A mulher e o negro na poesia de Ivan Cupertino.
Danielle da Costa Rocha*
No atual momento em que vivemos, no qual identidades e identificações têm sido objeto de análise, encontramos nos estudos culturais a base teórica para tais discussões. A obra literária não é mais vista como uma arte sem raízes no social e, como conseqüência, a figura do autor passa a ter um papel importante em tais estudos. Este, a partir de seu ponto de vista, combate estereótipos e desmistifica verdades “absolutas” que eram propagadas sem serem questionadas. Portanto, esse viés da literatura, que tem como fundamento o gênero, a raça, as identidades ou identificações em geral, é importante uma vez que contribui a gerar reflexões. Faz-se, então, relevante uma leitura direcionada a tais obras, e tendo isso em mente foi que escolhemos as obras do poeta Ivan Cupertino para objeto de análise desse artigo.
Ivan Cupertino é um poeta mineiro que nasceu em Nova Lima no ano de 1963. Em suas obras Ave de Rapina (1985), Exercício de Existência (1988) e Feminino (1991), observamos que o autor aborda explicitamente problemáticas relacionadas a segmentos excluídos da sociedade. Encontramos em suas poesias um eu lírico preocupado não somente com delírios de amor, mas preocupado, também, em fazer de seus versos um canal direto, entre o poeta e o leitor, de levantamento de problemas e inquietações que têm como objetivo gerar reflexão.
A poesia produzida pelo autor tem como característica principal dar voz àqueles que não possuem condições de se fazer ouvir. Percebemos que o “outro” deixa não é mais um conceito teórico, e sim enunciador de sua história. Com esse novo papel, tal sujeito pensa em questões que dizem respeito a si e aos de seus pares. Os temas da mulher e do negro são freqüentes, evidenciando o ponto de vista do poeta, ou seja, marginal.
Por dar voz a esses dois segmentos excluídos, outro tema importante na produção poética de Ivan Cupertino é o tema do silêncio que cerceia tanto a mulher, quanto negro. O autor faz inversões de valores e de estereótipos, o que dialoga com o conceito de Barthes no qual diz que “em cada signo dorme um monstro: um estereótipo”. O próprio poeta expõe no prefácio de seu livro Exercício de Existência (1988) que “existe a intenção de levantar o problema, motivar questionamentos, criar simpatias e cumplicidades”. Fica evidente, portanto, que o ponto de vista dos poemas marca-se por um olhar periférico e afrodescendente.
Cupertino tem como tema a mulher e em alguns poemas a voz do eu – lírico expressa a solidariedade para com esta. Percebemos a exaltação da figura feminina e a quebra dos estereótipos que a configuram como simples objeto de desejo, como acontece no poema abaixo:
Mulher
(Ivan Cupertino:1988, 10)
Nesse texto notamos a exaltação da figura feminina, pois ela é o “sustentáculo e o molde para a construção do homem”. O poeta parece querer resgatar todo o valor do ser feminino que é perdido pelo falocentrismo que coloca a mulher sempre à margem. Em outro poema observamos a inversão do estereótipo que dá a mulher uma condição inferior:
Vânia
(Ivan Cupertino:1988, 9)
Observamos que o autor coloca o homem numa relação de complementaridade e aprimoramento frente à mulher. Esta passa a ter o papel de lapidar o homem, ou seja, trabalhá-lo para que este se torne “melhor, mais puro e mais bonito”. Fica evidente que Cupertino quebra todo um estigma de que o ser feminino é inferior e dependente, pois ele a exalta e destaca sua importância.
Em outros escritos, o eu poético possui uma voz feminina, vejamos:
Comunhão
(Ivan Cupertino: 1991,55)
Nesse poema, percebemos um eu lírico feminino referindo-se ao momento do ato sexual e elaborando, via linguagem, a desconstrução do imaginário romântico que envolve o relacionamento entre homem e mulher. A figura feminina não é mais aquela que desmaia, delira e suspira, há uma ruptura com a figuração em que a mulher é sempre seduzida e que não tem controle da situação. Nas duas primeiras estrofes percebemos um eu poético consciente e sujeito de si, ou seja, o ser feminino sabe que está e quer estar na situação de controle de si mesma. Porém, o tom do poema muda da segunda para terceira estrofe, pois quando o eu lírico coloca que a mulher torna-se uma lembrança e o homem presença viva no filho que espera, há uma crítica sendo feita ao sexo sem compromisso, que gera depois da saciedade carnal o abandono. Portanto, observa-se que o autor traz à tona, de forma poética, facetas do mundo real com o objetivo de causar reflexão no leitor.
Tanto quando trata da mulher enquanto tema, quando esta assume a voz do texto, percebemos a intenção do autor de romper com o estabelecido e relativizar algumas “verdades”. Porém, sabemos que “a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes...”(Hall: 2005,38). Ou seja, a identidade feminina, como todas as outras, é formada desde o nascimento de uma pessoa. Portanto, o ser e sentir-se mulher somente a figura feminina possui. Percebemos que o tratamento do universo da figura feminina, dado tanto pelo eu poético masculino, quanto pelo feminino, é marcado por uma sutileza em comparação quando se trata da temática negra. Observamos, portanto, uma mudança de tom ao tematizar a realidade do afrodescendente:
(Ivan Cupertino:1985,59)
Observamos no poema um olhar crítico que consegue ver que os negros, ainda, não foram totalmente libertos, que “há grilhões, chicotes e amarras” que os prendem e os castigam. Percebemos que o eu poético não apenas relata a história dos afrodescendentes como um observador que está de fora. Existe uma emoção e subjetividade emanada no coletivo. O autor se assume como negro, vincula sua história à dos antepassados e fala em primeira pessoa: "Somos negros".
Notamos uma mudança de postura de voz do eu lírico quando este fala da mulher ou se trasveste em voz feminina, em comparação a quando fala do negro. Por mais que os dois poemas citados (Comunhão e Grilhões III) sejam poemas-denúncia que falam sobre a realidade da mulher e do negro, percebemos uma clara mudança de posicionamento do eu poético. Pois, quando o poeta se propõe a escrever sobre o tema do negro sua poesia passa a não ser somente uma poesia de denúncia, mas de manifesto e resistência, ou seja, há uma forte subjetividade no poema, pois o autor é e se quer negro e traz consigo toda sua história, toda sua experiência de negritude, o que não acontece com os poemas onde há o eu lírico feminino. Percebemos, portanto, que a memória participa na formação da identidade do sujeito. A literatura de Cupertino é, então, uma literatura de negritude, no sentido de “indicar as manifestações ideológicas que dizem respeito a identidade do negro” (SWARTZ:1995, p.586).
O autor faz textos-denúncia que parecem mais gritos de revolta quando a temática é a do afrodescendente, e cabe ressaltar que o grito é ecoado de baixo para cima. A literatura por ele produzida é uma literatura afro-brasileira que busca resgatar a história de seus antepassados e de maneira crítica analisar a situação do negro na contemporaneidade. No poema abaixo, percebemos que Cupertino mais uma vez, se assume como negro tendo um posicionamento claro. O autor faz inversão de estereótipos, critica a exploração que os afrodescendentes ainda sofrem, e denuncia o pensamento existente de raça superior e inferior. Vejamos:
(Ivan Cupertino:1988,61/62)
O fragmento do poema consegue passar uma emotividade e revolta singular ao leitor porque o que é exposto é a experiência do poeta enquanto negro. Ao promover a valorização da beleza afrodescendente o eu lírico afirma que esta é objeto de inveja e cobiça por parte dos “homens de pele clara”. Como podemos perceber, o ser e sentir-se negro com todos os seus “problemas” estão presentes nesse texto. Quando Cupertino se propõe a escrever sobre o negro, do ponto de vista deste, fazendo as escolhas da linguagem ele se afirma e se quer afro-brasileiro.
Uma característica marcante da literatura afro-brasileira é a transformação da voz individual em voz coletiva que deseja apropriar-se das lembranças de um passado escravocrata como forma de conscientização e luta contra os preconceitos do presente. Esse traço percebemos na poesia de Ivan Cupertino quando trata da temática negra não somente na contemporaneidade. Ele resgata a história de seus antepassados com um olhar crítico e uma voz de denúncia. Percebemos também toda uma emotividade no resgate dessa história:
Grilhões II
(Ivan Cupertino: 1985, 58)
O autor resgata a história de seus antepassados com um tom de denúncia dos maus tratos e ao rebaixamento do ser humano a mera força de trabalho, uma peça da engrenagem produtiva, numa relação metonímica com a ferramenta. Notamos, em suas obras, vários poemas de resistência negra e de denúncia ao preconceito racial. “É a poesia buscando ser mais que motivos de delírio de amor e desejos” (CUPERTINO,Prefácio,1988).
O ponto de vista que observamos na obra do poeta é o daquele que está na base da pirâmide social. Como o autor trata de dois segmentos da sociedade que são freqüentemente excluídos - a mulher e o negro - o tema do silêncio é algo recorrente. É o que acontece em seu livro Feminino (1991), cujo assunto principal é a censura da voz, embora o título da obra nos faça pensar que seja o ser feminino. O autor parece querer definir o silêncio utilizando vários sentidos: ora este está ligado com a fuga (p.19), ora nem sempre é mudo (p.23), ora é tido como solidão (p.51), ora é um desejo de cio (p. 37) e, às vezes, é tido como afago (p.58).
Parece-nos claro que há uma relação entre os temas: mulher, negro e censura da voz, pois a tentativa de querer definir a não expressividade brota de alguém que certamente conviveu com a impossibilidade de ser ouvido por ser negro e que hoje dá voz, em seus textos, a esses dois segmentos da sociedade que ainda não conseguiram sair dos estigmas e nem se desvencilhar dos estereótipos sociais que os condenam à inferiorizarão. Da leitura do poema abaixo, podemos inferir que o silêncio condiciona a existência desses dois segmentos sociais:
Poema II
(Ivan Cupertino: 1991, 11)
Nesse texto, o autor relata a fragmentação do sujeito, composto por “vazios”, “lacunas”, “fragmentos”, e marcado pela eterna busca da realização de seus desejos. O eu poético parece querer desafiar o leitor a responder a pergunta “o que somos senão silêncio?” Os dois últimos versos do poema indicam que o eu-lírico refere-se àqueles que são vistos como exceção: “o que somos / senão senões” e desta perspectiva podemos reconhecer ali uma sutil voz marginalizada.
Percebe-se, portanto, que a poesia de Ivan Cupertino tem como característica principal "emanar ao silêncio a voz daqueles que não possuem condição de se fazer ouvir" (CUPERTINO, Prefácio, 1988). Como o ponto de vista é o fio condutor das escolhas da linguagem, percebemos através das análises que o autor se afirma como afro-brasileiro e coloca em suas obras toda sua experiência de negritude. Fica evidente que o ponto de vista do autor é o ponto de vista dos oprimidos. A cada poema percebemos levantamentos de problemas e questionamentos criando simpatias e cumplicidades entre o leitor e o poeta. Percorrer as páginas de suas obras é uma experiência que nos leva a pensar sobre nossas fendas: desigualdades e preconceitos que ainda estão presentes em nosso meio.
* Graduanda em Letras pela UFMG
Referências
BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix,
CUPERTINO, Ivan. Ave de Rapina. Nova Lima/MG: Ed. do Autor,1985. (poesias)
CUPERTINO, Ivan. Exercício de Existência. Nova Lima/MG: Ed. do Autor,1988. (poesias)
CUPERTINO, Ivan. Feminino. Belo Horizonte: Ed. do Autor,1991.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005.
SCHWARTZ, Jorge. Negrismo e negritude In: Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Iluminuras: FAPESP, 1995.p.579-590.