História de um pan-africanista
Rafaela Pereira*
Neste ano de 2014, comemora-se o centenário de alguém que dedicou sua vida à promoção da cultura afro-brasileira e à luta pela cidadania plena para a população afrodescendente. Em razão desta data, que merece não ser esquecida, nada mais justo do que destacar aqui Abdias Nascimento: o griot e as muralhas, biografia feita a quatro mãos, elaborada pelo poeta Éle Semog em coautoria com o biografado. Publicado em 2006, o livro destaca vários pontos da vida de Abdias, desde a infância até o período em que completa seus 90 anos.
Ainda jovem, Éle Semog passa a integrar o Movimento Negro, tornando-se um militante da luta antirracista e da oposição à ditadura militar, além de envolvimento em outras causas sociais. Como poeta, adere à noção de arte participante e funda os grupos “Garra Suburbana - Poesia e Teatro”, “Bate-Boca de Poesia” e “Negrícia - Poesia e Arte de Crioulo”. Logo toma conhecimento dos escritos e da atuação política de Abdias Nascimento, dando início a uma amizade que atravessa as décadas seguintes. A respeito de suas motivações para a escrita da biografia, ele revela:
Os casos fluíam, com grande riqueza de detalhes, por épocas que eu imaginava conturbadas em relação às questões raciais, mas eu não saberia descrever, ou mesmo compreender, a paixão e o calor daquelas lutas e vivências, não fosse pelo que há escrito nos livros, nem sempre tão emocionantes quanto a realidade. Como escritor, vislumbrei, de imediato, uma sequência de contos e crônicas elaborados a partir de um personagem central. Histórias de realismo fantástico, tal qual o racismo praticado hoje no Brasil. Mas era pouco. Por que não uma biografia? (SEMOG; NASCIMENTO, p.25)
A partir de muitos encontros e de uma sequência de depoimentos gravados, inclusive alguns concedidos ao Serviço Nacional do Teatro, Semog organiza esta biografia, que apresenta um vasto panorama da vida e da obra de um dos maiores intelectuais afro-brasileiros.
Político, ativista, professor, economista, poeta, artista plástico, ator e dramaturgo, fundador do Teatro Experimental do Negro, Abdias Nascimento nasceu na cidade de Franca, no interior de São Paulo. Neto de ex-escrava, filho de sapateiro e mãe cozinheira foi criado em um ambiente rural. Mesmo com as dificuldades daquela época, teve acesso à escola, onde começou a perceber e a questionar as manifestações racistas que vigoravam naquele ambiente em que estava crescendo. Um destes questionamentos foi quando percebeu que nunca era chamado para participar das peças de teatro na escola. Mesmo não atuando nas apresentações, ele prestava atenção nos roteiros e encenava-os ao seu modo em sua casa. E é neste período que começa a manifestar o seu interesse pelo teatro. À medida que ia crescendo, seus planos para o futuro cada vez mais se ampliavam. Desde cedo já mostrava ter um gênio forte e ser uma pessoa que não aceitava ser humilhado. Sua sede de conhecimento o impulsionou a sair de sua cidade e ir para São Paulo em busca de estudo e trabalho, passando então por inúmeras dificuldades. Na década de 1930, se alista no exército como voluntário, mas não segue a carreira militar. Neste período, começa a protestar contra a ditadura de Getúlio Vargas, e é preso pela primeira vez em 1937.
Após sair da prisão, organiza o Congresso Afro-Campineiro com um grupo de militantes negros. Mais tarde, torna-se integrante da Santa Hermandad Orquidea, grupo de poetas argentinos com quem viaja fazendo uma série de palestras com reflexões sobre a situação do negro no teatro. Ao assistir a uma apresentação de O Imperador Jones, de Eugene O’Neill, cujo protagonista era negro, fica profundamente incomodado com o fato do personagem ser interpretado por um branco pintado de preto. Não é de espantar o tamanho de sua indignação quanto a este ato racista tão comum naqueles tempos, e é em razão deste incômodo que começa a arquitetar vários projetos. Em 1941, quando encarcerado na Penitenciária de Carandiru, fundou o “Teatro do Sentenciado”, tendo como roteiristas e atores os próprios presos. Três anos depois, funda o “Teatro Experimental do Negro” – TEN –, onde se formou a primeira geração de atores negros no país. Com o seu olhar sagaz sobre a ausência de atuação afrodescendente nos palcos, Abdias sai da prisão decidido a levar o seu projeto adiante e busca apoio entre a intelectualidade negra do Rio de Janeiro e de São Paulo. De acordo com Semog:
Armado de sonhos forjados na nossa herança ancestral, atualizados por um ideário contundente e bem fundamentado, que não se dava ao luxo de pequenas utopias, o pessoal do TEN iniciou uma série de ações que extrapolavam a função teatral, para estabelecer novos paradigmas àquela massa de negros e negras, jovens em sua maioria, que eram mobilizados ou que aderiram à proposta. Não se buscava apenas um bom lugar dentro da sociedade racista. (SEMOG; NASCIMENTO, p. 141)
Além de ser uma escola de teatro, o TEN funcionava também como um espaço educativo, onde os participantes aprendiam a ler e a escrever, faziam cursos sobre temas voltados para a cultura afro-brasileira. Tinham assim oportunidade de ampliar a sua participação numa comunidade em que os preconceitos e a hostilidade predominavam. A estreia do TEN ocorreu em maio de 1945, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com a peça O Imperador Jones, apresentado pela primeira vez com um ator negro, o próprio Abdias. Além de importante ponto de partida, a encenação se constituiu em verdadeiro fato histórico, já que o referido espaço não era frequentado por negros, nem como expectadores e muito menos como atores.
No final da década de 40, Abdias funda e dirige o jornal Quilombo, que também se torna um órgão de divulgação do TEN. Atuando na política, no teatro e nas artes plásticas, ele segue com os seus projetos mas, com a deflagração do golpe militar de 1964, vê-se envolvido em vários inquéritos policiais e obrigado a deixar o país, exilando-se nos Estados Unidos. A viagem, que duraria apenas dois meses, resultou em uma estadia de 13 anos. Mas o exílio não o impediu de continuar os seus projetos. De certa forma foi até um fator positivo para que Abdias denunciasse para a comunidade externa a presença do racismo no Brasil. Aproveitou esta oportunidade para propagar as idéias pelo mundo afora, fazendo inúmeras conferências em universidades norte-americanas e africanas, principalmente na Universidade de Ile-Ife, na Nigéria; propagou também o seu discurso em países da América Central, como Jamaica e Costa Rica.
Após voltar do exílio, Abdias segue na carreira política, tornando-se um dos primeiros deputados federais a dedicar seu mandato à luta contra o racismo. Exerce inúmeras atividades e elabora propostas avançadas, entre elas a criação de programas voltados para a população afrodescendente, como as ações afirmativas, que possibilitassem à comunidade se inserir na sociedade de forma digna, inclusive como protagonistas, assumindo cargos e lideranças. Objetivos que Abdias levou até o final de sua vida, defendendo sempre a importância do negro na construção da riqueza cultural e intelectual no Brasil. Nessa linha, fez questão de explicitar os valores culturais de matriz africana, tão marcantes em suas obras, tanto literárias quanto nas artes plásticas.
Pois é este grande expoente da cultura afro-brasileira que Éle Semog presenteia ao leitor com uma história de quase 100 anos de determinação, do homem que se destacou entre os pensadores pan-africanistas do mundo e cujo trabalho político inaugurou um novo período de combate contra a discriminação e impulsionou a criação de políticas afirmativas para a construção de uma sociedade mais igualitária.
Referência
SEMOG, Éle, NASCIMENTO, Abdias. Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
* Rafaela Pereira é graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais.