A violência e o preconceito racial em Paixões crioulas, de Márcio Barbosa

Fernanda Soares*

O fazer literário de Márcio Barbosa está relacionado com seu papel de militante do Movimento Negro. Dentro da sua atuação, ele é também diretor do grupo Quilombhoje e co-organizador da série Cadernos negros. Em 1998, publicou o volume Frente negra brasileira: depoimentos, que trata do movimento homônimo, o qual buscava a integração do negro na sociedade através de uma organização política e comunitária. Márcio Barbosa (1998) afirma, na introdução do livro, que sentiu necessidade de iniciar a pesquisa sobre a Frente para “saber suas motivações, suas expectativas e, principalmente, a maneira como reagiram aos problemas que ainda hoje se colocam para a população negra”. Afirma, ainda, que se interessava em compreender, sobretudo, a forma como a Frente se organizava e como isso colaborava com a solução dos problemas. Essa necessidade de voltar ao passado para entender os problemas do presente e, dessa forma, buscar solucioná-los está implícita na narrativa de Paixões crioulas, em que Márcio Barbosa constrói uma literatura de cunho pedagógico ao tratar da conscientização dos negros e da organização de um movimento reivindicador, que luta contra a violência e o preconceito racial.

O cenário do texto é a urbana e multi-étnica São Paulo, onde a violência e a discriminação se mostram rotineiras na vida dos negros, situados, em grande parte, na periferia. Surgem na narrativa figuras marginalizadas, como traficantes que brigam pela sucessão do poder; jovens usuários de drogas, que roubam para poder comprar maconha; e menores abandonados cheirando cola. Contrapondo-se a esses personagens, despontam os integrantes do movimento negro: Pacífico, Maria das Tranças, Bélico Iorubano, velho Leônidas e Triunfo Nagô, que se reúnem para discutir sobre os diversos casos de violência e discriminação, como a prisão e assassinato de um jovem operário detido pela polícia por estar sem seus documentos. Indagado sobre o ocorrido, um tenente racista acoberta seus agentes dizendo que o jovem foi preso sob suspeita de roubo e acabou se suicidando. Mas, o narrador onisciente intervém explicando que o jovem era inocente e que teria sido covardemente espancado. O narrador aponta também a discriminação racial sofrida por duas jovens atletas que não foram aceitas em um clube e por dois jovens “vestidos com extremo refinamento” que são barrados na entrada de uma discoteca e, indignados agridem o gerente. E, evidencia, ainda, a intolerância racial entre etnias distintas, como se vê no assassinato brutal de um negro pelo balconista de bar, nordestino, que, no momento do ato, exclamava: “odeio crioulos!”.

A personagem Glória das Tranças, ao ler os jornais e perceber que aqueles fatos trágicos não haviam sido noticiados, concluiu que a violência e a discriminação já banalizadas, só poderiam ser combatidas através de denúncia pública. Não podendo recorrer à mídia, o movimento só encontra como recurso ir às ruas para tornar conhecidos tais abusos. Depois do protesto, os integrantes conseguiram pequenas vitórias, como os “míseros quartos de página” publicados nos jornais e a conscientização das autoridades sobre o abuso de poder da polícia, como alerta o delegado ao tenente racista para passar a ter mais respeito com os cidadãos, pois agora o governo exigia tal comportamento.

Na narrativa, a violência e o preconceito desmascaram a idéia de democracia racial construída por Gilberto Freyre, que afirmava existir, no Brasil, harmonia e igualdade entre os negros, mulatos e brancos. A desconstrução dessa idéia pode ser observada na passagem em que Kiluanji, um dos integrantes do movimento negro, interessado em pesquisar sobre a escravidão e compreender a condição do negro ao longo da história, vai a biblioteca. Lá, ele se conscientiza do abismo existente entre brancos e negros, conforme podemos observar abaixo:

Na biblioteca, os funcionários do atendimento, com a assiduidade daquele crioulo barbudo, mas com jeito de moleque, passaram a tratá-lo mal. Pareciam assumir uma autoridade que os permitia barrá-lo. E Kiluanji foi notando uma divisão interessante. Os funcionários do atendimento eram bem claros e, à medida que o serviço tornava-se mais escondido e braçal, à medida que se aprofundava no interior da biblioteca, em seus trabalhos menos evidentes e mais pesados, os funcionários iam escurecendo. (BARBOSA, 1987, p. 35).

A partir desse trecho, fica evidente que as barreiras sociais estão bem definidas: os brancos ocupam os melhores cargos, desempenham funções intelectuais, possuem melhores salários, enquanto que para a maioria dos afro-descendentes restam o subemprego e os baixos salários. Dessa forma, o negro fica à margem da sociedade, pois, a ele não é permitido ocupar o universo do branco, representado pela biblioteca - espaço do saber. Como afirma Florestan Fernandes em A integração do negro na sociedade de classes, este não foi devidamente inserido na sociedade capitalista, pois esta o aprisiona aos estereótipos negativos advindos da sociedade senhorial e escravocrata, que o considerava “vagabundo”, “traiçoeiro”, “imaturo”, “incapaz de raciocinar”. Devido a essa imagem negativa, Fernandes afirma ter-se formado uma “barreira invisível universal”, dificultando a ascensão social do negro por meio do trabalho.

A idéia de que os funcionários vão sendo posicionados nos fundos da biblioteca, à medida que a tonalidade de suas peles vai escurecendo, aponta para a falta de visibilidade social dos negros e denuncia um procedimento freqüente no mercado de trabalho de exigir “boa aparência” dos candidatos, o que implicitamente significa que não se aceitam negros para certas funções. Essa atitude restritiva pode ser associada ao comentário feito por um empregador de um estabelecimento bancário, presente no livro do sociólogo: “todos os serviços têm contato com o público e dentro de uma política de agradar e impressionar favoravelmente o cliente, nos mínimos detalhes, exigimos que os empregados sejam pessoas intelectualmente capazes e de boa apresentação. Só o fato de ter cor perde a boa apresentação”. (FERNANDES, 1978, p. 143).

Nas páginas de Paixões crioulas, a discriminação racial é denunciada através da tomada de consciência dos personagens sobre sua condição de negro no passado e no presente. Por exemplo, Kiluanji, ao consultar um livro de História, depara com as teorias racistas que defendiam a superioridade branca, compreendendo, assim, a falsidade da idéia de harmonia entre as raças, construída pela elite brasileira. Ainda, outro personagem, Bélico Iorubano percebe essa “barreira invisível universal” que separa os negros e os brancos, ao tornar-se vítima da hostilidade dos colegas de trabalho e ao ser assediado pelo chefe:

Cinco anos antes, Bélico Iorubano começara a dar aulas numa Faculdade e teria uma carreira brilhante pela frente, pois era inteligente e ambicioso. Não acreditava que sua pele marrom fosse um sério empecilho. No entanto, aos vinte e nove anos, reformulava diariamente essa concepção. Haviam-se levantado obstáculos mesquinhos à sua volta, tramas dos colegas de profissão, ciúmes indefinidos, e houve até o caso de um superior que lhe prometera uma promoção caso satisfizesse seu desejo de se deitar com um mulato. (BARBOSA, 1987, p. 18).

Apesar do personagem ser capaz de desempenhar plenamente seu trabalho, a cor da pele torna-se um obstáculo à ascensão profissional. Desde então, ele se integra ao movimento negro e tenta convencer os companheiros de que a luta dos afro-brasileiros deveria tomar um sentido político mais amplo e efetivo. Dessa forma, os personagens buscam caminhos para protestar contra a violência e o preconceito racial. Pacífico, que antes era o maior opositor às idéias de Bélico Iorubano, ao pensar “no silêncio dos anos mantidos sob o jugo do Estado autoritário”, acaba concluindo que fundar um partido talvez fosse a melhor forma de lutar pelos direitos dos negros. A frase destacada faz um resgate histórico, remetendo à Frente Negra Brasileira, que, em 1936, transformou-se em agremiação política, sendo colocada na ilegalidade logo depois durante o período ditatorial de Vargas, junto com os demais partidos políticos.

Os personagens da narrativa tentam se organizar em busca de soluções para os problemas, pois desacreditam na política tradicional que, apesar de transmitir a idéia de luta pelo bem comum e pela justiça, funciona como forma de poder e dominação das elites. Assim, eles contrapõem a política representada pelo Deputado, “roedor branco”, que distribui brinquedos nas favelas, às “lutas radicais libertadoras de povos”, representadas por Zumbi, líder dos negros escravizados no Brasil, e de Chaka, líder africano - que enfrentou o imperialismo na guerra dos zulus. A atitude do Deputado aponta para o artifício recorrente entre os políticos de, nas vésperas das eleições, aproximarem-se dos pobres para angariar votos. É possível fazer uma relação dessa passagem do texto com a letra da música, “Candidato caô caô” , de Walter Meninão e Pedro Butina, interpretada pelo grupo O Rappa: “Meu irmão se liga no que eu vou lhe dizer/ hoje ele pede seu voto,/ amanhã manda a polícia lhe bater/ meu irmão se liga no que eu vou lhe dizer/ hoje ele pede seu voto,/ amanhã manda a polícia lhe prender [...]”.

Emerge da narrativa a necessidade de uma militância negra que afirme as origens e os valores dos afro-descendentes, enfatizando a luta no nível étnico e não de classes - uma vez que há preconceito de cor dentro de uma mesma camada social, como se observa na discussão entre os personagens Bélico Iorubano e velho Leônidas, em que este último conclui: “O claro homem pobre terá orgulho dentro da cabeça. Orgulho de casta”. (BARBOSA, 1987, p. 39). Assim, os resquícios da mentalidade senhorial e escravocrata fazem com que dois indivíduos de uma mesma classe apartem-se, pois, o branco, equivocadamente, terá o sentimento de superioridade e de possuir maiores direitos como cidadão do que o negro.

Em Paixões crioulas, Márcio Barbosa segue a concepção de escritura do oprimido, definida em seu artigo “Questões sobre literatura negra” como uma literatura marginal, voltada para uma formação social e política dos excluídos:

Como a existência da literatura negra pressupõe também sua existência como agente social, vemos que sua ineficácia, sua falta de resultados práticos indica sua total inexistência enquanto literatura negra. Essa é a sua grande tarefa histórica: realizar-se no social como agente efetivo e como agente social deve estar comprometida com o seu presente político. Sendo expressão da própria interioridade do negro, a literatura coloca-se como um fim a realizar-se através de si mesma. A afirmação do oprimido e, portanto, o primeiro passo para a mudança do social. (BARBOSA, 1985, p. 54).

A literatura negra preconizada por Márcio Barbosa, portanto, tem, principalmente, a função de agente social. Esse fazer literário que não se limita a produzir a arte pela arte, mas que busca registrar uma determinada época e contribuir com palavras e símbolos para a transformação política e social, é definida por Sevcenko (1995) como sendo uma literatura messiânica. Ou seja, uma escrita que se constrói como arte crítica e perturbadora, visando atingir um determinado leitor, a fim de influenciar o seu posicionamento político e social. Através dessa concepção, fica evidente que Márcio Barbosa escreve para um público afro-descendente. Sua narrativa é fragmentada - representando a memória dilacerada do negro - e, ao contrário do personagem burguês, sempre bem definido, remetendo ao individualismo do ser, o texto traz vários personagens, vítimas da violência ou do preconceito racial, remetendo ao coletivo. Já a linguagem, simples, quase coloquial, ora traz inscrita a própria violência, causando um efeito impactante, ora ganha uma forte carga poética ao inscrever traços culturais afro-brasileiros.

O autor transita entre o realismo e a fantasia, pois retrata a violência e preconceito racial, mas também, flerta com o fantástico kafkiano. Exemplo disso se observa na passagem em que o homem que insulta Pacífico, chamando-o de macaco, ao voltar para casa, começa a sofrer uma metamorfose: primeiro, constata que em sua pele cresciam pingos pretos, segundo começa a ouvir ruídos de um animal dentro do armário, de onde, em seguida, saem vários macacos.

Ocorre ainda a valorização da figura do negro e de sua origem africana, como se percebe nos capítulos em que Exu aparece em outra dimensão, como ser limiar e onipresente, entre o céu e a terra, entre os deuses e os mortais, observando os jovens e fazendo parte de seus sonhos. Exu assume a função de força geradora: “Muitos tinham seus próprios traços, como se fossem descendentes, como se tivessem saído do sêmen para a fenda torrencial dos milênios”. (BARBOSA, 1987, p. 69). Ele é, portanto, símbolo da ascendência e da força africana. Exu, ser de várias facetas, uno e ao mesmo tempo múltiplo, compartilha do sonho de integração, justiça e igualdade de todos os afro-descendentes. Mestre das encruzilhadas, das aberturas e conhecedor dos caminhos, aparece como símbolo do otimismo e da esperança: “e, ao olhar para trás, surpreendeu-se. Por onde passava, no chão ferido, seus rápidos pés deixavam largas marcas e abriam-se caminhos. Alegrou-se. Agora todos esses caminhos seriam seus”. (BARBOSA, 1987, p. 27). Exu estaria com os personagens na luta contra a exclusão, o preconceito e a violência, ajudando a abrir os caminhos e a superar os obstáculos.

Para o autor, uma das marcas centrais da literatura afro-brasileira é a volta ao interior, a tomada de consciência de ser negro. Ele afirma que o afro-descendente deve conhecer o passado e resgatar para si o sofrimento de seus ancestrais, submetidos à escravidão, a fim de afirmar sua identidade e construir a sua versão da História, a versão do oprimido. Na narrativa, Exu recupera o passado para mostrar que estava ao lado dos escravos, incentivando a não-submissão e impedindo a morte social do povo negro: “sim, estaria com os escravos contra o peso das amarras, contra o dilaceramento de corpos, contra esse apodrecimento de morte que os atingiria ainda vivos”. (BARBOSA, 1987, p. 69). E estaria, também, ao lado dos integrantes do movimento negro, pois “o tempo cada vez mais espremia-se entre a presentificação dos momentos passados e futuros”. (BARBOSA, 1987, p. 68). Assim, a literatura afro-brasileira objetiva trabalhar na condição de ser e de afirmar-se negro em relação ao seu passado e presente:

Ao fazer literatura, o oprimido sofre uma imposição da História que lhe determina um tempo mítico específico. Como o oprimido ainda não deixou de sê-lo, a Cultura estigmatiza seu tempo mítico. Além disso, o tempo mítico deve satisfazer a duas necessidades básicas: ser anterior à diluição da cultura do povo oprimido na cultura do povo opressor e constatar e afirmar a existência de desigualdades radicais entre o opressor e oprimido. (BARBOSA, 1985, p. 53).

Ao escrever, portanto, o autor afro-descendente recupera a cultura africana apagada pela hegemonia instituída e resgata a memória de seu povo, com destaque para o maior exemplo histórico de injustiça entre o negro e o branco. A volta ao passado deve ajudar a compreender as desigualdades do presente e servir referência para que ele continue a lutar contra a opressão, construindo sua história presente. Ao final de Paixões crioulas, os personagens compartilham do mesmo sonho: a unificação do povo negro e sua ativa participação em prol de um novo lugar na sociedade. Essa luta estaria fortalecida na negritude: consciência de ser negro, de ter uma memória diferenciada, e na necessidade de fazer uma releitura da História, evitando que se reproduzam a violência, a pobreza e a desigualdade do passado.

Referências

“Questões sobre literatura negra”. In: Vários Autores, Reflexões sobre a literatura afro-brasileira. São Paulo: Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, 1985.

BARBOSA, Márcio (Org.). Frente Negra Brasileira: depoimentos. São Paulo: Quilombhoje, 1998.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1995.

* Graduada em Letras pela UFMG

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