A poética (afro) de Jônatas Conceição

 

Luiz Henrique S.Oliveira*

A escrita de Jônatas Conceição está calcada basicamente na tensão entre memória e história. O autor, em sua apresentação em certa edição de Cadernos Negros, reflete sobre essa tensão: “creio firmemente que o povo brasileiro possui um sistema filosófico de vida fortemente estruturado e que nesses quase 500 anos de Brasil a mentalidade ora colonialista, ora imperialista e burguesa tenta destruir através de diversos agentes, esse sistema. Ser escritor no Brasil é entender este sistema e se aliar a ele”. A excelente versatilidade na manipulação do código escrito faz com que o autor trilhe, com a mesma pujança, os caminhos da poesia e da prosa.

A representação da memória afro-brasileira é levada ao cabo pela via coletiva, figurada na personagem Lalá que acaba por assumir a vocação de pedagoga (aquela que conduz). Os afro-brasileiros, em certo sentido, “civilizaram” o homem branco, já que, durante a escravidão os negros trouxeram consigo a técnica adquirida durante o acúmulo dos anos de Mãe África. O branco, por sua vez, apropria-se duplamente do negro: fisicamente e culturalmente (embora não admita). Veja “Estampas de saubara”: “lá no pôr-do-sol do Recôncavo/ Lalá nasceu e criou-se/ Cresceu entre santos e virgens/ e ensinou a todos o bom/ da outra vida”. Em ”Zumbi é senhor dos caminhos” nota-se a rememoração da figura que conduz(iu) todo um povo cuja memória está ligada intimamente à resistência. A retidão de caráter de Zumbi e o amor à raça, associadas ao desejo eterno de liberdade ainda são ensinamentos obrigatórios – quase uma oração já que espelho para os vindouros. Vejamos o fragmento no qual o eu lírico reaviva os preceitos do herói palmarino: “resgatar tua presença/ tua firmeza de propósito/ de amor e liberdade/ pela raça” (Cadernos Negros 9, p. 76).

O irrestrito Jônatas Conceição usa uma linguagem simples, mas não rasa em significado. Ao contrário, há uma aparente redundância semântica entre os versos e um amalgamento de interpretações, o que faz com que o leitor ative “redes” de conhecimentos prévios para construir interpretações. As “Saubaras invisíveis” ilustram por si mesmas: “chega-se a saubara pelo caminho do mar/ (...) Chega-se a saubara por via de muitos rios/ (...) Chega-se, finalmente, a saubara pelo primado da fé”. (Cadernos Negros: os melhores poemas, p. 80)

Não obstante, o passado é sempre tema recorrente na voz melancólica – mas nem por isso saudosista – do eu poético. Em “Naquele tempo tinha bonde”, o eu poético utiliza-se da recordação e da metáfora do bonde para reviver o passado, a chegada do desenvolvimento econômico e do progresso citadino e a dúvida em relação ao porvir: “no devagar do bonde/ no divagar de nossa vida” (Cadernos Negros 9, p. 73).

 

O “Poema da maioridade” relata a chegada do eu poético a São Paulo, fato que o faz “maior” enquanto dono de si, senhor do seu destino. O passado também se faz ativo uma vez que o poema retoma um fato não corriqueiro durante o processo de implantação e consolidação industrial brasileiro: o êxodo rural. O poeta assume a voz do retirante que sofrerá incontáveis expiações: “cheguei em São Paulo às 15 horas/ Era noite/ Mas um sol ardia em meu peito/ anunciando auroras incandescentes” (Cadernos Negros 9, p. 71,72).

Quanto à prosa, Jônatas possui vasta produção ficcional e não ficcional. Seu conto “Margens mortas”, por exemplo, retrata o conflito do protagonista (Lindoso Cardoso) consigo mesmo, isto é, com a sua realidade - já que “vivia em amargores e perjurando contra sua mulher e suas filhas”. O protagonista, enquanto sua mulher e suas filhas vão à missa, trama (como) envenená-las; decide contaminar a panela de comida com veneno. Entretanto, acaba sucumbindo à sua terrível fome e vira vítima de sua própria mácula. O mais interessante não é o enredo em si mas a maestria do/no narrar; o detalhamento de características psicológicas e do ambiente, do tipo de vida da personalidade humana.(Cadernos negros).

Portanto, Jônatas Conceição pode ser considerado como um dos maiores poetas de nossa geração. Mesmo instituído dentro do universo das alteridades – por questões extra textuais – é de absoluta certeza que será apreciado – muito devido à sua captação da realidade e do passado como matéria literária. Leitura imperdível!

* Mestrando em Teoria da Literatura pela UFMG.

Referências

QUILOMBHOJE (Org.) Cadernos Negros 9. São Paulo, Quilombhoje, 1986.

QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos Negros: os melhores poemas. São Paulo: Quilombhoje, 1998.

 

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