nau de velas caras”, navegadas por homens de “mãos de ferro” que irão capturar seus irmãos. “Amontoados, confundidos, fundidos, estupefatos”, os negros encontraram-se nos porões do navio, enquanto viam sua dignidade sendo deixada para trás, ao mesmo tempo em que seguiam para uma terra desconhecida. No trecho escolhido, o eu lírico relata ao seu filho como seus antepassados foram arrancados brutalmente de sua terra natal, aprisionados e privados do respeito devido aos seres humanos, para serem transformados em mão-de-obra escravizada em terra alheia:

 Chegamos:

Nosso suor foi o doce sumo de suas canas
– nós bagaços.
Nosso sangue eram as gotas do seu café
– nós borras pretas
Nossas carapinhas eram nuvens de algodão,
Brancas,
Como nossas negras dignidades
Dadas aos peixes.
Nossas mãos eram sua mão-de-obra.
(1996, p.23-4)

O trabalho forçado ao qual foram submetidos os negros trazidos da África configura-se como vital para a formação de riqueza para “eles” – os homens brancos, à custa de suor, sangue e perda da liberdade. Mas, apesar disso, diz: “vivemos, Cassul. E cantamos um blues! / E na roda um samba / De roda / Dançamos”. Desta forma, o poema ressalta que os africanos e seus descendentes não só resistiram à adversidade, como também construíram a esperança, seguindo a orientação da divindade suprema do culto afro: ”Meninos como você, Cassul-Bunga, / Hão de sonhar um sonho tão bonito... / Porque Zâmbi mandou. E está escrito” (1996, p.23-4).

O descaso e a exclusão também são enunciados no texto de Nei Lopes. Em “Primeiro poema do negrinho”, o abandono das crianças negras e a negligência da sociedade para com o seu futuro são evidentes. Eles são deixados sempre na fila de espera, à margem das ações sociais. Sozinho, somente o infinito é capaz de escutar o grito desesperado do negrinho e respondê-lo: “– Espera!”. Eco que paralisa o menino e a sociedade em que se encontra.

E desespera o negrinho
E grita de novo o grito
Que o infinito segura
E retribui feito um eco:
– Espera!
(1996, p.33)

Em outro poema, é pelo viés da comunhão dos afro-descendentes que Nei Lopes demonstra sua esperança em um mundo melhor, no qual as desigualdades serão eliminadas e os ideais unificados, e “um outro Homem e verdadeiro” surgirá como fruto de um “amor negro como a África de teus olhos”, em um lugar onde os excluídos não mais terão motivos para o pranto:

Nosso mútuo enlevo ante o sorriso dos negrinhos
Nossa conjunta lágrima ante a fome dos negrinhos
Estarão em nós, em ti, em mim
Em nosso verdadeiro Homem.
Só que não haverá lágrimas nos olhos dos negrinhos
Pois que os Homens se terão dado as mãos.
(1996, p.28-9)

A religiosidade afro-brasileira está presente em vários textos, nos quais o autor utiliza um rico vocabulário africano, próprio dos cultos de terreiro. No poema “Ogum, iê”, por exemplo, há uma louvação ao orixá em versos extremamente musicais, no qual sua métrica sugere a melodia dos atabaques:

Ele sopra e o ferro derrete
Ele é um, ele é três, ele é sete
Ele corta, ele mata, ele mete
Ele é um, ele é três, ele é sete...
(1996, p.22)

Nesse texto, o eu lírico louva o orixá senhor da guerra e protetor dos que trabalham o ferro. É perceptível o valor dado à religiosidade africana e à musicalidade dos versos presente nas cerimônias dos terreiros. O orixá ferreiro/guerreiro é chamado por seus outros nomes na última estrofe: “Alabedé, Omini, Ogunjá, Uarri, / Akorô, Mejê, Onirê / Ferreiro com guerreiro / Fazem: / - Ogum, Iê”, numa evidência do resgate da cultura e da religiosidade de origem africana.

Em “Poema cortando quiabos”, o fato religioso se funde à culinária. O alimento ganha caráter devocional e sagrado, explicitando a importância da comida como parte do ritual de oferendas feitas às divindades:

É comida votiva de Xangô
E de Ibêji,
Aos quais preparo com esmero
Hoje, 30 de setembro, uma oferenda.
(1996, p.61-3)

Em “Multiplicação dos cantos”, o eu poético, tal como Jesus Cristo, vai até às pessoas simples e necessitadas. Enquanto o Messias do cristianismo promovia a multiplicação dos pães e dos peixes para saciar a fome dos homens, o eu lírico promoverá a multiplicação da palavra – “De um só poema, fiz uma dezena” – para alimentá-los de esperanças:

Os homens do cais pediram mais.
Peguei uma palavra
Que um deles jogara na espuma
Fiz cem cantares
E fui aos teares, 

Lá, os tecelões gostaram demais
E pediram bis. Dado um fio
De matéria têxtil, fiz mais de mil.
(1996, p.72-3)

Depois de proferir seu canto-poema, o sujeito de enunciação parte em direção a outros lugares de memória, quando é interpelado por Iemanjá. A divindade ordena que ele retorne ao cais, onde seu falar era realmente necessário: “Aqui não preciso dos cantos que cantas / porque nos meus olhos já mora a esperança / enquanto que os olhos dos homens são tão nevoentos... ! / Volta com teus versos!” (1996, p.72-3)

Noutro momento, a palavra poética aparece como forma de resistência do eu enunciador negro à cultura do colonizador. Ele faz investidas contra a tirania da língua e da cultura hegemônica através de suas “granadas lexicais”. E assim, segue a tocar o bumbo, mantendo “Portugal no corpus / e Africanamente...”:

Semeio nos campos
Nestas verdes campinas
Granadas lexicais
Como se fossem minas
Contra a hegemonia
E a lusitania
Dos barões gerais...
(1996, p.31)

Já na subdivisão denominada “Poemas do Ogro”, a temática dominante é a feminina, sendo os versos dedicados à mulher, não apenas à afro-descendente, mas também à mulher branca, que é comparada ao Ogro, personagem da mitologia semelhante ao bicho-papão. Nesses poemas, o autor fala sobre a paixão e o poder de sedução da mulher que o domina, assusta e escraviza.

Em “O cão à caça”, o eu lírico se compara a um caçador em papel invertido: de caçador ele passa a ser presa de sua caça que, após seduzi-lo, passa a rejeitá-lo:

E a mulher branca me foge
Com chalaças, com negaças
Após prometer no aceno
Do riso um tanto obsceno
Certo deleite aos sentidos.
(1996, p.43)

Já em a “Invencível Amada”, Nei Lopes compara a mulher à histórica Armada Invencível, a grande esquadra de Felipe II, rei da Espanha. O eu lírico traça seu plano para a conquista da mulher, e tal como Sir Francis Drake, deseja derrotar a força naval inimiga:

Uma duas estocadas
Uma duas investidas
Como o verso ariete
E eis-te, nau frágil,
Abalroada
Abordada
Saqueada
Avariada
Grossa e doce avaria.
Marinha enfim desarmada
Num mar de rosas, Maria!
(1996, p.47)

Maria, a mulher sem lógica e assexuada: “Amada mulher sem nexo / Armada mulher sem sexo”, é destituída de seus atributos femininos para que se evidencie a força que possui. Essa mulher, que se configura como uma ameaça e é aparentemente invencível, depois do contato com o “verso ariete” do poeta, torna-se “nau frágil”...

Outro aspecto importante da poesia de Nei Lopes é a forte presença das questões referentes à diáspora negra. Em “Dacar, Novembro de 72” as lembranças da África são aguçadas pelos sons dos tantãs que ainda ressoam na mente do eu lírico pelas “flores e tecidos” que desafiam o esquecimento; pelo “cheiro de chão seco / Odor de dor antiga”; pelo “livre som do corá”. Nesse jogo de lembrança que se faz presença, o sujeito questiona o seu pertencimento identitário ao refletir sobre possíveis efeitos do retorno a Terra Mãe.

A solidariedade e a identificação com o continente africano são expressas nos textos que compõem a parte intitulada “Poemas de Angola”. Neles, Nei Lopes demonstra que a pátria dos seus antepassados permanece viva em seu sangue, “contaminado”, “infectado” pela magia e encanto daquela terra. Em “Angola arde”, o eu poético exalta a herança angolana e relata as lutas e glórias de um povo sofrido, escravizado, mutilado, mas resistente e vitorioso.

Angola
É uma gazela correndo no meu sangue
É uma fêmea de Anopheles darlingi
Me picando a alma
E inoculando o vírus de uma febre
Que me incendeia e faz
Tremer eternamente
Num delírio de paz e igualdade.
(1996, p.93)

A temática e a perspectiva afro-brasileira também se encontram nos contos de Nei Lopes. Em Casos Crioulos, de 1987, percebemos o relato do sujeito afro-descendente a partir de um ponto de vista bem humorado, deixando de lado a escrita mais explicitamente política, e privilegiando a festividade do povo negro. A denúncia do preconceito e o resgate de uma identidade historicamente recalcada também estão presentes nestes contos, que tratam de aspectos da natureza do afro-descendente carioca, sempre permeados pelo samba e a cultura negra em geral.

Os traços cariocas – a ginga, o modo de ser, o humor – são inscritos de forma brilhante em “A volta do velho”, conto em que o narrador relata o seu passeio com um idoso que vivia numa cadeira de rodas por locais como botecos, pagodes e estádios de futebol. Por não ter avisado a família do velho, o personagem é acusado de sequestro, e tece sua justificativa:

Agora: o que eu não posso aceitar é esta acusação de sequestro, doutor! Eu sei que o Velho já tem mais de noventa anos... Tá certo que eu não tenho nada com isso se a família dele só está esperando ele fechar pra cair em cima da herança, feito uns urubus. Mas é que eu sempre achei uma tremenda sacanagem ele ficar ali na varanda só olhando – coitado! – a nossa curtição no Boteco do Tuninho, querendo participar e ninguém levando. Pô, já pensou?! Há mais de sessenta anos ele não ia nem na esquina! (1987, p.16)

A interpretação das ações do personagem-narrador como uma tentativa de crime se dá devido à idéia preconceituosa de que o negro é sempre mal intencionado, incapaz de agir de forma desinteressada e honesta. A camaradagem vista como coisa de malandro, que passa o dia vadiando nos botecos cantando samba sem fazer nada.

No conto “Criado com a madrinha”, o narrador é um homossexual negro que tem um sonho em forma de filme com a madrinha rica que o criou. Nessa lembrança onírica, a vida do personagem central é mostrada como enredo. Da casa da madrinha à prisão, os acontecimentos são intercalados por dizeres preconceituosos, que tentam afirmar a inferioridade dos negros, fadados a serem sempre marginalizados por sua própria natureza:

As primeiras cenas mostravam ela me pegando no berçário da Casa da Mãe Pobre, entrando, comigo no colo, no seu Rolls Royce e me levando pra ser gente, pra ser um grande homem, pra me dar do bom e do melhor no casarão da Gávea Pequena. E o fundo musical – o carro já subindo a Estrada Velha em meio àquele verde estonteante – era o “Suplício de uma Saudade”, com Orquestra de David Rose. “ Love is a many splendored thing...” Que lindo!!!

(Hmmm? Negros? Criá-los, depois vendê-los!)

(1987, p. 18)

Nesse mesmo conto, o narrador, após fugir da casa da madrinha rica por ter sido flagrado em uma relação homossexual, relata as cenas que mostram os rumos marginais que sua vida tomou e os acontecimentos seguintes da família de criação:

As imagens agora são confusas: minha madrinha participando da Marcha da Família e eu surrupiando a bolsa de uma madame na feira do Catete; meu padrinho, de pijama, dirigindo com punho de ferro uma empresa estatal e eu fazendo meu primeiro ganho, com um berro de brinquedo, num ônibus 410; meu padrinho numa lista tríplice para escolha de Ministro das Minas e Energia e eu recebendo uma Pomba Gira num terreiro de Nilópolis; minha madrinha fazendo caridade na Feira da Providência e eu recebendo aplicação de silicone num sobrado da Mem de Sá; meu padrinho envolvido no escândalo do estouro de uma Financeira e eu em cana na 3ª DP na rua Santa Luzia; meu padrinho indo pra Cleveland botar três pontes de safena e eu arrebentando a boca do balão, free again, como madrinha da bateria dos Acadêmicos do Engenho da Rainha; a Dindinha e o Dindinho num cruzeiro pelas Bahamas e eu viajando da Água Santa pra Ilha Grande.

(Preto, quando não caga na entrada, caga na saída)

(1987, p. 20)

O conto é todo ele construído por intercalações opositivas entre as ações dos padrinhos brancos e ricos e as do negro que abre mão do apadrinhamento e opta pela marginalidade, daí advindo um efeito ao mesmo tempo cômico e dramático. Nesse jogo de contrastes, a fala do narrador é entremeada por enunciados preconceituosos colocados entre parênteses, que reproduzem o discurso discriminatório instalado no senso comum, construindo assim um vigoroso contraponto dialógico. O fato do padrinho rico ser bem mais criminoso do que o afilhado, mas “absolvido” devido à sua condição socioeconômica, remete à crítica social contundente e, ao mesmo tempo, irônica. E a opção sexual – que remete à figura emblemática de Madame Satã – aparece como elemento agravante no julgamento sofrido pelo negro. Junto com a marginalidade, ela é avaliada como comportamento desviante diante dos valores morais hegemônicos, ao mesmo tempo em que os crimes do padrinho são encobertos numa forma de apadrinhamento cínico comum entre as elites.

Consta que o formalismo sufocante e a imposição de se tornar “branco”, existentes no mundo jurídico, fizeram com que Nei Lopes abandonasse a profissão de advogado. No conto “Data vênia”, o autor expõe esses “percalços” da profissão, através de um advogado negro, que, assim como o escritor, não abre mão de suas raízes étnicas. E em meio a um animado bloco, ele relata a uma cliente a tirania da aparência sobre um advogado afro-descendente e sambista:

Não, Dona Alzira! O chato da profissão não é só a gravata. O pior –preste atenção – o pior é a linha de com-por-ta-men-to. Eu explico: Pra gente comer, beber, vestir, calçar, ou seja, pra gente defender um qualquer, os clientes têm que acreditar na gente. Mas pra acreditarem na gente, os clientes não deixam que a gente seja a gente mesmo. E aí, adeus esquina, adeus boteco, adeus guia no pescoço, adeus morcela na ponte do Cascadura, adeus angu no Miguel, adeus piquenique de caminhão em Sapetiba... Um surdão igual a este aqui, então, Dona Alzira, respondendo, centralizando, sincopando, cadenciando, salgueirando... um surdão desses, então, ainda mais eu assim, sem camisa, cheio de truaca, cheio de sensibilidade, chiiii... nem se fala, Dona Alzira! (1987, p. 24)

A denúncia do preconceito na profissão ocorre também quando o advogado releva uma certa falta de seriedade do ofício, ao relatar fatos cômicos ocorridos no tribunal e a preferência de um oponente por advogados brancos: “E tem também aquela do adversário do meu cliente que dizia que o advogado dele era melhor que eu porque tinha escritório na cidade e era branco...” (1987, p. 25)

A identidade afro-descendente já conhecida de suas músicas também é encontrada nos seus trabalhos literários, pois Lopes é um autor que descreve o negro em suas diferentes facetas. A sua escrita se modifica a ponto de contemplar a tensa realidade excludente do negro e a alegria de um povo que aprendeu a festejar a sua cultura e o legado herdado por seus ancestrais. No entanto, a inscrição dessa identidade, a denúncia da discriminação e o combate ao colonialismo estão presentes em ambas as produções. Em suas poesias, Lopes utiliza a história e a condição social do negro como elemento de crítica à realidade em que o mesmo se encontra, e como base para projeção poética de um futuro promissor para os descendentes do continente africano em meio à diáspora. Já em seus contos, emprega com maestria o humor essencialmente carioca ao tratar do cotidiano negro do Rio de Janeiro, em que situações cômicas evidenciam de forma debochada o preconceito racial que marginaliza e oprime o afro-brasileiro. E essa comicidade também funciona como instrumento de resistência e de valorização de suas raízes.

 

Referências Bibliográficas

LOPES, Nei. Casos crioulos. Rio de Janeiro: CCM Editora, 1987.

LOPES, Nei. Incursões sobre a pele. Rio de Janeiro: Atrium, 1996.

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* Graduando em Letras pela UFMG

 

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