Martinho, o da VIDA

Helena Theodoro

 

Falar sobre Martinho da Vila é pensar em pluricultura nacional, em força dos ancestrais e dos orixás, em fé na vida, na comunidade e na família, além de passar, obrigatoriamente, pelo estudo da identidade cultural do país, em suas vertentes, tanto étnicas como culturais.

Focalizar Martinho da Vila, suas idéias e suas obras é mostrar um exemplo vivo de um brasileiro, descolonizado culturalmente e orgulhoso de si mesmo.

Na verdade, em 1985, ao concluir minha tese de doutoramento sobre o ideal de pessoa humana na cultura negra e suas implicações com a moral social brasileira, enfoquei Martinho como um dos exemplos de força de vida, já que há muito pensava no negro brasileiro em seu espaço, com suas emoções e realizações, encontrando no Zé Ferreira uma síntese deste homem, pleno de elementos necessários às minhas reflexões. Assim, ao longo dos últimos doze anos, venho amadurecendo contatos, sendo que a partir março de 1989 pedi a Martinho autorização e ajuda para analisar e divulgar seu trabalho.

Martinho José Ferreira, o Martinho da Vida, no entanto, não foi uma escolha casual. Estava escrito nas estrelas que ao alcançar minha maturidade como pessoa, estaria refletindo em meus trabalhos a preocupação com um exame mais aprofundado do respeito e da aceitação de alteridades e com a compreensão da participação de sistemas próprios oriundos da continuidade de valores transcendentes da civilização e tradição africanas no Brasil, além de analisar sua singularidade, complexidade institucional e a pluralidade real e cotidiana que atravessa nossa história.

Martinho representa a continuidade histórica dos afro-descendentes, mesmo que não saiba exatamente o que significa. É ele que afirma num depoimento em sua casa:

Nunca pensei muito no que represento. Porém, com o passar do tempo, querendo ou não, a gente vai sentindo a força de viver com as pessoas que sofrem conosco e isto aumenta cada vez mais a nossa responsabilidade pessoal. Cada um de nós é uma coletividade, responde por outros. Quanto maior for a família, maior força ou Axé você terá, porque AXÉ é um ENERGIA que emana das pessoas que estão ao seu redor. Quanto maior for a corrente, maior a capacidade de realização pessoal , de criação!

Os registros feitos pelo artista no seu Kizombas, Andanças e Festanças (1992) e em seu livro infantil Vamos brincar de política? (1986) revelam a abrangência de seu trabalho. As longas conversas que tivemos, gravadas desde 1989, são verdadeiras lições de vida, que me enriqueceram profundamente. Desta forma, falar deste compositor, poeta, escritor e amigo não é apenas um registro precioso, mas, segundo a tradição nagô, é o estudo de uma história de vida da qual extraímos sabedoria, lições e valores.

Já nas primeiras linhas do Capítulo I do Kizombas, Andanças e Festanças, Martinho revela sua maneira peculiar de ver o mundo:

 

Que bonito deve ser um país sem preconceito cultural!

Todo profissional de criação, entendendo ou não, -

gostando ou não, deve respeitar a criatividade

popular.

Misturar culturas é sempre bom.

Criar exige um sacrifício, uma abnegação, uma vontade

de despretensiosamente colaborar com a humanidade.

Não basta ler, pensar. Tem-se que participar, batalhar

pela concretização dos sonhos.

 

Analisar a obra de Martinho José Ferreira é mergulhar mais profundamente na realidade cultural brasileira, em seu imaginário social, principalmente no que tange às suas bases africanas e à sua capacidade de transformar, criar e valorizar a cultura do povo brasileiro. Sua arte revela uma identidade cultural, que designa um sistema de pensamento peculiar ao negro brasileiro, pleno de elaborações intelectuais e estratégias positivas de ação, e que se funda na capacidade de criar representações, imagens e conceitos que estruturam e organizam as comunidades, caracterizando o imaginário social com o qual o grupo se identifica, estabelecendo suas trocas e distribuindo seus papéis sociais.

Sempre tomamos como modelo a Europa, de valores estranhos a nós. É preciso assumir o terreiro como modelo, como nossa Grécia, tal qual faz o Zé Ferreira, provando que o mundo reconhece aquele que se reconhece!

Aqui vamos apenas citar a obra literária do autor:

Teresa de Jesus; Joana, Joannes; Ópera Negra; Kizombas e Andanças; Vamos brincar de política; Os Lusófonos.

Já sua obra musical, vamos apresentá-la como um texto, a partir de seus discos, já que todos são temáticos. Para conhecer um pouco mais do Martinho da Vila, basta lidar com os títulos de seus discos, que falam da vida e dos projetos deste guardião da alegria, como se pode observar:

Mostrando que Nem todo crioulo é doido (1969), o Martinho da Vila (1969), nosso Sargento de Milícias (1971), com seu Laral- raiá (1970), fêz Batuque na cozinha (1972), homenageando suas Origens (1973), Canta, canta minha gente (1974), nesta Maravilha de cenário (1975), oferecendo uma Rosa do povo (1976) de Presente (1977) para os amigos na Tendinha (1978), regada a Cantigas de Terreiro, sala e salão (1979).

São mais que puros seus Sentimentos (1981), expressos em Sambas enredo (1980) que mostram seu Verso e Reverso (1982), além de sua capacidade de utilizar Novas palavras (1983). Este é o Martinho da Vila Isabel (1984), com suas Criações e recriações (1985), Batuqueiro (1986), Coração Malandro (1987) responsável pela Kizomba-festa da raça (1988), que fêz o Brasil inteiro aprender O Canto das Lavadeiras (1989) Este é, de verdade, o Martinho da Vila em seu Templo da criação (1992), que afirma categórico: Vai, meu samba vai! (1993)

Na sua Vila Isabel, Martinho presta homenagens Ao Rio de janeiro (1994), sem nunca deixar de viver a vida ao lado da esposa Cléo, afirmando: Tá Delícia, tá gostoso (1995). Criou o Butiquim do Martinho (1997), onde promoveu muito samba e chorinho, sempre lutando pela Lusofonia (2000), por manter contato com todos os países africanos de expressão portuguesa, consciente de que somos Coisas de Deus (1997) e que, quando revisita a África e mostra o que Angola canta (1998) ele louva os ancestrais e mostra, como Pai da Alegria (1999), que Martinho é da Roça e da cidade (2001), sendo só Voz e coração (2002),o grande mago das Conexões (2004), pleno de Brasilatinidade (2005).

Para concluir quero contar que Martinho, em sua música "Brasileira", feita em parceria com o Mané do Cavaco, que, integra o CD Ao Rio de Janeiro, revela sua identidade de forma muito peculiar, já que faz elaborações intelectuais, plenas de estratégias positivas de ação, voltadas para a construção de uma democracia verdadeira no país, sem ignorar a diversidade e as múltiplas identidades que compõem o mosaico cultural brasileiro, situando o fato de que apesar das diferenças somos semelhantes:

 

 

Brasileiro

 

Deixei meu lugar

Para me cariocar

Cheguei, fui ficando,

me acostumando

Hoje sou de lá

Carioca é quem sabe viver

No Rio de Janeiro

Em qualquer lugar, onde quer

que eu vá

Eu sou brasileiro

Me perdoa amor

Ó minha paixão

Mas cidade grande

é onde se vive com emoção

 

Curitiba, Sampa, Linda Floripa

e Alegre Poá

Salvador, Vitória, Belém,

Goiânia e BH

Em qualquer lugar, onde quer

que eu vá

Eu sou Brasileiro

 

Deixei meu lugar...

 

Tanto em São Luiz

como em Teresina

Eu sou brasileiro

Lá em Fortaleza, Natal,

Manaus

Eu sou Brasileiro

Em João Pessoa ou

no Recife

Eu sou Brasileiro

Em Aracaju, ou em Maceió

Eu sou Brasileiro

Em qualquer lugar, onde quer

que eu vá

Eu sou brasileiro

Lá em Rio Branco ou em

Macapá

Lá em Campo Grande

ou em Cuiabá

 

Estando em Boa Vista

ou em Porto Velho

Eu sou brasileiro

Aqui, acolá, no campo

ou no mar

Até no estrangeiro

 

Deixei meu lugar

Para me cariocar

Cheguei, fui ficando,

me acostumando

Hoje sou de lá

 

Palmas, Tocantins

Que na Capital eu

sou brasileiro!

 

Primeiro sambista a conquistar um disco de diamante, que corresponde a mais de um milhão de cópias vendidas, vem se mantendo entre os melhores da música popular brasileira, comprovando que sucesso e qualidade se conjugam quando se lida com a verdade interior, a força da tradição e muito amor pela vida.

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