Tradição e consciência negra

 

Eduarda Rodrigues Costa*

Poeta de grande expressividade na literatura afro-brasileira, Jamu Minka apresenta uma escrita marcada pelo engajamento político, pelo combate às desigualdades sociais e pelo empenho na afirmação de uma identidade negra. Segundo ele, um dos pontos fundamentais para que se estabeleça uma consciência negra é a “exaltação dos valores africanos ou africanizados”, possibilitando o resgate de uma herança cultural por parte da população afro-descendente, que traz consigo as frustrações geradas pelo preconceito de cor. Para o poeta, a literatura tem uma responsabilidade política e humanizadora:

 

“Um dia vi um amigo poeta se lamentar com todas as teclas: pena que a literatura não enche barriga! Mas a certeza minha é que lava a alma, nossas almas branquissujas na ganância imposta. E, para não cair no visgo da consciência vesga, eu não me iludo; sei que nem sempre negro é beleza pura porque o egoísmo também se veste de pele escura. Se assim não fosse seria tão simples que a justiça não exigiria compartilhar suor, amor e dor, seria apenas uma questão de cor. (Cadernos negros 7, p. 65)

 

A reflexão acerca do “existir negro” é uma constante em seus poemas. Em “Identidade” o eu-lírico passa por um processo de aceitação de sua especificidade negra a partir da conscientização de que sua diferença não pressupunha uma inferioridade:

 

(...)

Encontrei uma bandeira

Negritude!

Identidade rasgatada

Ser negro é importante

É se identificar com minhas raízes.

(Cadernos negros 1, p. 35)

 

 

No poema acima percebe-se que a herança africana é um elemento rasurado que, ao ser resgatado, permite a identificação do eu-lírico com suas raízes culturais. A questão da (não)identificação reaparece no poema “Racismo cordial / 2” através da crítica ao negro que se envergonha de sua cor, que tenta branquear-se:

 

A negromestiça que não se gosta

se gasta em ânsias

alisamentos

talvez na infância

só boneca branca

 

Negros que se negam

anestesia nos nervos

Brasil banal

 

Mestiço que se mente

disfarça a tez

desfaçatez com o escuro primordial.

(Cadernos negros 19, p. 81)

 

O poema denuncia a utilização do brinquedo como instrumento de dominação ideológica, pois a criança é condicionada a aceitar os produtos oferecidos pelo mercado, que, indiretamente, impõem um padrão de beleza distante daquele que o indivíduo afro-descendente encontra em sua realidade. A ditadura branca produz sujeitos negros que não se assumem, e mulatos que se fazem passar por brancos renegando sua condição étnica.

Em “Efeitos Colaterais” o eu-lírico aponta para o caráter enganoso do discurso que retrata o país como um “paraíso racial”. Desta forma critica a pretensa democracia racial brasileira ao falar da hegemonia cultural branca difundida pelos meios de comunicação.

 

Na propaganda enganosa

paraíso racial

hipocrisia faz mal

nosso futuro num saco

sem fundo

 

A gente vê tevê

e finge que não vê

a ditadura da brancura

 

Negros de alma negra se inscrevem naquilo que escrevem

mas o Brasil nega

negro que não se nega.

(Cadernos negros 19, p. 82).

 

O poema critica, ainda, aquele que se rende à ditadura branca, anulando-se em troca de uma mínima aceitação. Em contrapartida, os que afirmam sua identidade negra são menos admitidos na sociedade brasileira, pretensamente cordial e isenta de preconceitos.

Em “minha voz, minha vez”, a mesma mensagem é passada através da oposição entre o branco e o negro, a fim de denunciar a unilateralidade de direitos que impede os afro-descendentes de participar mais ativamente da sociedade. O poeta assume sua condição negra e expõe que a diferença étnica não justifica a imposição de uma cultura sobre a outra. Dessa forma, negros e brancos só poderão ser considerados “amigos” quando a opinião de ambos tiver equivalência perante a sociedade.

(...)

Eu negro

você branco

amigos

só se as opiniões tiverem peso igual

só quando deixar de exigir

minha adesão total

à sua lógica incompleta.

(...)

(Cadernos negros 1, p. 37)

 

No poema “Ontem, Hoje, Amanhã...?” é perceptível a presença de um eu-lírico que reflete sobre a condição subalterna de seus antepassados – “povo marcado para carregar nos ombros / o diabólico império dos cristãos senhores da guerra”, fazendo disso elixir para suscitar um novo olhar sobre o futuro.

 

(...)

nossos avós exilados

corpos violados

povo marcado para carregar nos ombros

o diabólico império dos cristãos senhores da guerra

dos que estão sempre sedentos de lucros

avós deste modelo falido que polui ameaçando a vida

acumula fortunas deixando bagaço para nós

 

nossos avós relembrados

elixir mágico bebido na fonte raiz ancestral

pra virar do avesso o passado

encarar de frente o futuro.

(Cadernos negros 5, p. 29)

 

 

O poema denuncia o modo violento com que os africanos foram escravizados e localiza no passado as raízes do caos social da atualidade. Porém, a mensagem não é somente de revolta e dor, mas também de coragem e de esperança de um futuro melhor proporcionado pela renovação da tradição afro-brasileira obtida a partir do resgate da memória ancestral.

Em alguns poemas Minka exalta a negritude através da referência aos heróis do passado que defenderam as questões do seu povo. No poema “zumbi”, o herói é considerado um exemplo de atitude a ser seguida.

Nos versos citados abaixo, por várias vezes o nome Zumbi pode ser substituído pelo termo negro, de modo que esse líder é elevado ao lugar de pai da comunidade afro-brasileira. A figura de Zumbi é retratada como um exemplo a ser seguido, cuja luta deve servir de espelho para a comunidade afro-descendente.

 

(...)

Meu avô sempre ensinava

Zumbi não espera

Zumbi faz

Zumbi luta.

(Cadernos negros 1, p. 39)

 

Em “Poeta Armado”, o ídolo Bob Marley é comparado a um griot por defender com sua música a não-aceitação das imposições do pensamento de superioridade racial do ocidente. Com o trocadilho “guerreiro amado/ poeta armado” nota-se que é com a força da palavra que se combate a desigualdade étnica e social:

 

(...)

Bob, Bob, Bob Marley

guerreiro amado

poeta armado de verdades cruas

recuperando orgulhos

(...)

(Cadernos negros 5, p. 33)

 

A partir da observação de alguns poemas de Jamu Minka é possível notar que o autor busca, sobretudo, a conscientização de que é preciso respeitar a diferença. Diante disso, a poesia pode funcionar como instrumento capaz de promover reflexões a respeito do status quo marcado por discriminação racial “disfarçada”. Nesse sentido, sua escrita desempenha um papel fundamentalmente político de reivindicação das diferenças.

* Graduada em Letras pela UFMG.

 

Referências

 

Cadernos negros 1. (Org. Cuti). São Paulo: Edição dos Autores, 1978.

Cadernos negros 5. (Org. Cuti). São Paulo: Edição dos Autores, 1984.

Cadernos negros 7. (Org. Quilombhoje). São Paulo: Edição dos Autores, 1984. (Org. Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1984.

Cadernos negros 19. (Org. Quilombhoje). São Paulo: Quilombhoje: Editora Anita, 996.

 

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