Memória e história na poesia de Eduardo de Oliveira: reescrever-se no corpo do tempo em As gestas líricas da negritude

Giovanna Soalheiro Pinheiro*

É uma poesia que vem lá do fundo da alma negra, no que tem de mais

dilacerante, dorida e, antes de tudo, humana e emotiva.

Existem nestes cantos que parecem compostos para serem declamados

pelos troveiros e rapsodos populares da minha África, os griôs, que os recitavam ao som do balafon, para que a memória coletiva os fosse perpetuando pelos séculos afora.

Ironildes Rodrigues

Aquele que olha, da rua, através de uma janela aberta,

jamais vê tantas coisas como quem olha para uma janela fechada.

Nada existe mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso,

mais deslumbrante que uma janela iluminada por uma candeia. O que se

pode ver ao sol nunca é tão interessante como o que acontece por trás de

uma vidraça. Naquele quartinho negro ou luminoso a

vida palpita, a vida sonha, a vida sofre [...].

Charles Baudelaire.

Introdução

Observar, simbolicamente, a vida a partir de um “quartinho negro ou luminoso” é obliterar as visões que circundam o significado tradicional da história. Escrever poeticamente esse “tempo” ainda não escrito é um dos objetivos centrais, não apenas da poesia de Eduardo de Oliveira, mas de todo o pensamento afro-brasileiro, tendo em vista uma escritura que parte da alteridade. O autor é um dos grandes expoentes da poesia negra contemporânea. Além de dedicado poeta, é advogado, jornalista, conferencista, político e professor. A sua carreira como escritor teve início em 1944, com o livro Além do pó, a que se seguiram outros títulos nas décadas posteriores. Compôs ainda o "Hino à Negritude", no qual entoa um cântico à africanidade brasileira sob a proteção dos deuses de Aruanda.

Negritude é um dos principais termos empregados por Oliveira ao longo de sua expressão artística que, em grande medida, torna-se um símbolo caracterizador de uma consciência arraigada e inerente à África longínqua e ancestral. Por essa razão, é indispensável recuperar a temática, considerando-se a relação histórica entre o movimento levado a cabo na primeira metade do século XX e a sua difusão pelo mundo. Em As gestas líricas da negritude (1967) – objeto de meu estudo –, é possível vislumbrar o projeto literário de Eduardo de Oliveira como síntese da recepção deste movimento no Brasil. Segundo Ligia F. Ferreira (2006):

a palavra aparece pela primeira vez em Cahier d’un retour au pays natal (1939), obra do poeta francófono Aimé Césaire, considerado por André Breton como um dos maiores ‘monumentos líricos’ em língua francesa, espécie de meditação poética e política, nas quais se entrelaçam, entre ruptura e programa, os fios de uma experiência pessoal e da existência torturada de uma raça. (FERREIRA, 2006, p. 8).

Nesse sentido, a nova tomada de consciência seria acompanhada de um desejo constante pela África e, sobretudo, pelos sinais permanentes deixados na mente e na alma do povo negro. A Negritude passa a ser, por isso, uma condição universal, uma nova forma de perceber o mundo por meio da subjetividade daqueles que, direta ou indiretamente, tiveram os seus destinos marcados pelas questões que abarcam o ser negro, no sentido amplo do termo, entre elas a própria memória da escravidão. O movimento é, não apenas uma necessidade de retomar a cultura, mas um acontecimento político de luta e resistência contra as forças dominantes do colonialismo.

Ainda segundo Ligia Ferreira, outras expressões – como “negridade” e “negricia” –, demonstraram afinidades semânticas com o termo criado na França, embora apareçam com menor frequência que o último. Na realidade, as duas primeiras expressões têm suas origens na própria língua portuguesa, ao contrário do que ocorre com a negritude, de origem francesa. Tristão de Ataíde, em prefácio à obra de Eduardo de Oliveira, expõe a sua nítida preferência por “negrícia”, já que esta poderia delinear de forma mais contundente o sentimento de não-pertencimento e a estética da “fraternidade” inerente à produção poética do escritor afro-brasileiro. Conforme Ataíde, o termo criado pelos poetas negros na França carrega uma crítica mais agressiva, o que não condiz com a realidade cristã pertencente à formação do autor negro aqui analisado. De fato, na escrita de Oliveira nota-se uma estética que figura como um motivo pacificador, até mesmo na sua relação conflituosa com os paradigmas do cristianismo.

Embora com algumas ressalvas, o termo foi percebido na escrita negra brasileira e passou a ser um grande motivo da criação literária, especialmente no caso do autor de Gestas líricas da Negritude, que demonstra grande empatia com o movimento francês. Sartre, ao longo do seu respeitável ensaio “Orfeu Negro”, define com precisão a nova “poética negra” vinculada à negritude – tanto no sentido estético do termo – como pela consciência de uma cultura que necessita centrar-se na subjetividade da alma negra. Oliveira revela- se leitor de Sartre, bem como de Césaire, Senghor, Damas e demais poetas do movimento em questão, não somente por fazer alusão aos nomes, mas, sobretudo, por percebemos em sua poesia uma postura que remete à estética abraçada pelo grupo.

No entanto, antes mesmo da assimilação do termo, já percebíamos no Brasil várias tendências e organizações que se dispunham a lutar pelos direitos da população afrodescendente, inclusive por meio da expressão artística. O Teatro Experimental do Negro, criado em 1944, se propunha, por exemplo, a resgatar os valores da cultura afro-brasileira através do processo educacional e da representação cênica, tendo em vista o constante mecanismo de negação próprio da sociedade dominante. Um outro exemplo é o Movimento Negro, que se configura de forma efetiva nos primeiros anos da década de 1930, com a Frente Negra Brasileira, e ganha novo fôlego nos anos 1970 com MNU – Movimento Negro Unificado. Como podemos perceber, a negritude propagada pelos poetas francófonos ganha configurações distintas no território brasileiro, não ocorrendo aqui simplesmente uma cópia dos valores e idéias proclamados por Césaire e outros escritores na França. Na realidade, é possível perceber um processo de apropriação crítica, que abarca vários fatores vivenciados pela população negra em nosso país. Como afirma Frantz Fanon, “os cantores da negritude não hesitarão em transcender os limites do continente. Da América, vozes negras retomarão esse hino com uma amplitude aumentada”. (FANON, 2005, p. 246). A “amplitude aumentada” é precisamente essa consciência, não apenas cultural, mas também política, inerente a cada nação, na medida em que agrega aspectos da vida do homem negro com as suas particularidades locais. A partir disso, podemos notar a tentativa constante de formalizar e criar movimentos contestatórios que reivindicavam os direitos durante muito tempo negados ao afro-brasileiro.

O mais importante a ser mencionando é exatamente a consciência arraigada advinda desse canto sublime, misterioso e sugestivo, que é universal por ser “puro ultrapassamento de si mesmo”, nos dizeres autorizados de Sartre. A universalidade do movimento está precisamente em ser o outro negro, ainda que se esteja na mais distante parte do planeta. Seja aqui no Brasil, na França ou mesmo em outros países representativos da negritude, é possível notar que, em qualquer parte, apresentavam uma finalidade em comum: ressignificar o sentido de ser negro, tendo em vista o aspecto cultural e, ao mesmo tempo, as consciências política e histórica. Como todo movimento reivindicador, o nomeado “Negritude” foi marcado por uma literatura que, muito mais do que um movimento literário, foi um ato político, uma afirmação da liberdade de um povo, um clamor por reconhecimento.

A Canção de gesta e o lirismo da negritude

Outro ponto a ser estudado em As gestas líricas da negritude é o sentido atribuído ao título da obra, que adquire relevância pela simbologia do gênero “canção de gesta”. No contexto de produção do poeta afrodescendente, a gesta não é apenas o canto épico, mas, em grande medida, uma apropriação que o mescla ao lirismo e à subjetividade da negritude. Tradicionalmente, o gênero tem suas origens na épica medieval francesa, com a narração dos feitos heroicos dos cavaleiros, entre eles o próprio movimento das Cruzadas. O cantar de gesta era declamado pelos jograis, que o faziam acompanhados por um instrumento de corda, geralmente a viola. Além de associada à música, a peça tem forte ligação com os fatos históricos e com os elementos lendários do universo no qual era produzida.

No caso de Eduardo de Oliveira, nota-se a construção de uma gesta negra, distinta das inspirações da canção tradicional. Quem fala aqui é a África e seus filhos, motivados que estão pelo processo de exploração sofrido por eles. Além disso, toda uma história será resgatada, antes mesmo da “viagem” feita pelo Atlântico Negro. A gesta, dessa maneira, assume a posição do canto africano, que, como afirma Senghor, é “não-sofisticado”, no sentido mais canônico do termo, por ser exatamente o canto ancestral, a voz memorial do griot e dos rapsodos populares.

Já o tom conciliador intrínseco à poesia de Oliveira reverbera uma paz universal que vem da vontade de ser negro, de um desejo de querer-se na beleza imagética da poesia. Por isso tanta leveza que, de certa forma, contradiz uma parte da história vivida pelos povos de origem africana no Brasil. A gesta, para a produção afro-brasileira, é épica e lírica ao mesmo tempo, pois reflete a luta por um ideal, o resgate das próprias raízes como necessidade vital, e a subjetividade de um canto que retoma o imaginário de um mundo deixado de lado, posto em segundo plano. O poema homônimo “As gestas líricas da negritude” é exemplar neste sentido, uma vez que propala a fraternidade presente nas vozes negras espalhadas pelos quatro cantos do planeta. Vejamos:

Eu quero ser no mundo uma atitude

de afirmação que, unicamente, cante

com poderosa voz tonitroante,

A Gesta Lírica da Negritude...

 

Serei na vida o intransigente amante

de sua nobiliárquica virtude,

e, como alguém que entoa ao alaúde

uma canção, eu seguirei adiante...

 

Eu seguirei feliz, de braços dados

com meus irmãos dos cinco continentes...

que a todos amam, porque são amados.

 

E quando se ama a Humanidade inteira,

os ideais – por mais nobres, mais ardentes –

irmanam-se numa única bandeira.

(OLIVEIRA, 1967, p. 43).

No poema, a relação com os ideais da negritude é muito evidente. A voz, necessária à produção do canto, torna-se um instrumento poderoso aliada ao som dos alaúdes. Pode-se perceber a retomada e, de certa forma, a síntese do movimento iniciado na França. A universalidade da composição de Oliveira está não somente vinculada à temática, mas em poder abraçar os irmãos de cor dos “cinco continentes”. A “bandeira”, símbolo caracterizador de um estado soberano, encontra no último verso do poema o seu sentido mais autêntico e esclarecedor: o de fazer do canto/poesia a verdadeira pátria daqueles que vivem no entre-lugar.

As gestas líricas da negritude

A poética do escritor é delineada de forma semelhante à de muitos dos seus contemporâneos. Além de abordar questões concernentes à raça, oscila entre o canto da negritude, como foi dito acima, e uma consciência de formação que também é dupla. Conforme as concepções de David Brookshaw, o poeta caminha em direção a Cruz e Souza e Oswaldo de Camargo, “no que tange à descrição disfarçada do isolamento do negro no mundo branco”. (1983, p. 188). Eis o sentido simbólico de sua criação, que mescla elementos culturais pertencentes ao universo ocidental, assim como ao africano.

Em As gestas líricas da negritude há um percurso no sentido de romper, não apenas com os padrões socioculturais pré-estabelecidos, mas com a própria história a partir de outro ponto de vista intrínseco à subjetividade do sujeito negro. Neste sentido, Eduardo de Oliveira, além de evidenciar o drama “individual” do poeta, pretende excursionar pela Negritude, a fim de torná-la um motivo de criação da arte. O escritor mantém um diálogo intenso com as raízes épicas do canto africano, como evidencia Tristão de Ataíde, uma vez que a palavra poetizada torna- se um símbolo das batalhas no processo diaspórico. Ouçamos o crítico:

E. Oliveira restituiu [...] à poesia brasileira o seu sentido épico. É a epopeia de um drama universal, de uma voz intercontinental [...] Não há preocupação de escola [...] Não é nem modernista nem passadista. Não é concretista nem abstracionista. Não se filia a este ou àquele grupo, a este ou àquele estilo. É do povo e mesmo assim não é populista nem folclórica. [...] [Sua] música está substancialmente ligada à alma da negritude ou da negrícia, como eu preferiria que dissessem. (ATHAYDE. In: OLIVEIRA, 1967, p. 8).

Os versos do poeta nos convidam a viver e sentir o tempo perdido, como que tocá-lo com a mais intensa verdade, que faz gritar a canção silenciada pelas vozes dos opressores. Ao mesmo tempo, sua poesia é condicionada, em uma parte considerável de sua produção, ao cristianismo inerente à cultura ocidental, como foi brevemente pontuado nos parágrafos acima, já que o poeta crê nos sofrimentos terrenos como forma de redenção humana e como necessidade de afirmação de um canto “apaziguador”.

Brookshaw afirma que o diálogo com a tradição cristã “é essencialmente uma resposta emocional ao desejo do poeta de fugir da insegurança de sua situação no competitivo mundo social para um refúgio de resignação”. (BROOKSHAW, 1983, p. 189). A fuga na religiosidade cristã é temporária, uma vez que a incursão pelo mundo negro, em contraposição ao branco, faz com que a crença em uma humanidade redimida perca espaço para o “retorno espiritual à África”. Observemos o poema “Canção do Silêncio”:

Senhor!

Diminui as distâncias entre os homens

É muito triste o silêncio a dois.

As legiões silenciosas se arrastam

Pelos caminhos da incerteza

Meus irmãos de cor,

Com as faces negras como a beleza

Imortal das grandes noites

Estão cercados de silêncio

- e o silêncio é frio que gela a todos nós.

(As gestas líricas da negritude, p. 27).

O silêncio passa a ser um símbolo importante da criação poética de Eduardo de Oliveira, pois é a partir dele que a consciência do abandono surge como forma de se construir uma outra história, escrita por aqueles que são emudecidos por imposição do sistema. Chevalier, em seu Dicionário de símbolos, nos revela que o silêncio é um prelúdio de abertura à revelação. O silêncio é uma grande cerimônia. (CHEVALIER, 1988, p. 834) Se o entendermos paradoxalmente como expressão, torna-se evidente a presença de uma voz emudecida, mas que, pela força da “confissão” poética, precisa ser construída através de uma memória fixada no corpo do tempo. Trata-se de um resgate, ou de um regresso ao “país natal”, no sentido de buscar, além da tradição cultural, uma consciência política que represente o desejo de mudança.

Outro texto significativo, nesse sentido, é “Florão dos Mocambos”, uma vez que nele o poeta constrói imagens majestosas que giram em torno da beleza negra e do próprio continente africano personificado:

Negra, formosa flor dos meus mocambos,

Rosa do sofrimento das senzalas,

Ébano de mil sonhos cor de jambos,

Em cuja face o próprio amor exalas.

 

Por teu corpo queimado, por tuas falas

Não há quem se não ponha de olhos bambos;

Reis, por ti, tornaram-se molambos

Deuses, por teu olhar, rolam na valas.

 

Monja tostada, de alma hospitaleira.

Enquanto escrava, foste mãe; enquanto

mãe, foste, dentre tantas, a primeira,

– Oh, langor africano, que acalanto! –

A ser berço da gente brasileira...

Que, p’ra vê-la feliz, sofreste tanto.

(OLIVEIRA, 1967, p. 39).

Os mocambos são símbolos da memória brasileira, do passado de luta e resistência dos negros no país, mas também representam o presente miserável vivenciado por parte considerável da população afrodescendente. O poema possui um aspecto atenuante da dor, ou seja, a beleza negra voltada para o seu próprio universo primitivista. Por meio do elemento simbólico – “florão” – percebemos a necessidade de ressignificar e valorizar a tradição negra. A afirmação do “berço” serve ainda para endossar o caráter de riqueza da identidade nacional, que não é apenas europeia. O florão é, por essa razão, o adorno, o acalanto, a beleza e também o grito refugiado na memória coletiva dos descendentes de africanos, que necessitam ser vistos como parte integrante da nação brasileira.

No poema, quase tudo é alusivo por remeter às imagens simbólicas da trajetória percorrida pelos negros no Brasil. São, muitas vezes, reminiscências do passado individual e coletivo. Portanto, compreender a obra de Oliveira e de vários outros escritores afrodescendentes é, de certa forma, vivenciar, pela memória, uma parte da história sofrida por eles. Walter Benjamim nos diz que “um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerado na história, na esfera do vivido, ao passo que um acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois” (BENJAMIN, 1994, p. 37).

A definição de Benjamim reflete uma nova maneira de perceber o sentido da tradição, uma vez que ela se efetiva não necessariamente pela escritura do passado numa visão historicista, mas sim pelo olhar subjetivo que a memória do oprimido exerce sobre ele. Compreender a história é, portanto, desconstruir1 parte do que foi dito e escrito sobre os negros no Brasil: eis o sentido mais profundo extraído da

produção poética de Eduardo de Oliveira. Não poderíamos deixar de comentar o poema “Voz emudecida”, que funciona como uma metonímia, na medida em que sintetiza a criação poética do autor aqui estudado:

Eu me levanto aqui

Na voz dos que não puderam falar.

No grito afogado na garganta

No desespero disforme da

Mudez implacável.

 

As pulsações dos mundos

Soterrados,

Dos mundos submersos

Convulsionam-se

Para anunciar

Na voz do sol e da verdade

A presença humilde dos que não viveram

Porque não puderam sonhar.

 

Surgirei das chagas da dor

Trazendo o bálsamo da vida

O perfume de um sonho

Esquecido no coração dos homens

[...]

 

Entretanto o que vejo?

Sobre este chão assisto o bailado das lágrimas

Silenciosas dançando a dança macabra.

Seres amordaçados clamando por liberdade

Dão no palco do universo

O espetáculo da dor e do sofrimento...

E os negros?

O que dizer dos negros?

(OLIVEIRA, 1967, p. 47).

Os versos acima aludem aos acontecimentos da vida do povo negro, às agressões silenciadas, à tentativa de apagamento cultural pautado no “espetáculo da dor e do sofrimento”. O que dizer dos negros? A obra de Eduardo de Oliveira permite que eles próprios se falem, revelando a dor de ser oprimido “silenciosamente”. “As chagas da dor”, com toda a sua simbologia, indicam o caminho já percorrido, mas que não deverá persistir na caminhada futura.

Na poética do escritor afro-brasileiro é possível perceber um lirismo que envolve o protesto negro no Brasil, nem sempre percebido de forma incisiva. A mescla cultural praticada nos poemas – apropriação das formas europeias, mas, ao mesmo tempo, negação do domínio histórico desses povos sobre o negro – permite-nos perceber um processo crítico de expressão artística. Eduardo de Oliveira não é somente um poeta, mas um trovador do seu povo. Reminiscências de tempos passados, ainda que não vividas diretamente; lembranças de feitos heroicos, lágrimas da dor eterna arraigada na memória encontram sempre na sua composição a leveza de um canto universal, muitas vezes evocado ao som do balafon. A musicalidade inerente aos seus versos é, simplesmente, vaga música africana, voz de rapsodos que desejam entoar a essência de uma tradição cultural, fruto de uma negritude. Conta-nos a história que antigamente “o negro habitava um rancho feito de flores/ coberto de estrelas, luas e sóis...” (OLIVEIRA, 1967, p. 47), mas esse mesmo negro foi levado para terras distantes do além-mar, e foi obrigado a viver como antes não vivia; acorrentado de corpo e de alma aos desejos navegantes do novo mundo. Muito tempo se passou, e esse mesmo negro conseguiu se libertar das correntes, mas ainda hoje luta a fim de amarrar os laços que o prendem também ao seu continente de origem.

 

Referências

BENJAMIN, W. Obras Escolhidas I – Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1994.

BROOKSHAW, David. Raça e Cor na literatura brasileira. Tradução de Marta Kirst. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1983.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionários de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.

DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la Négritude. Paris: Seghers, 1980.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

FERREIRA, Ligia F. Negritude, Negridade, Negrícia: história e sentido de três termos viajantes. Revista Via Atlântica (USP), n. 9, jun. 2006.

OLIVEIRA, Eduardo. Gestas líricas da negritude. São Paulo: Obelisco, 1967.

SARTRE, Jean Paul. Reflexões sobre o racismo, trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960.

 

1 A desconstrução é, conforme Derrida, um método ou processo de análise crítico-filosófico que tem como objetivo imediato a crítica da metafísica ocidental. Desconstruir um texto é subverter as próprias suposições do texto, revelando aquilo que, de certa forma, já estava presente na escritura, mas precisa surgir como uma inovação/oposição ao já dito.

* Giovanna Soalheiro Pinheiro é mestre em Teoria da Literatura e doutoranda em Literatura Brasileira pela UFMG. Integra o grupo interinstitucional de pesquisa “Afrodescendências na literatura brasileira”, vinculado ao NEIA-UFMG. Atualmente, cursa o doutorado em Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG, com pesquisa em torno da poética modernista.

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