A resistência dos quilombos na poesia de José Carlos Limeira

 

Zoraide Portela Silva*

 

O processo de construção de identidades grupais envolve a atividade cuidadosa de elaborar versões de acontecimentos, criar biografias de personagens, histórias símbolos que sustentam o edifício identitário, um trabalho meticuloso de pesquisa e de seleção dos aspectos que irão compor o desenho no qual o grupo se reconhecerá. Assim, os afrodescendentes têm suas identidades construídas de acordo com o modo através do qual se vinculam a um discurso – no seu próprio discurso e nos discursos dos outros. Nesse sentido, é salutar o discurso poético que tem como papel quebrar uma uniformidade do desenho identitário, apresentando a diferença cultural não substitutiva do discurso dominante, mas como forma de rearticular a soma do conhecimento a partir da singularidade significante do “outro” que resiste à “totalização”. Consciente da importância desse discurso numa sociedade hegemônica, o poeta, como reconstrutor dessa identidade, propõe-se a remexer os vários arquivos da memória. (SOUZA, 2002, p. 99)

Assim é que a atividade poética de José Carlos Limeira se propõe a lembrar as tradições preservadas pelos descendentes dos antigos escravos, uma vez que “lembrar não é reviver, mas re-fazer” (BOSI, 1987, p. 20). Nesse sentido, a poética limeiriana reconstrói perfis identitários, dando voz ao outro. E esse outro são todos aqueles que estiveram fora da história oficial, silenciados pelo conceito etnocêntrico de verdade. Para tanto, o poeta privilegia alguns aspectos em seu discurso. Neste texto, abordaremos a resistência dos quilombos sem a pretensão de uma exposição exaustiva.

A obra poética de José Carlos Limeira revela a preocupação em registrar e analisar o universo cultural afro-brasileiro construído como consequência das carências e necessidades de reunião que determinado grupo tem para dar resposta coletiva às injunções de seus contatos sociais. Para o poeta, seria impossível não fazer a crítica social e política em sua obra. Em depoimento, ele reconhece:

(...) minha inconformidade eu tenho registrado também através da poesia. Com a arma do verso tento expressar desencantos, as minhas angústias e fazer minhas denúncias contra o estado de coisas que eu vejo e constato. (LIMEIRA, apud, COSTA, 1982, p. 74)

Nas palavras do poeta, há o reconhecimento de que a poesia é a marca de sua experiência e também da sua condição, processo de construção de um ethos, de instrumentos de pertencimento e autorreconhecimento cultural, mas há também, e fundamentalmente, um questionamento de identidades construídas à revelia dos agentes, por grupos que não lhes dizem respeito. Consciente de que o negro continua à margem da sociedade, embora lutando para se fazer sujeito da história, o poeta constrói um discurso que subverte a ordem vigente; reivindica para si um estatuto autônomo no campo instituído, questionando as injustiças sociais, orgulhando-se da sua condição de negro, manifestando sonhos e crenças, e focalizando o passado histórico, a ancestralidade, a memória coletiva, a tradição religiosa e o lugar da mulher negra.

Historicamente, os quilombos, ao lado do candomblé, representaram uma forma de resistência. Os negros, ante a situação da escravidão, organizaram-se para fugir das senzalas e das plantações, criaram os quilombos imitando o modelo Bantu africano dos séculos XVI e XVII, transformaram esses territórios em uma espécie de campos de iniciação à resistência, abertos a todos os oprimidos da sociedade (negros, índios e brancos), prefigurando, assim, um modelo de democracia plurirracial que o Brasil está ainda a buscar. O antropólogo Kabengele Munanga faz correlações entre o quilombo africano e o brasileiro:

Pelo conteúdo, o quilombo brasileiro é, sem duvida, uma cópia do quilombo africano, reconstruído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela implantação de uma outra estrutura política na qual se encontraram todos os oprimidos. (MUNANGA, 1996, p.60)

Segundo Marcos Cardoso, para o Movimento Negro surgido nos anos 70 do século vinte, “quilombo e resistência ocupam um lugar de centralidade dentro da perspectiva de construção de uma revisão crítica da historiografia oficial. Tanto quilombo quanto resistência podem tornar-se conceitos, com vistas a contribuir para as análises teóricas que buscam fundamentar uma ‘nova’ História do Brasil” (CARDOSO, 2002, p. 62). Para o autor, nas décadas de 70 e 80 do século vinte, os conceitos de quilombo e resistência são recolocados no contexto das lutas da população brasileira de origem africana, no esforço de resgatar o papel do sujeito na formação social brasileira.

Na poesia de José Carlos Limeira, percebemos uma sintonia com a poesia contestatória e palmarina de Solano Trindade. Tal sintonia implica captar as mais sutis estratégias de luta e resistência histórica do afrodescendente no Brasil. Os quilombos que, enquanto história, mal aparecem em nossos livros didáticos, deixaram de ser considerados “apenas como um fenômeno do passado: estão em toda parte e têm direito ao futuro” (RATTS, 2000, p. 322). O poeta José Carlos Limeira retomou a luta dos quilombos para a libertação do Brasil da época pela via literária. É o quilombo um dos “lugares de memória”, segundo a expressão de Pierre Nora (1993), para quem os “lugares de memória são, antes de tudo, os restos”, restos que têm de ser arquivados, materializados a serviço de uma história que marca o luto da “memória viva”.

Assim, questões ligadas à consciência negra adentram o espaço poético, como no poema “Maio”:

Quero ver colares, gritos, danças
e assumir como vestido agora
o manto brilhante do que vem,
o ato, o desacato, a consciência
e descobrir depois de tudo a luta pela
felicidade interior de ser negro.
(O Arco-íris negro, p. 41)

O maio do poema não seria o da princesa Isabel, mas o outro, mais realista e menos oficial, uma vez que o 13 de maio, apesar de acabar formalmente com a escravatura no Brasil, não criou nenhuma condição econômica, social ou cultural para a libertação efetiva da população negra e mestiça. O poema constrói-se com base nos acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade aos quais o poeta se sente pertencer. São, portanto, os elementos constitutivos da memória.

A propósito, lembra-nos Bosi:

O Treze de Maio não é uma data apenas, entre outras, número neutro, notação cronológica. É o momento crucial de um processo que avança em duas direções. Para fora: o homem negro é expulso de um Brasil moderno, cosmético, europeizado. Para dentro: o mesmo homem é tangido para os porões do capitalismo nacional, sórdido, brutesco (BOSI, 1992, p. 272).

O tema é retomado no poema “Treze”:

Para mostrar que somos
Livres, felizes, e aceitos
Tolas mentiras!
(...)
no verdadeiro canto (...)
Quero agora, no momento lúcido
gritar o necessário fato,
de que os treze ou treze,
não nos diz nada além,
do que vocês caros convivas
querem mostrar, encobrir, ostentar
Criaram fotos coloridas,
Comemorações festivas,
Toques de tambores e atabaques,
da ABOLIÇÃO que ainda não houve.
(O Arco-íris negro, p. 61)

No poema, a sofrida população negra recebe um chamado à consciência: “Criaram fotos coloridas, / Comemorações festivas / (...) Para mostrar que somos/ Livres, felizes e aceitos”. O poeta contesta as “tolas mentiras”, pois para ele a busca da liberdade genuína é constante e demanda a mobilização, como aquela experimentada pelo Movimento Negro no estabelecimento do 20 de novembro como data a ser comemorada pela população afro-brasileira em contraposição ao 13 de maio. Esse aspecto de denúncia se projeta na imagem dos últimos versos: “no verdadeiro canto/ de ABOLIÇÃO que ainda não houve”. Intensifica-se, assim, a reflexão sobre o ato da Abolição da escravatura, questionado com a argumentação de que não se deu no Brasil uma libertação de fato, uma vez que o cativeiro da injustiça social predomina, continuando a ser negado às populações de baixa renda, constituídas em avassaladora maioria por afro-brasileiros, o direito à ascensão social, à educação, à assistência médica, à participação integral no projeto de Nação.

Na poesia de José Carlos Limeira ocorre um fenômeno de projeção ou de identificação tão forte com determinado passado que nos leva a falar de uma memória herdada: acontecimentos que marcaram o grupo e que são transmitidos ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação.

O poema “Zumbi...dos” imprime, com nitidez, uma supervalorização da memória, revelada nesse arquivo de representações de uma leitura de rastros e imagens de cultura e da história do povo afro-brasileiro, situando-se no espaço de memórias coletivas e individuais, tecendo uma homenagem aos ícones das lutas dos negros pela igualdade racial, como Ganga Zumba e Malcom X:

Daqui de onde estou,
Ouço os primeiros ruídos.
Abafados, subterrâneos,
Como os sussurros cuidadosos,
Por meus avós também ouvidos.
Da nova gente que surge,
Com a coragem da herança,
Legadas por Zumbi
(...)
E das falas virão os gritos,
Não de dor, mas de vitória,
Como são vitoriosos os sussurros,
De nossa gente agora,
Pois estão acordados,
Para dizer,
Com a força de Ganga Zumba
E a altivez de X:
Que somos!
Faremos!
Bem alto!
Como as torres de Palmares.
(O Arco-íris negro, p. 64)

Nos versos acima, o poeta se compraz num jogo de palavras explorando som/significado, rememorando o episódio das lutas de Palmares e da morte de Zumbi como o instrumento mais mobilizado com vistas à elaboração de uma subjetividade para os indivíduos da raça negra. A ascensão de Zumbi, como líder maior dos quilombos de Palmares, é descrita pelo poeta. Ganza Zumba, o outro líder, nasceu em Palmares. Nestes versos, a consciência poética da luta dos negros se constrói mais fortemente em: “Faremos!/ Bem alto!/ Como as torres de Palmares”.O poeta nos leva ao cenário do alto da serra da Barriga e convida-nos a participar da experiência coletiva dos quilombos – uma das formas mais ricas de organização e luta do povo negro brasileiro. Essa luta, em Palmares, de resistência à escravidão, é também “a forma de dar testemunho de solidariedade e de respeito à memória daqueles que tombaram heroicamente – como Zumbi” – e todos aqueles heróis anônimos que contribuíram e muito para a luta organizada e coletiva. Não devemos nos esquecer também, conforme nos adverte Benjamim (1987, p. 226), que o passado emerge em forma de ruínas, em que a memória se torna uma estratégia para sobreviver ao momento dionisíaco de desintegração, de des-membramento, já que a rememoração possibilitaria um re-membramento. Em verdade, a legitimidade histórica dessa memória é a condição de possibilidade para a fundação e sustentação do discurso de afirmação do negro no Brasil.

Insere-se nessa linha o poema "Quilombos", publicado no livro Atabaques, em 1979. Época de ressurgimento da literatura negra e do movimento negro, cujos participantes, entre eles o poeta José Carlos Limeira, motivados pelo desejo de contribuírem para a desalienação, passam a lutar por mais espaços de atuação, reivindicando, entre outras coisas, o reconhecimento do negro na sociedade brasileira. No texto abaixo, estruturado em seis subtítulos que totalizam vinte e seis estrofes, o poeta rememora a história do povo negro pelo viés dos quilombos, enfatizando os conflitos e as tensões:

Memórias I

queria ver você negro
negro queria te ver
se Palmares ainda vivesse
em Palmares queria viver. 

O gosto da liberdade
Sentido
Cravado
No peito
Correr,
Sentir os campos
ter
a vida.
(Atabaques, p. 19-24)

Situados em dois planos, passado e presente, os versos acima traduzem o desejo do sujeito poético de rememorar “Palmares” como marco exemplar para a luta dos negros brasileiros depois da Abolição. O emprego do verbo querer no futuro do pretérito do indicativo, expressando circunstância de condição, indica um processo de difícil concretização, ou seja, a possibilidade de ver o negro apoderando-se do sistema de produção de imagens e significações, revertendo sentidos e explorando todas as possibilidades e conexões surgidas das similaridades e diferenças encontradas em seus contatos com a cultura ocidental. No terceiro verso, logo após a conjunção condicional se, há apresentação de “Palmares” como forma de concretização do desejo expresso no primeiro verso.

Ao metaforizar Palmares como lugar do negro, o sujeito poético confere ao Quilombo a possibilidade de projeto coletivo, onde a individualidade se dilui no social e onde o grupo dispõe das suas insígnias, da sua identidade. Souza (2001, p. 60) observa que, no que tange à questão do negro no Brasil, o episódio das lutas de Palmares, da vida e morte de Zumbi pode ser focalizado como “termos indiciais da dêixis fundadora da afirmação do negro como sujeito”. O episódio de Palmares faz parte do discurso da história da resistência do povo negro. Assim, no poema, o passado se presentifica e ganha importância na metáfora de Palmares como espaço de resistência, de decisão e de heroísmo.

À memória segue o sonho, nos versos seguintes. Neles, o sujeito poético exprime desejos e angústias através de um discurso polissêmico que transmite a ideia do drama negro coletivo e histórico, contestando a imagem divulgada do negro submisso e combatendo a falsa aparência “convencional” da sociedade dita “cordial”. O poeta vai mais longe; toca fundo na indiferença e no silenciamento da produção textual negra. Cumpre, assim, o objetivo da poética afro-brasileira: a busca de uma reterritorialização da linguagem literária que “veste a armadura da minha realidade”.

Meu Sonho

Meu sonho não é convencional
nem colorido
não me leva a Londres,
Paris,
Roma,
Nova Yorque,
não, meu sonho é rude, cru,
veste a armadura da minha realidade
verdade
me carrega suado,
para biafras,
chiles,
brasis.

 

Sonhos I

O rei de Portugal
mandou ao meu povo matar
se Palmares ainda vivesse
em Palmares queria estar

 

Sonhos II

Te vejo meu povo feliz
Teu sonho querendo sentir
Se Palmares ainda vivesse
Pra Palmares teria que ir

Palmares, espécie de Pasárgada do povo negro, possibilita a viagem à experiência histórica dos Quilombos, metáfora de território cuja imagem representa o espaço étnico que remete à integração social e coletiva do povo negro. A memória, considerada épica por Walter Benjamin, tem o poder de favorecer a apropriação e a compreensão dos acontecimentos quando eles se “desvanecem pelo poder da morte” (BENJAMIN, 1985, p. 73) e possibilita ao poeta celebrar os feitos antigos, e atualizá-los, realinhando fragmentos de vida num compósito de tempo em que o homem se vê uno, embora múltiplo. É o que se verifica em alguns versos finais do poema "Quilombos", que aqui transcrevemos:

O ódio do feitor
É pegajoso, fecundo
Ele pode emprenhar
Ate as mentes mais estéreis
Com seu pênis de chicote

Quilombos (...)
Meus sonhos
Sofro de uma insônia eterna
De viver vocês
Vivo na certeza
De renascê-los
Amanhã.

Intituladas “Notícias”, as estrofes 25 e 26 anunciam a reconstrução de Palmares na sociedade contemporânea. No verso “por menos que conte a história”, há denúncia do que foi ocultado pela “história oficial”, uma vez que, na sociedade brasileira, definida pelas formas hierárquicas e autoritárias, o negro teve de pagar por ter se libertado dos antigos senhores e não ter sido assumido pelo capitalismo emergente. Vitimado pela pobreza e preconceito, visto como selvagem e dotado de raciocínio curto, a sociedade não integrou o negro, limitando-o a ocupações degradantes e mal remuneradas, deixando-o à margem de seus projetos ou permitindo-lhe apenas figurar neles enquanto força de trabalho que sustentava a mesma ordem que o excluía.

Os versos “se Palmares não vive mais / faremos Palmares de novo” anunciam a chegada de um espaço-tempo da negritude, inscrito na metáfora do quilombo, pasárgada do poeta, cujo discurso interpreta, de maneira específica, o mundo social e a inserção dos negros nele.

Ao comentar a poesia afro-baiana, Michel Agier considera o texto poético “uma tomada da palavra enquanto negro”, do grito e do protesto, a qual é expressa na sua maior visibilidade e se opõe, por suas ênfases, ao silêncio confuso das práticas sociais. Nesse sentido, o poema “Quilombo” revela o preconceito, a discriminação e desvalorização do negro, mas também torna possível uma reconstrução positiva da identidade negra, uma vez que a poesia se constitui em espaço de reivindicação de uma cidadania alcançada a partir de referenciais simbólicos. Se a figura do quilombo é uma imagem coletiva, mítica, de um espaço étnico, o texto poético se constitui num momento decisivo da passagem do individual ao coletivo, ou seja, integração individual à coletividade metafórica do quilombo.

No poema, ressalta-se, ainda, o despontar de um sujeito poético, assumindo, como um mágico da linguagem, a tentativa de realizar um grande avanço político e social que sempre esteve presente em todos os quilombos (“Cumbe na Paraíba/ Alagoas, Macaco e Subupira/”), desdobrando-se nas comunidades negras contemporâneas, associando-os a “lugares-memória” do negro, como, por exemplo: “Mangueira, São Carlos / Portela na Avenida / são quantos? .../ Tabocas / Amaro / Borel / Turano / Salgueiro”. Nesse sentido, o poeta os considera espaços de construção e realização de uma etnicidade, inscrita no seu texto, que vai encher de significado a palavra “negro”, desviando o seu antigo estereótipo negativo e invertido em valor positivo.

Torna-se imprescindível, para uma compreensão da poética limeiriana, que o leitor reconheça que a preservação dos vestígios do passado está relacionada com o sentimento de reconhecimento e pertencimento, com a identidade social. Evidentemente, as transformações históricas concretas, isto é, as experiências sociais posteriores, vivenciadas pelos sujeitos históricos, atuam sobre os referenciais que vinculam esses sujeitos ao passado, reconstruindo as identidades.

Segundo Moema Parente Augel, a figura de Zumbi, o grande guerreiro e chefe supremo nas últimas décadas de Palmares, está presente na música popular brasileira, nas cantigas de capoeira, nos folguedos populares e no folclore e não podia faltar na literatura afro-brasileira. Moema Parente lembra que:

a afirmação identitária do afro-brasileiro é justamente a heroicização dos antepassados e a exaltação dos movimentos que se opuseram ao cativeiro: as revoltas armadas e sobretudo os quilombos, (...) buscando-se um resgate do papel desempenhado por essas ilhas de resistência. Não só a conclamação à revolta, mas sobretudo o reconhecimento de figuras-chaves que fortalecem uma autoimagem positiva ajuda a manter bem alto o orgulho e se envolve numa enorme força lírica (AUGEL, 2000, p. 123).

O percurso seguido pelo poeta José Carlos Limeira parece nos indicar que a memória pode ser entendida como a reatualização de acontecimentos e práticas passadas em momentos presentes, sob diferentes modos de textualização, na história de uma formação ou grupo social. A rememoração – ainda que parcial e seletiva – das experiências das comunidades negras no Brasil também se concretiza na consideração pelo significado histórico e cultural.

Sua escrita é uma rede grandemente marcada por figuras simbólicas espalhadas pelos textos, emprestando-lhes vigor. Nos versos de “Meu Sonho não faz silêncio”, o poeta manifesta uma certeza, na figura de Zumbi que representa um sonho que “jamais faz silêncio” / E não é apenas promessa”. Para o poeta, esse sonho, caracterizado como uma luta, pode ser revitalizado não somente como fato histórico, mas também revelando que o “Quilombo” é um espaço de construção e realização de uma etnicidade. (concebemos a etnicidade nos termos propostos por Jéferson Bacelar, que a define para além da concepção meramente biológica de raça, inserindo-a no contexto cultural. Para ele, ao tratarmos de grupo e indivíduos devemos deixar implícita a noção de cultura como sistema de significação, “um jogo de interpretações contextualizadas que atravessam nossas vidas. Desta forma, a etnicidade apresenta-se como uma forma de construção social, um marco de classificação operando por meio de uma lógica de diferença/ semelhança. Entretanto, esta dupla possibilidade não se mantém estanque, do ponto de vista dos indivíduos, sendo sempre marcada por alternativas ou probabilidades – maiores ou menores – de superação ou reconstrução da especifica distinção social, ou porque já não dizer, etnia” (BACELAR, 1989, p. 11-12. Ainda sobre o conceito de etnicidade, cf. também Roberto Cardoso de Oliveira, Identidades, Etnia e Estrutura Social. São Paulo: Pioneira, 1976). O poeta escreve:

(...)
Meu sonho jamais faz silêncio
É a lança brilhante de Zumbi
(...)
Meu sonho não faz silêncio
E não é apenas promessa

Planta em mim mesmo, na alma
Palmares, Palmares, Palmares
Pelo que de belo, pelo que de farto
Muitos Palmares
(...)
Ergue Quilombos, aqui, ali
Em cada mente, em cada face
Impávidos como Palmares, impávidos Ilês
Em todos os lugares
(Negras intenções, 2003, p. 65-67)

A experiência histórica dos Quilombos (principalmente o de Palmares) se transformou numa metáfora de território, que transforma a cor da pele num significado político e étnico. Nos versos acima, o poeta considera-se o quilombola de hoje; ele “Ergue Quilombos aqui e ali / Em todos os lugares”, recompondo seus territórios, espaços como símbolo para a questão do resgate da identidade da população negra, identidade esta pensada a partir da luta, da resistência, experimentada, pela primeira vez no Brasil, em Palmares. E que esta força que vem de “Palmares, Palmares, Palmares” representa para as “vozes das margens”, a afirmação e “a produção de novas identidades”. (HALL, 2003, p. 338).

 

* Professora de Literatura da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutora em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

Referências

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BENJAMIM. Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas Vol I. São Paulo: Brasiliense, 1987.

______. Rua de mão única: obras escolhidas II. Trad. Paulo Sergio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2000.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Edusp, 1987.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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HALL. Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

LIMA, Luciano Rodrigues. Poesia negra contemporânea: o redescobrimento do Brasil. Discurso poético, consciência e atitude. Salvador, texto digitado.

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