Acorde de um verso
Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Ler Acorde de um verso (2012), de Michel Yakini, é visitar o nosso avesso especulativo como se quer bem a um amigo. Nossa profundidade é companheira certa,
principalmente naqueles momentos em que a superficialidade esconde a beleza de um rio, sendo este experimentado apenas quando se arrisca um mergulho nele. Pela metalinguagem apurada, a voz poética de Yakini se espalha, provocando fascínio em quem se pega contemplando a existência cercada de mistérios e revelações. O poeta, com estilo esmerado, divide com o público ousadas intenções polissêmicas cujo sentido se pretende aberto, assim como o desabrochar da rosa sente a expansividade do sol em seu brilhar radiante: “por mais onde for,/a poesia como flor,/e o poeta semeia pólen,/coloca doce na saliva,/ferrão na tiração,/se esparrama em nosso mundo/e beija a boca da vida”. O poeta agrada os ouvidos da beleza – “ave avessa do avesso” – e desagrada quem não quer escutar a verdade da “Quebrada Vivendis”.
Instala-se o clima de inconformismo e de frustração, quando o prazer não se estende de forma fértil. Onde não há fertilidade não há fruto. Não há futuro onde não há fruto – que traz a perenidade da vida com o corolário da semente. E aquele que não vislumbra algum futuro em que possa sobreviver e movimentar-se, pode se transformar num destruidor do presente. Esta conjuntura repercute na voz poética de Michel Yakini, ao retratar corajosamente a sombria paisagem que contamina o real, extraindo-lhe sua cor viva de progresso transformador: “tem vezes que fico em versos tristes,/quando vejo meu lugar descolorido/e o sereno refletido/em rochas e alumínio/tem vezes que fico em versos tristes,/quando sinto o imaginário poluído/e as bicas da presença,/jorrando pó em vez de paz”.
A violência surge da impossibilidade de encontrar fertilidade para as próprias ações. Não se atentando para o fato de que “quem guarda tudo é horizonte”, conforme ressalta Yakini, no poema “Do tamanho do tempo”, o homem tem espalhado suas sementes de forma desastrada em terrenos que as expõem à destruição. “Linha f”, por exemplo, expõe situações de secura que, à primeira vista, são carregamentos de angústias, mas, depois, percebidas por um melhor ângulo pelo eu-poético, favorecem o terreno para sua floração desafiadoramente interior: “sinto raiva desse cara/que me empurra,/me encurrala/me esmaga,/me aperta/pra sentar dignamente/no assento do trem/sinto raiva desse cara/que por oito horas rala/que repete,/que adoece/que não cuida da saúde/muito menos da família/mora mal/come mal/dorme mal/é mal pago/mal sabe se respira/sinto raiva desse cara/que aceita o inaceitável/pago caro,/me agride,/me coage/pra sentar dignamente no assento do trem/mas hoje/despertei minha ira/ele, como um miúdo/chorou.../gotas secas/e no deserto da sua retina/saquei que ele era/eu”. Viver no fim da linha pode ser também não se conhecer de verdade. Yakini, neste poema, muito bem destaca a importância da autoestima como elemento fundamental para nos libertar da opressão que reprime nossa personalidade autêntica.
Socialmente, “Linha f”, de Michel Yakini, apresenta uma relação intertextual instigante com o poema “O operário em construção” (1959), de Vinicius de Moraes, principalmente quando se traz à tona o processo de conscientização experimentado pelo próprio trabalhador, quando este resolve então se opor aos desmandos do patrão autoritário e explorador: “e foi assim que o operário/Do edifício em construção/que sempre dizia sim/Começou a dizer não./E aprendeu a notar coisas/A que não dava atenção:/Notou que sua marmita/Era o prato do patrão/Que sua cerveja preta/Era o uísque do patrão/Que seu macacão de zuarte/Era o terno do patrão/Que o casebre onde morava/Era a mansão do patrão/Que seus dois pés andarilhos/Eram as rodas do patrão/Que a dureza do seu dia/Era a noite do patrão/Que sua imensa fadiga/Era amiga do patrão./E o operário disse: Não!/E o operário fez-se forte/Na sua resolução”.
O talento individual de Yakini, ao dialogar com a tradição literária, também se faz presente no poema “Rebento”. Seus versos iniciais parecem ressoar “Poema de Sete Faces” (1930), de Carlos Drummond de Andrade, no que ele tem de elogio ao estilo gauche de viver. Fora do convencional, o sujeito se revela no esplendor de sua potencialidade ativa. Transgredir a ordem do trivial com inventividade é fundamental, pois, adverte Drummond: “mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse Raimundo/seria uma rima, não seria uma solução”. Se o conselheiro do eu-poético drummondiano é um “anjo torto” que vive na sombra, no mencionado poema de Michel Yakini, a ancestralidade iluminada é que serve de norte para a geração de um ser gracioso por natureza. Incorporando o universo feminino protagonizados por mãe e filha, a voz lírica de Yakini melodicamente aponta para o ápice do florescimento da humanidade: “quando nasci fui consagrada/nas palavras ancestrais/banhada com águas de cabaça/perfumada com incensos de proteção/verti choro, como verti!/mamãe bebeu minhas lágrimas/acalmou-me por inteira/depois enrolou-me/numa capulana/ergueu-me sob seu turbante/e disse em tom de trovoadas:/‘tu serás capaz de navegar os céus/repousar nas nuvens, beijar estrelas/triunfarás sob qualquer injustiça/pois és herdeira de um destino livre’”.
Acorde um verso, pois!. E a poesia se revelará plenamente. Com Michel Yakini, experimentamos essa bendita graça com muito primor, inspiração e senso crítico. Despertar esse gigante pela própria natureza – o leitor – do seu berço esplêndido chamado zona de conforto se configura como proposta do autor que, pela dissonância criativa, propõe acordes libertários de compreensão voltada para acolher, com entusiasmo problematizador, a pluralidade do viver.
* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.