Dicionário de forquilhas:1 a poesia de Edimilson de Almeida Pereira

Maria José Somerlate Barbosa*

A obra poética de Edimilson de Almeida Pereira revela a preocupação de registrar e analisar o universo cultural afro-bra­sileiro, desafiando essencialismos nacionalistas que desprezam diferenças regionais e diversidade cultural. Para Edimilson, se­ria impossível falar de uma identidade afro-brasileira, por ser ela um palimpsesto que registra inúmeras inscrições históricas, geográficas e socioculturais. Por isso, pluraliza-a, considerando-a um macrocosmo fraturado em que tradição e cultura não formam absolutos: “[A 'tradição afro-brasileira] não é aquele tambor que soa com ritmo harmônico dos ancestrais, É um tambor meio quebrado, meio rompido, com uma série de fraturas, de fissuras” (PEREIRA, 1998, p. 101).

Em Águas de contendas (1998), título inspirado no nome de uma cidade mineira, Pereira utiliza a metáfora das águas revoltas, indicando a tensão, o conflito, a ambigüidade e a ambivalência que caracterizam as relações humanas. Para o poeta, o título representa

[...] os choques que existem nas relações amorosas, nos vínculos afetivos, onde nem tudo é harmonia e o conflito é parte da convivência. [...] No caso, é como se o senti­mento amoroso fosse as grandes águas por onde nós circulássemos sempre, mas em estado de permanente contenda, seja com o outro, seja conosco mesmo, seja com o sentimento. (PEREIRA, 1998, p. 115).

A representação simbólica das águas em estado de con­tenda pode também aplicar-se ao imaginário afro-brasileiro e à própria literatura, representados nos debates, nas diferenças de opinião e nas diversidades regionais - as fraturas e fissuras a que se referira Pereira anteriormente.

O poema “Três Tambores Sagrados”,2 publicado no livro Árvore dos Arturos (1988), é uma amostra de como Pereira exa­mina a diversidade cultural afro-mineira. Nesse texto, ele discu­te o significado dos tambores (Santana, Santaninha e Jeremia) no ritual do Candomblé,3 considerando-os como símbolos da tra­dição, das vozes dos ancestrais e do espaço sagrado. Os tambo­res registram momentos de alegria, celebração, mas também apon­tam para a necessidade de “tomar sentido” e de se agarrar ao significado das palavras. Como o poema indica, é na linguagem, e através dela, que a tradição se reinventa e se conserva viva.

Três tambores sagrados

São três os tambores, como

três são os fogos: no passado

ensinam os antigos. Hoje

os meninos que ouvem. São dois

e o terceiro é o tempo mordido.

 

o santana, o santaninha e o

são três os tambores sagrados!

 

Ô menino, toma sentido! Se o

dia é de preceito, toma sentido!

Os antigos riscam o silêncio

e as caixás batem no escuro.

Ô, nego! A festa é dos antigos!

 

o santana, o santaninha e o

são três os tambores sagrados!

 

No Candomble furam o medo

e o chão se veste de calos.

“ô, menino, você aprende a rezar!”

Auê, nego, não perde o sentido não.

São três mil os tambores.

 

o santana, o santaninha e o

são três os tambores sagrados!

(PEREIRA, 1998, p. 95).

O terceiro tambor é absorvido e transformado nos mo­mentos do corpo político. Talvez por isso, ou porque esse tam­bor receba nomes variados nas comunidades afro-mineiras, o autor tenha omitido a referência ao nome dele (“o santana, o santaninha e o / são três os tambores sagrados!”), substituindo o nome de Jeremia por um tempo sempre em mutação, apreendido pela linguagem, pela história e pela tradição constantemente em transformação: “São dois / o terceiro é o tempo mordido” (PEREIRA, 1998, p. 95).

Esse poema também exemplifica a riqueza semântica da poesia de Pereira quando usa palavras que iluminam inúmeras facetas culturais e desdobram-se como um leque de significa­dos. Por exemplo, a palavra “sentido”, que aparece nos versos “Ô menino, toma sentido!” e “Auê, nego, não perde o sentido não”, explora quase todos os significados que os dicionários re­gistram para o vocábulo (bom senso, propósito, cautela, razão de ser, atenção e rumo). Exprime ainda a perspectiva de busca e a capacidade de conhecer a realidade tanto de um modo calcula­do e apreendido através do real, quanto de maneira intuitiva. Ainda que o autor não se refira aos sentidos, pode-se inferir que se tornam o veículo através do qual a experiência humana, o processo histórico e o tempo construído são aceitos, ingeridos e “canibalizados” (no sentido que Oswald de Andrade atribuiu a essa palavra). Como “Três Tambores Sagrados” indica, o toque de Jeremia/Tempo, para os membros da família da comunidade afro-mineira d'Os Arturos e as mudanças no presente. Também mostra como seus rituais estão ancorados no passado histórico e na tradição cultural.

No poema “Missa Conga”, de Árvore dos Arturos, Pereira discute o sincretismo cultural e religioso que existe nessa comu­nidade e apresenta aspectos rituais que se encontram num pro­cesso de demarcação de novos significados. Pereira joga com a mobilidade cultural dos Arturos, descrevendo os aspectos da identidade social deles. O texto inscreve um momento histórico catalisador e, paradoxalmente, partitivo, pois tempo e espaço tanto se complementam como apresentam um jogo suplementar de contenda.

Esse conflito se estende ao poeta. Como estudioso dos rituais dos Arturos e ligado às suas raízes afro-mineiras, Pereira insere-se no contexto da comunidade. No entanto, como antropólogo, está consciente do distanciamento que precisa existir para que haja uma observação empírica. No poema “Missa Conga”, o eu lírico afasta-se do espaço dos Arturos e distancia-se do pro­cesso ritual quando cede lugar à voz do antropólogo. Confronta­do com a mobilidade e adaptação das tradições afro-brasileiras e surpreso com os deslocamentos de identidades culturais e religi­osas, o eu lírico se mostra inseguro na sua posição ambígua. Assim, a articulação da experiência individual com a coletiva é mediada pela voz poética que interroga:

Missa Conga

Para que deuses se reza

quando o corpo aprendeu

toda a linguagem do mundo?

 

Que orações se entoa

quando a alma se entregou

a todas as dores do mundo?

 

Onde se deitam os olhos

quando o altar dos antigos

se ocultou nas sombras?

 

Para que deuses se reza

quando as palavras se velam

para invocar seus nomes?

 

Que sacrifício se oferta

nos dias em que os antepassados

ainda se escondem?

 

Por que não entregar a vida

ao deus com olhos de plumas

que vive no fundo dos tempos?

(PEREIRA, 1988, p. 105).

Pereira descreve e analisa o espaço cultural híbrido da co­munidade dos Arturos, poetizando o que Homi Bhabha discute em O local da cultura (1998) como “[...] a estratégia discursiva do momento da interrogação, um momento no qual a demanda pela identificação torna-se, primariamente, uma resposta a outras questões de significação e desejo, cultura e política” (1998, p. 84). O poeta examina a tensão, o conflito, o espaço do autoquestionamento que encontra na comunidade dos Arturos, em outros grupos afro-mineiros e, por extensão, no imaginário cultural e simbólico afro-brasileiro. Salienta também a sua pró­pria interrogação ao dialogar com a cultura, a história e a litera­tura brasileiras.

O espaço e o momento de inquirição nesse poema (repre­sentado graficamente por pontos de interrogação) também se inserem no discurso pós-moderno e metapoético em que ele­mentos reflexivos e de reflexão sobre o texto examinam a pala­vra como veículo de produção de significado. O autoquestionamento da linguagem se torna mais óbvio na quarta estrofe, em que o eu lírico expressa incerteza quanto à legiti­midade da sua prece e das suas escolhas ao perguntar a que deu­ses deve orar. Considera que palavras são entidades autônomas e voláteis que se prestam a um discurso lúdico e à volubilidade do significado (no sentido que lhe atribui a teoria desconstrucionista). O discurso polissêmico do poema se proje­ta em palavras como o verbo “velar” (quando as palavras se velam), que transmite a ideia de cobrir, encobrir, mas que tam­bém significa estar alerta e vigiar.

O eu lírico poetiza o sincretismo religioso do ritual da Missa Conga e a tolerância excêntrica do “deus de olhos de plumas”. A leveza e a suavidade do olhar desse deus contradizem a visão judaico-cristã em que Deus (escrito com maiúscula) é represen­tado como aquele ser de olhos penetrantes que intimidam, desa­catam e se impõem. Talvez seja por isso que o poeta tenha escolhido representá-lo graficamente com letra minúscula, apontando para a dessemelhança entre o Deus da tradição judaico­-cristã e a entidade do poema. Deus - o infinito, o começo bíbli­co, o paradigma de toda criação, o logos - torna-se menos aterro­rizador e mais tangível nesse poema e, por isso, mais apto a con­viver com o sincretismo da cerimônia religiosa.

Em “Tiradentes”, publicado em Águas de Contendas, Pereira utiliza os detalhes arquitetônicos da igreja de Nossa Senhora do Rosário, da cidade mineira, para ressaltar o passado histórico e o sistema escravista brasileiro. Impossibilitados de construí­rem igrejas para seus santos padroeiros durante os dias úteis, os escravos trabalhavam aos domingos e feriados e muitas vezes à noite, utilizando a luz da lua. O poema apresenta a lua como uma cúmplice do logro dos escravos, pois costumavam enfeitar o altar principal com ouro tirado das minas, escondendo-o nas roupas e no cabelo.

Núbia Pereira de Magalhães Gomes e Edimilson de Almeida Pereira discutem esses fatos históricos na análise do simbolismo do altar principal da igreja de Nossa Senhora do Rosário em Tiradentes:

No altar-mar desta igreja, nota-se que a meia-lua encimada pela coroa de Nossa Senhora do Rosário e os quatro anjos que a contemplam têm os olhos cerrados. [...] Os anjos de olhos fechados são a representação iconográfica da realidade do trabalho escravo, que só à noite - exausto e invadido pelo sono - poderia dedicar-se à construção de seus templos. (PEREIRA; GOMES, 1988, p. 39).

Como a história e a literatura atestam, os escravos, às ve­zes, conseguiam lograr as leis estabelecidas ao articular e implementar mecanismos através dos quais podiam criar espa­ços sociais, religiosos e políticos para si mesmos. Tais fatos es­tão poeticamente representados no poema:

Tiradentes

Lua de olhos cúmplices

com o furto que a doura.

Serviço feito à noite

esmerado na carpina.

 

Olhos fechados até

os anjos

em sono ou desculpa

para não ver

o vistoso.

 

Com o dia esclarecido

os burlados contemplam

sua burla.

(PEREIRA, 1998, p. 42).

Em “Avisos de Praça”, também de Águas de Contendas, Pe­reira refere-se às estratégias de repressão social e às práticas exis­tentes durante o período anterior à abolição da escravatura no Brasil, em que os africanos e seus descendentes eram tratados como bens alienáveis. Baseando-se em documentos da época, o poeta refere-se a um leilão (escravos, gado, mobiliário e melho­ramentos feitos na fazenda) em que se efetuou a venda dos bens de Matheus Herculano Paiva. Os nomes de bois e escravos (Sabina, Mimoso, Francez, Joaquim, Velludo, Hipólito, Adão e Eva) são colocados no mesmo patamar e misturados de forma a não se saber exatamente os que se referiam aos escravos ou aos bois.

Esse aspecto do relatório de venda, registrado no poema, enfatiza quão cruel e desumano era o Código Penal do Brasil-­colônia e o aparatus ideológico da época que negava ao escravo o status de cidadão e, conseqüentemente, o de pessoa jurídica. Tal passagem do poema reitera a afirmativa de que a mobilidade e a fluidez do sistema social em Minas Gerais foram, de muitas maneiras, um mito criado por aqueles que detinham o poder eco­nômico e político. Documentando sua pesquisa em material en­contrado nos arquivos de várias cidades de Minas Gerais e nos documentos deixados por viajantes estrangeiros da época, Núbia e Edimilson posicionam-se contra o argumento de que a ascen­são social dos escravos na Minas Gerais colonial era facilmente obtida. Acreditam que a aparente mobilidade social que as esta­tísticas parecem confirmar nada mais era que uma forma disfarçada de controle, estabelecida pelos senhores de escravo, pois deve-se considerar que a liberdade era condicional, uma vez que podia ser revogada por mau comportamento. Portanto, existia mais como uma potencialidade:

O escravo inseria-se nas transações do mercado co­mercial como fonte intermediária geradora de lucros. Sua condição de objeto não lhe permitia participação efetiva no processo social, tornando-o receptáculo das decisões promulgadas por essa sociedade.

Na prática, isso correspondia à situação do escravo que é arrolado no espólio de seu falecido proprietário, juntamente com outros bens alienáveis [...] Descartado em leilão, desagregam-se não apenas os sentidos da sua individualidade, mas a própria família. É o que relata o edital de liquidação do espólio deixado por Matheus Herculano de Paiva, em sua parte referente a escravos. (PEREIRA; GOMES, 1988, p. 44-45).

“Aviso de Praça” refere-se tanto à documentação histórica de transações econômicas como à biografia de um juiz da época, Affonso Henriques Assis de Aguiar, que morou e trabalhou em Juiz de Fora. O seu titulo, “Juiz de Órfãos”, era semelhante ao de “Juiz de Fora”, árbitro que podia tanto dispensar justiça como presidir um distrito policial. Era encarregado de liquidar espóli­os e leiloar crianças desamparadas de pais escravos, pois não havia interesse em conservar tais crianças, que constituíam um peso econômico e um investimento sem retorno a curto prazo para os senhores de escravos. Assim,

[...] era mais eficiente selecionar, pelo seu vigor e resis­tência, dentre os jovens africanos do sexo masculino, re­cém-chegados da África, nos leilões de escravos do por­to da cidade de Salvador [...] do que se preocupar em cuidar de crianças nascidas de pais escravos no Brasil. (LEVINE, 1997, p. 15).4

Quando perguntei a Pereira (numa entrevista por telefo­ne) sobre o que servira de motivação para escrever o poema “Avisos de Praça”, ele me explicou que se inspirara em docu­mentos históricos que registravam a venda de escravos. Ao examiná-los ponderou se, durante a época da escravidão, todas as pessoas envolvidas nas transações de compra e venda de es­cravos lidavam com tal assunto de maneira absolutamente fria e calculada. Imaginou que houve momentos em que algumas pes­soas que compravam, vendiam e castigavam escravos, bem como aqueles que documentavam transações comerciais, estavam ci­entes dos seus atos, sentiam-se culpados ou tinham dúvidas quan­to ao aspecto moral dessas transações. As referências biográfi­cas que encontrara sobre o juiz Assis de Aguiar e algumas infor­mações e referências que acumulara da sua pesquisa histórica são elementos de composição do poema.

Em “Avisos de Praça”, a voz poética apresenta uma reali­dade que, apreendida e reinventada pela linguagem, permanece em constante diálogo com a cultura, a história, a tradição literá­ria e o leitor:

Vende-se um piano; em casa de Carlos

Montreuil, na rua Direita, n. 25.

Pharol, Cidade do Juiz de Fora, 1882

 

O Dr. juiz de orphãos ainda que pouco saiba

faz saber

que o maior lanço arremata

 

2 marquezas velhas

Sabina, e seus filhos

bois de carro

Mimoso e Francez

Joaquim quebrado

Velludo

Hipolito e Adão

 

& mais bem feitorias

1 monjollo

1 moinho

Eva solteira

1 casa começada

 

Outro sim, eu, escrivente

juramentado

Affonso Henriques Assis

de Aguiar escrevi.

 

*

 

Eu escrivente juramentado

invento a juros

o que pretendo.

 

Não há mercadoria

sem mercado.

Não há palavra

sem preço.

 

Assino o variável serviço

do significado.

Recomendo lupa

martelo também

pois que sólido muro

o texto.

 

Eu mesmo não sei

o lado esclarecido.

Cada escravo em anúncio

anunciado me vejo.

Eu escrivente a juros

assino o que escrevi.

O texto me desconcerta.

 

*

 

Escrivente juramentado

comenta

e argumentando mente.

 

Affonso Henriques Assis

a guiar reino dúbio

oratório de outros dias.

 

Affonso Henriques assiste

à incomerciável certeza

miserere miserere.

 

Affonso ex-enriquecido

proprietário sem posse

da letra que inventou.

 

Escrivente perjuro afonso

a juros condena

o ofício de si mesmo.

(PEREIRA, 1998a, p. 45-47).

O poeta tece dois níveis “narrativos” (em terceira e pri­meira pessoas) ao alternar a voz que retoma os fatos com a do próprio “escrivente”. A primeira e terceira partes do poema apre­sentam narradores de terceira pessoa e a segunda parte é narrada pelo próprio juiz. Permite-se assim que a voz histórica se mani­feste e que o leitor conheça o dilema moral do Juiz de Órfãos. No processo de documentar fatos, o “escrivente” interroga a si mesmo e questiona os valores morais, econômicos, sociais e culturais do seu tempo-espaço. Disputa também a veracidade daquilo que registra, indicando assim um preço moral para suas ações e palavras. À medida que anuncia e anota as palavras e as “peças” leiloadas, deixa também marcado um autoquestionamento no livro de “escrivente” juramentado.

Na última parte do poema, o poder jurídico e econômico do juiz diminui numa escala de valores proporcional ao aumen­to do seu conflito e dilema moral. Tal proporção diametral está simbolicamente representada por seu nome. Quando, inicialmen­te, é apresentado no poema, ele é Affonso Henriques Assis de Aguiar. Depois que seu dilema moral toma corpo, seu nome di­minui gradualmente até se tornar a forma moderna e simplificada, escrita com um único “f” e em letra minúscula (“afonso”). Sua importância social e jurídica diminui para si mesmo à medida que reconhece que sua função, e até mesmo a sua identidade pessoal, são produtos da reificação de seres humanos. A letra minúscula e a simplificação fonética do nome do juiz são artifí­cios literários usados tanto para evidenciar o conflito interno do “escrivente”, como para desmistificar o lado “humano” da sua profissão (Juiz de Órfãos).

Portanto, o eu poético utiliza as mudanças mencionadas como artifícios narrativos para analisar o passado, determinar o dilema moral do “escrivente” e desestabilizar a centralização do significado, já que, também nesse poema, há um número subs­tancial de palavras que podem ser lidas com várias significações. A palavra “letra” (“Affonso ex-enriquecido / proprietário sem posse / da letra que inventou”), por exemplo, pode referir-se tanto à escrita quanto à nota promissória. As conotações poten­ciais da palavra “monjollo”5 estão registradas em dicionários da língua portuguesa. Significa engenho tosco movido a água, es­cravos de certas nações africanas e novilhos. As associações provocadas pelo verso “e argumentando mente” podem signifi­car tanto “ao apresentar seu argumento, não diz a “verdade”, como “seu raciocínio ou seu dilema moral levanta dúvidas e questionamentos”. O mesmo tipo de raciocínio se aplica ao ver­so “Outro sim, eu, escrivente”. Ao criar a palavra “escrivente” - em vez de usar o vernáculo “escriba” ou “escrivão” –, e ao esta­belecer a conexão com criatura viva (“vivente”), o poema desig­na uma nova voz e um novo papel ao juiz: o de julgar seus pró­prios atos, analisar suas ações e profissão, a ponto de sentir que se torna “escrivente perjuro afonso” que “a juros condena / o ofício de si mesmo”.

Apesar de a herança cultural afro-brasileira manifestar-se tematicamente na poesia de Pereira, a preocupação com a pala­vra - sempre em diálogo com a sua tradição cultural e literária ­tem um lugar de destaque na sua produção poética. Para ele, as palavras e suas múltiplas significações, como água ou vento em constante movimento, são geradas pela potencialidade existente no infinito fluxo e refluxo de significados e no ludismo polissêmico das palavras faladas e escritas. Como “Avisos de Praça” exemplifica, o eu lírico assinala o “variável serviço do significado” e recomenda ao leitor usar lupa e martelo para pe­netrar “no sólido muro do texto” e ver além da miopia histórica. Essa parte do poema contém ecos literários que o aproximam de “Procura da Poesia”, de Carlos Drummond de Andrade, em que o eu lírico interroga o leitor: “Trouxeste a chave?” Esse diálogo entre o texto de Pereira e o de Drummond faz parte de uma teia de referências e de um tecido de citações que exigem a atenção e a participação do leitor para que o significado se manifeste de maneira multidimensional.

A ênfase na pluralidade das palavras e na liberdade que o leitor tem de redirecionar os significados é uma das características mais marcantes da estética de Pereira. Por exemplo, no poe­ma “A Pessoa e o Termo” do livro Dormundo (1991), na expres­são “verbo devoluto” (1991, p. 254), ele teoriza a versatilidade da palavra - tanto como sujeito operacional quanto como obje­to receptivo do significado. O logos se torna vago, inocupado, terreno devoluto, que pode expressar e designar diferentes significados históricos, culturais e linguísticos.

No prefácio de O homem da orelha furada (1995), além de colocar em pauta a tematização de elementos africanos na poesia de Pereira, Iacyr Anderson Freitas aponta algumas estratégias poéticas utilizadas. Menciona “os deslocamentos sintáticos, as repetições, as assonâncias, as aliterações e os alargamentos semânticos”, bem como “a oposição à frase e ao discurso regular”, “as referências metalinguísticas” e os “determinantes linguísticos” que se tornam “agentes de indeterminação”. Refere-se também aos elementos autobiográficos do poeta (“os casos da infância, o trato da linguagem”)6 e à presença religiosa que grava “a profunda unidade do texto” (1995, p. 5-7).

O poema “Lapassi”,7 publicado em Águas de contendas (1998), configura algumas das características apontadas por Freitas. Por exemplo, notam-se referências a perdas pessoais, à ausência da “grande dama”,8 e a repetição de vocábulos como baile e dança, que se tornam um leitmotiv na poesia de Pereira:

Não vingou a sorte

aberto o coração.

Há muito não circula

a grande dama.

 

Sou de ver o baile.

Não danço

não compreendo

a coisa rara

devorada.

(PEREIRA, 1998, p. 105).

A tentativa de fugir do estigma de que existe uma possível “evolução” ou maturidade do seu material poético se materiali­za nos versos de “Lapassi”, que combinam o concreto da escrita (sinal gráfico) com a qualidade etérea do simbolismo da manhã/ tempo se esvaindo:

Não escrevo melhor que antes.

Escrevo.

Coleciono vírgulas

manhãs em fuga.

(PEREIRA, 1998, p. 105).

A escolha de vírgulas - um sinal de pontuação menos importante na escala de valores, muito mais singelo, por exemplo, do que um ponto final, uma exclamação, interrogação ou até mesmo um ponto e vírgula ou dois pontos - aponta para a dimensão imensurável das coisas simples e miúdas. As “manhãs em fuga” mostram a flutuação do significado, sempre adiado, sempre em movimento, em transformação, em “setecentas perguntas” que continuam a se multiplicar depois de descoberto o “sétimo véu”, a tessitura transparente das palavras, as camadas impermeáveis do significado:

Depois do sétimo véu

Setecentas perguntas.

Um só sentimento

ilude a fortuna.

(PEREIRA, 1998, p. 105).

O paradoxo desconstrucionista se manifesta na última es­trofe em que o poeta discute o enigma das palavras e uma certa impotência diante da impossibilidade de se encontrar em vocá­bulos para explicar o que é indefinível e “incapturável”. “Quem respira ao lado Não sabe o eterno enigma. O que sei está aqui incapturável”. (PEREIRA, 1998, p. 105).

Tal impossibilidade é demonstrada através de uma das marcas poéticas de Pereira: a ruptura, o estranhamento e os des­locamentos linguísticos que refletem também os conflitos gera­dos pela “devo ração da coisa rara”.9

Estudos teóricos sobre poesia costumam descrever “fe­chamento poético” como os modos e técnicas estilísticas utilizadas pelo poeta para garantir ao leitor a formulação de uma hipótese sobre o texto, derivar conclusões ou conceber o poema como uma estrutura total. De acordo com essa teoria, um “fe­chamento poético” bem-sucedido ocorre quando o leitor chega ao final do poema sem “expectativas residuais”,10 pois suas hipóteses foram confirmadas. Contrariando tais formulações, a poesia de Pereira, como exemplificada no poema “Lapassi”, cultiva o anticlímax, a ausência de fechamentos, de respostas e de expectativas residuais. Semelhante ao processo descrito na análise de “Missa Conga”, é uma poesia de interrogação, de busca do aprofundamento do significado poético que se manifesta através de deslocamentos, de abertura vocabular e das muitas “dic­ções”11 poéticas.

Numa conversa sobre o livro Ô lapassi & outros ritmos de ouvido, perguntei a Pereira por que a frequente dissociação entre o título e o corpo dos seus poemas, pois os títulos raramente cumprem a função esperada de resumir tematicamente o poema ou de se referir diretamente às manobras semânticas e linguísticas dos textos. Explicou-me que tem interesse exatamente em mostrar as fraturas e fissuras que existem no universo cultural afro-brasileiro e no mundo em geral: “[...] procuro em todos os textos, sempre, um pouco de desconcerto, de ruptura, de quebra” (Barbosa, 1998, p. 102). De modo que o deslocamento e a quebra - que Pereira chama de “caleidoscópio” dos sentidos - são muitas vezes gerados pela distância entre os títulos e os cor­pos dos poemas. Tal separação provoca um estranhamento e evita um roteiro ou um guia de interpretação para o leitor. Esses desdobramentos linguísticos indicam também a tensão que a poesia de Edimilson capta entre a densidade do mundo material - re­presentada no grifo, na parte mecânica da escrita, nas letras enfileiradas como formiguinhas12 - e a leveza poética transmutada na qualidade etérea do significado, sempre dançari­no, camaleônico e dissimulado nas dobras vocabulares.

No poema “Monjolo e Pilão”, também de O homem da ore­lha furada (1995), as referências botânicas, as citações zoológi­cas e as alusões à área rural (monjolo, pião, boi, ervas, melros, rosmanim, alecrim, sambaíba, milho, gameleira, águas e vespa) são usadas como metáforas e metonímias do processo da escrita e da própria biografia do poeta, enquanto escritor.

Não é pela cinza de um boi que pára o carro.

Não saí monjolo, mas as ervas-verbo me

disseram lição de sua senhora minha.

 

Sei a caligrafia da fome, os melros, cosias dos

homens? E as quê?

 

O rosmanim, o alecrim miúdo, a sambaíba? E

o milho plantado no gato? A gameleira em que

o espírito diamba especula?

 

Não nasci monjolo nem pilão: as herbas-verbo

Iluminaram. Montei e desmontei quimeras de

Meu pai, o que não sabia intuí pensando.

 

O tempo no dos sonhos e a senhora amou das

Águas. Digo instruído: menos careço mudar

bastão em vespa, mais me estrago nas mudas da palavra.

 

Eu morador desse lugar, sabedor de sabedoria,

filho da bênção.

Fome escrita de deus e do homem.

(PEREIRA, 1995, p. 14).

Refletindo sobre o processo de tornar-se escritor, a voz poética descreve o seu encanto com as palavras, ao mesmo tempo que se apresenta como aquele que é aprendiz e instrumento da poesia (“monjolo e pilão”). Sente-se abençoado por ter ido além dos sonhos que a tradição lhe legara, ao “montar e des­montar quimeras” e intuir o que não sabia, iluminando-se pelo encanto com as palavras. Sentindo-se instruído (“sabedor de sabedoria”), o poeta harmoniza-se com a procura do veio poéti­co: “Fome escrita de deus e do homem”. Aqui também, o mesmo jogo vocabular já mencionado torna-se evidente. Quando se pensa que o poema vai-se resumir, equiparando a escrita de “deus” com a do ser humano (e vice-versa), o verso omite a preposição, deslocando o sentido e deixando a palavra solta. Não é a semelhança que se instaura; antes, o que fica é a suspensão da analogia e o distanciamento, pois a escrita é “de deus” e o ser humano aparece como uma adição ao processo da inspiração.

“Santo Antônio dos Crioulos”, de Águas de contendas, apresenta um poema que analisa o seu labor e a sua arte. A voz textual discursa sobre a intangibilidade da essência poética enquanto síntese, apresenta a capacidade quase metafísica da poe­sia de captar “o rastro de carros indo, sem os bois”, descreve o desejo de agarrar o momento estético e reconhece que o poeta também tem que lidar com a concretude das palavras:

Há palavras reais.

Inútil escrever sem elas.

A poesia entre cãs e bichos

é também palavra.

 

Mas o texto captura é o rastro

de carros indo, sem os bois.

A poesia comparece

para nomear o mundo.

(PEREIRA, 1998, p. 2).

A definição de poesia como força motriz e autônoma - tal qual descrita no verso “o rastro de carros indo, sem os bois” ­- refuta conceitos normativos e canonizados que costumam relacioná-la ao sublime e à inspiração, discuti-Ia à luz da teoria da emoção e da expressividade, analisá-la como mero sistema catalisador de sentimentos ou explicá-la em termos de pureza ou essência. A poesia existe numa posição “entre”, é aquilo que separa, mas também une. Esse estar/ser preposicionalmente colocado, a posição intermediária da poesia (“entre cãs e bichos”), indica uma ambivalência, uma relação entre estado e lugar, tempo e espaço, presença e ausência, apontando também para evasão, mobilidade e intervalo.

Contrariando posições conservadoras, o poema aponta para a impossibilidade de se formularem definições palpáveis de poesia, pois esta é apreendida nos rastros das palavras, nas entrelinhas, nos rasgos, nas dobras da decifração, tornando-se um empreendimento de descoberta que se manifesta na dicção poética que o escritor escolher e na leitura que o leitor lhe der. Nesse caso, toda leitura torna-se uma leitura do processo ontológico do poema. É nas entrelinhas, nos entremeios, nos traços, nos rasgos e nas dobras que o momento poético “comparece para nomear o mundo”. O próprio título do poema remete o leitor ao estado de ser/estar no meio de raças, pois o Santo Antônio não é patrono dos pretos, nem dos brancos, mas dos crioulos.

Na primeira parte do poema “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho”, publicado em O homem da ore­lha furada, há a mesma preocupação em assinalar os vãos e as brechas da poesia. É exatamente nos intervalos e nos entremeios das palavras que a poesia brota insurgente e obstinada, revelando-se acima de tudo rebelde e mutante. Por isso, Pereira associa a ambivalência da poesia com os Di-Kishis, figuras mitológicas de duas cabeças do folclore angolano.13

1

o nome diquixi se arrumou na sombra. É de

sua natureza habitar os vãos as eiras: entre o

que há-de-ser.

 

o lápis, mais que a vontade, quer o nome e

a coisa, a família da palavra num corpo. Esclarecido.

 

E se desejarem que eu testemunhe o viso visto,

só de meus olhos? Erma campanha. Eu e o

intervalo das coisas com outras onças por

dentro.

 

O diquixi dorme com uma cabeça. Se o escrevo

ganha tantas de resto. E se nunca o escrevo

terá deveras uma cabeça?

 

O engaste é de manhã, quando perguntarem. O

visto era vivo, visagem de carne e osso? Ou

liames de sua letra e sua vista mal cordatas?

 

Se diquixi nem fosse, mas coisa reles: fio e

pavio, tecido e teia - ainda assim, como furtá­-

lo em sua mudança.

 

Melhor escritura a que revela revel.

(PEREIRA, 1990, p. 29).

As perguntas que o eu lírico faz ao leitor implícito se assemelham às que apresenta em “Missa Conga”. A inquirição serta­neja/ metafísica que esse poema estabelece também se parece com o monólogo de Riobaldo em Grande sertão: veredas de Gui­marães Rosa. A semelhança não se manifesta apenas no uso das interrogações insistentes, nas dúvidas instauradas ou no questionamento de fundo ontológico. As similitudes aparecem ainda na escolha vocabular e na organização das sentenças, aspectos mais aparentes na terceira e na quinta estrofes.

Em Grande sertão, Riobaldo se desdobra num autoquestionamento que se manifesta através das perguntas inumeráveis que ficam sem respostas. Tenta também esclarecer o inextricável mistério do bem e do mal e as interseções da vida e da morte, do masculino e do feminino, do certo e do errado. Em “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho” vê-­se um desdobramento semelhante ao de Riobaldo, pois a voz poética tenta testemunhar a veracidade da sua experiência pes­soal, mas acaba questionando o que vira: “[...] o viso visto, / sóde meus olhos? Erma campanha”. Como Riobaldo, que se debate em dúvidas, que se serve da ambiguidade e da polissemia dos significados e que se ancora na decifração sempre questionada e adiada, a voz poética de “Instrução do homem” também busca rumos e estratégias de decifração.

A busca epistemológica analisa os mistérios e interrogações que se desdobram em forquilhas e apresentam enigmas indecifráveis. Esse processo hermenêutico, sentido na insistência do eu lírico em desvendar o sentido das palavras, estabelece uma relação dialética com a transmutação do significado e joga com a polissemia da palavra, o aspecto trickster do significado, representado no nome diquixi, “O diquixi dorme com uma cabeça. Se o escrevo ga­nha tantas de resto. E se nunca o escrevo terá deveras uma cabeça?” (PEREIRA, 1990, p. 29).

A segunda parte do poema “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho” também exemplifica a estética de Pereira ao apresentar uma voz poética debruçada sobre o desejo de analisar seu próprio labor e definir as características polissêmicas das palavras e dos significados deslocados.

2

Porém escrevo. Para cem cartas mil lagartas.

Quando a dúvida imagina sentidos a terra já se

viu madrinha de meus provérbios.

 

Verbos provados, de camisa, colete e sapato.

Assim como no ir à missa à procissão para ser

mais amado do que o santo.

 

Quem não risca não sabe os rios da palavra, o

labirinto de haver escrito sem estremecer. Eu

mesmo me avio: parceiro da chuva, do capim

cebola preparo um livro de cortar.

 

E se me perguntam: ainda não é manhã? É quando

eu no verbo faço manhã ou noite. A treva é

a escrita nem mais, nem pois. Deus não entortou

linhas porque escrevia canhoto?

 

Medo só o da escrita com leitor viajante. Mas

se há leitor de lidas, a e b são histórias infernas.

 

Com modos e truques de ouvir.

(PEREIRA, 1995, p. 30).

Nessa parte do poema, Edimilson usa uma das suas marcas poéticas (subverter conotações já estabelecidas para certas palavras e expressões) para questionar significados estáveis na língua e no imaginário cultural e religioso. Ancorando-se no provérbio “Deus escreve certo por linhas tortas”, a voz poética transporta o verso “Deus não entortou linhas porque escrevia canhoto?” Para o nível simbólico ao questionar a ideia de Deus como escritor ou artesão absoluto.

A dúvida inscrita leva o leitor a reexaminar a infalibilidade de Deus. Transmite também a ideia de uma divindade mais próxima à condição humana, um Deus mais capaz de compreender e simpatizar com os erros humanos, porque também se desvia da norma, é uma divindade canhota, inábil e desajeitada. Assim, ao questionar a perfeição atribuída a seres celestiais e dialogar com a tradição literária brasileira, a voz poética de “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho” estabelece um paralelo com o “anjo torto” de Drummond (“Poema de sete fa­ces”), que também não se conforma aos parâmetros canônicos e bíblicos.

Há outros diálogos intertextuais e outras ressonâncias para esse deus “imperfeito”. No capítulo “A Ópera” de Dom Casmur­ro, Machado de Assis descreve um narrado que acusa Deus de ter contribuído para que haja catástrofes na natureza, injustiças sociais, discriminações raciais e outras desigualdades no mundo. O narrado considera que, por Deus não se ter comprometido a velar por sua criação e por não ter supervisionado os projetos do Diabo, acaba contribuindo para a existência de grandes calamidades no mundo. Ainda que o texto de Pereira e o de Machado sejam diferentes tanto em estrutura quanto em conteúdo e gênero, os dois autores criticam e questionam a ideia de um Deus onipotente, absolutamente perfeito, destro, ancorado no conceito do “referente supremo”.14 Ao reescrever o provérbio (“Deus escreve certo por linhas tortas”) e transformá-lo numa pergunta de tom irreverente e audaz, mas também brincalhão (“Deus não entortou linhas porque escrevia canhoto?”), o eu lírico de “Instrução do homem”, como o narrador de Dom Casmurro, subverte significados linguísticos canonizados e transgride normas teológicas.15

A voz poética de “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho” convida o leitor viajante a embarcar no processo de criação com o autor e a pontuar o poema com a sua própria intenção semântica. Enquanto a invocação de elementos naturais (lagartas, terra, chuva, capim cebola, manhã e noite), o uso de provérbios populares e a preocupação com a escrita constituem poderosos sintagmas, a interação que o poema se esforça por estabelecer com o leitor gera uma outra rede de significados flutuantes. O eu lírico reconhece o leitor como um participante na produção de significados do texto, delegando-lhe o status de co-criador da manifestação estética do texto. Por isso, a palavra “lidas” (“Se há leitor de lidas, a e b são histórias infernas”) pode ser analisada tanto como particípio do verbo ler, quanto como leituras mais ou menos ligeiras ou, ainda, como ato e efeito de lidar e trabalhar o texto.

Na terceira parte do poema, o poeta polemiza indireta­mente a teoria estruturalista, ao apontar para a arbitrariedade da relação significante/ significado e enfatizar a pluralidade de significados que o vocábulo diquixi invoca.

3

O nome diquixi escrevo e diquixi não é. Mas

cutelo e cutelo também não fica sendo.

 

O tudo ponho em lápis, fileira formiga de

letras certas. E não me alegro porque não

chegam miúças na terra pós-chuva.

 

Escrevo diquixi e não vinga: outra coisa é

diquixi escrito. Tudo somemos.

 

Entorto linha bem procedo e a escrita morde.

E se escrevo com letra de não grafar: o ledor

resolve?

 

Com Antão em sua caverna tento.

 

O bicho no entanto.

(PEREIRA, 1995, p. 31).

Nessa parte, o poeta escolhe o termo “ledor” (forma me­nos usada de leitor). Semelhante ao “escrivente” de “Avisos de Praça”, por associações semânticas e fonéticas, “ledor” transmite, de uma maneira mais enfática, o ato de trabalhar a interpretação do texto. A posição do poeta é a de “entortar a linha” e deixar que a “escrita morda”. Cabe ao “ledor” encontrar a polissemia dos significados no que for escrito com “letra de não grafar”. Esse constante renovar-se do logos é reiterado em “Sumi­douro”, pequeno poema publicado em Águas de contendas (1998, p.32). À medida que o poeta vai somando a poeticidade da linguagem, os “alargamentos semânticos” (a que se referira Iacyr Freitas) vão-se desdobrando. Os sentidos das palavras surgem entre os traços ortográficos antigos (“griphos”), que representam o passa­do e a contemporaneidade do presente em que tudo é adicionado:

Tudo somemos.

 

O gripho16

Escolhe arreios de viagem.

Esse poema dialoga também com a segunda estrofe da primeira parte de “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho”, em que se conferem uma independência e uma autonomia à escrita, à criação poética, metonimicamente representada pelo lápis:

O lápis, mais que a vontade, quer o nome e a coisa, a família da palavra num corpo. Esclarecido.

Primando pela busca da pluralidade de sentidos, nutrindo­-se na ambivalência que a escolha de palavras se encarrega de criar, a voz poética brinca com as potencialidades conotativas que a palavra “esclarecido” estabelece. Ao separá-la do resto do verso, colocando-a entre dois pontos, o poeta enfatiza que “esclarecido” tanto pode referir-se ao labor da escrita, representado pelo lápis, quanto pode significar claro, iluminado, explicado, elucidado, desvendado, dotado de ilustração, ligando-se assim ao penúltimo verso do poema: “Com Antão em sua caverna tento”.

A referência a Antão - herói religioso, eremita/cenobita do século IV, protótipo do ser recluso que vivia em ermidas primitivas, espírito ébrio de mistério - tem na palavra “esclareci­do” um elo de ligação, pois os chamados “padres do deserto” eram considerados seres iluminados (Cf. STRAND, 2001, p. 1). Se como Antão em sua caverna, o poeta tenta “esclarecer” o leitor, entortando linhas e escrevendo com “letras de não grafar”, o processo de decifração da poesia apresenta filamentos e ramificações que põem em xeque uma convivência pacífica entre o autor, o leitor e a escrita. Por isso, o último verso torna opacos a luminosidade e o esclarecimento atribuídos ao poeta-antão no verso anterior, ao explicar: “O bicho no entanto”. Assim, se o eremita da caverna pode ser interpretado, por um lado, como um esclarecido que produz textos e seguidores, por outro pode ser também relacionado a um modo primitivo de viver, um bicho enclausurado.

A poesia de Pereira mostra que o poeta não é necessariamente o eremita esclarecido, o poema não é um instrumento de redenção e o leitor nem sempre se torna o exegeta ou decifrador do enigma poético. O que existe, de fato, é um estado de contenda, em que autor e leitor perambulam pelos vãos e eiras do artesanato poético, conscientes da impossibilidade de demarcar ou ancorar o logos que se faz sempre mais devoluto, vago e sujei­to a escorregadelas semânticas.

Nas três partes de “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho”, o espaço aberto para a participação do leitor leva o poema a rejeitar a possibilidade de um significado fixo ou de uma única interpretação “correta”. A transmutabilibidade e a pluralidade da palavra desencadeiam um processo no qual a poesia toma as rédeas e a escrita escolhe como deseja embarcar no processo criativo do autor. Os significados encobertos do poema lutam em campo aberto com o pro­cesso de decifração da linguagem. O poema torna-se, assim, uma esfinge tão enigmática e desafiadora (“Decifra-me ou te devo­ro”) quanto os diquixis.

Portanto, como discutido, a produção poética de Edimilson imprime estratégias de uma linguagem reinventada na qual vai-­se descortinando um palimpsesto cultural. Se a sua poesia apresenta uma heterogeneidade de momentos históricos e representa práticas culturais de origem africanas em Minas Gerais, também oferece uma investigação linguística e uma estética apura­da. Por isso, enquanto o imaginário popular e o falar rural de Minas Gerais gozam de destaque na escrita de Pereira: a produção poética dele não se torna um mero veículo reprodutor desses elementos. Pelo contrário, seus textos articulam vários discursos cujos ecos são duplicados pelos interstícios de uma linguagem dilatada, grávida de significados. É uma linguagem que passeia por labirintos, que se faz através de rupturas e desloca­mentos, gerando sempre tensão e contenda entre palavras. Os seus poemas anunciam uma representação simbólica das culturas afro-brasileiras, ao mesmo tempo em que apontam para o processo individualizado e fragmentado da cristalização da escrita. Sua poesia indica que, apesar de o desejo epistemológico estar muitas vezes “preso dentro do circulo hermenêutico”,17 a fluidez da linguagem permite uma abertura para a construção de novos significados linguísticos, históricos e culturais.

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Disponível em <http://geocities.com/padresdodeserto>. Acesso em 8 fev. 2001.

 

1 Essa expressão foi retirada e adaptada do verso “O dicionário das forquilhas com tantos verbos” da primeira subdivisão (1.Bichos e plantas) do poema “Livro da Irmandade com as palavras sobre vivas à devoração do monstro esquecimento”, que Edimilson ele Almeida Pereira publicou em O homem da orelha furada (1995) e em Dançar o nome (2000).

2 As análises dos poemas “Três tambores sagrados”, “Missa conga”, “Tiradentes”, “Avisos de praça” e da segunda parte de “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho”, que integram este estudo, são baseadas em um artigo que inicialmente publiquei em inglês, sob o título “Strategies of poetic language in afro­mineiro discourses”, em Luso-Brazilian Review, v. 37, n. 1, p. 65-82, 2000. Traduzi, revisei e reorganizei partes selecionadas daquele trabalho, acrescentando-lhes no­vos posicionamentos. Acrescento ao presente estudo a análise de quatro outros poemas (“Santo Antônio dos crioulos”, “Sumidouro”, “Lapassi” e “Monjolo e Pilão”) e as partes 1 e 3 do poema “Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho”.

3 Edimilson analisa esse ritual em estudo ainda inédito, “Os tambores estão frios: herança cultural e sincretismo religioso no ritual do Candomble”.

4 A tradução é minha.

5 O autor utiliza a ortografia antiga.

6 Se a teoria literária de linha estruturalista e semiótica rejeita análises que se baseiam na leitura do texto através de ligações biográficas, para evitar os abusos que tais leituras podem gerar, a crítica pós-modernista abriu espaço para análises do texto em relação a aspectos biográficos, criando um diálogo entre as experiências pessoais dos autores e a sua criação literária.

7 Essa palavra aparece também no título de um dos seus livros (Ô, lapassi & outros ritmos de ouvido). Edimilson de Almeida Pereira explica o significado da palavra “lapassi” numa entrevista que me concedeu: “[As pessoas da zona rural] raramente terminam a palavra com consoante. Colocam sempre uma vogal no final da palavra. Aí virou a palavra 'lapassi'. Nada mais, nada menos que 'o rapaz' do português padrão”. (PEREIRA, 1998b, p. 105).

8 A “grande dama” provavelmente se refere a Núbia Pereira de Magalhães Gomes, sua parceira do projeto Veredas Sociais, que faleceu em 1994. Num diálogo via internet com Edimilson, apresentei-lhe a possibilidade de essa “grande dama” ser interpretada como uma pessoa ou a própria poesia ou, ainda, a possibilidade de fusão das duas. Edimilson aceitou a minha interpretação, mas acrescentou que também vê essa “grande dama” como a morte, “[...] que passa por nós como uma mulher que dança num baile, ou como a poesia que se move na página. As três (mulher, poesia e morte) são irmãs no que se refere ao apelo que fazem ao imaginário e à experiência do poeta” (Entrevista inédita, efetuada em 7 de outubro de 2001).

 

9 Edimilson explica a “coisa rara” como aspectos essenciais da convivência humana, “tais como a solidariedade, o respeito, o afeto, a serenidade, a compreensão, a alegria, a liberdade, [...] que vão escasseando à medida que forjamos um modelo de vida excessivamente pragmático, competitivo e materialista” (Pereira, entrevista por e-mail, 7 de outubro de 2001. Texto inédito).

10 Vide “fechamento poético” (poetic closure) e “expectativas residuais” (residual expectations) em Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics, organizada por Alex Preninger et al; p. 964-965.

11 Uso “dicções”, aqui, no sentido utilizado por Jussara Santos (1998). Vide bibli­ografia.

12 Vide o verso ‘O tudo ponho em lápis, fileira formiga de letras celtas’ do poema “A Instrução do homem pela poesia em seu rigoroso trabalho”, em O homem da orelha furada, 1995.

 

13 O significado dos Di-Kishis ou diquixis está delineado no artigo “Inumeráveis cabeças: tradições afro-brasileiras e horizontes da contemporaneidade”, que Edimilson publicou, em parceria com Núbia, em Fonseca, (Org.). Brasil Afro-Brasileiro (2000, p.43-44)

 

14 Cunhada por Jacques Derrida, essa expressão (ultimare referent) refere-se ao conceito de logocentrismo. Vide a introdução de Hazard, Adams e Leroy, Searl em CriticaI theory since (1965).

15 Os relacionamentos intertextuais examinados entre a obra de Edimilson de Almeida Pereira, João Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e Machado de Assis não têm como objetivo validar os poemas de Edimilson ou discutir questões de influência, impacto ou dívidas literárias. Servem para demonstrar os pontos de articulação da tradição literária, visando a estabelecer um diálogo literário entre esses autores.

 

16 O poeta escolheu a ortografia antiga.

17 A questão do epistemológico preso no círculo hermenêutico foi desenvolvida por Hommi Bhabha em O local da cultura, p. 248.

* Maria José Somerlate Barbosa é doutora em Literatura Luso-Brasileira pela Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill e Professora Adjunta da Universidade de Iowa. Dedica-se aos estudos de gênero e raça na literatura e na cultura brasileira, distinguindo-se pelos trabalhos sobre a obra de Clarice Lispector (Clarice Lispector: des/fiando as teias da paixão, EDIPUCRS, 2001 e Mutações Faiscantes/Sparkling Mutations, GAM, 1996) e por estudos afro-brasileiros como Recitação da passagem: a obra poética de Edimilson de Almeida Pereira (Mazza, 2009). Organizou uma coletânea de ensaios sobre representações do envelhecer na cultura e na literatura de países de expressão em língua portuguesa (Passo e compasso: nos ritmos do envelhecer, EDIPCRS, 2003) e publica extensivamente em coletâneas, periódicos e revistas especializadas nos Estados Unidos e no Brasil.

 

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