Canto-poema e samba-blues: estratégias poéticas afrodescendentes na poesia de Edimilson de Almeida Pereira

Adélcio de Sousa Cruz*

Introdução

Toda vez que me aventuro como leitor, através do fértil terreno apresentado pelo texto de Edimilson de Almeida Pereira em Zeosório Blues (2002), pressinto que caminho em território familiar. A dicção ímpar de seus poemas vem cercada pelo auxílio luxuoso e complexo da experiência advinda da diáspora africana nas Américas. Esse livro em particular abre caminho para a obra do autor – é o primeiro de quatro volumes de sua obra poética – que vem dialogando, primeiramente, com a tradição das irmandades do Rosário. Aliando sua experiência de pesquisador na área das Ciências Sociais à sólida carreira literária, criou uma poesia em que as memórias e as identidades afrodescendentes exprimem esteticamente sua história.

A percepção desse percurso pelas alteridades afrodescendentes calcadas na diáspora surgiu a partir de um artigo intitulado “Afro-brasilidade urbana: poética da diáspora em performance” (CRUZ, 2007. p. 120-138). Analisarei aqui, portanto, poemas que não puderam ser contemplados no referido ensaio, pois analisei mais detidamente apenas três textos de seu livro publicado em língua espanhola, Signo cimarrón (PEREIRA, 2005). A escolha por Zeosório Blues foi devido ao teor do livro: por se tratar do primeiro número de uma antologia, recolhida cuidadosamente por Pereira, é possível perceber um arranjo antecipador dos demais títulos do conjunto.

Para tanto, valho-me de um conceito criado pelo próprio poeta – cantopoema – e de outro que dá modestamente os primeiros passos teóricos e que denomino samba-blues. Aproprio-me ainda da ideia de preceito1, que aqui é transcriada como um operador teórico que irá tentar explicitar uma das técnicas da poética presente no blues de Zeosório. Segundo Edimilson de Almeida Pereira, é “viável considerar os textos do congado como um corpus literário” (2002, p. 38). Para tanto, o pesquisador presenteia aos demais críticos literários com o conceito de cantopoemas:

A ênfase sobre o texto revelou uma refinada elaboração da linguagem e dos arranjos sonoros, assim como o perfil criativo de vários indivíduos. Em virtude da importância atribuída à letra e à melodia, acreditamos ser pertinente chamar de “cantopoemas” uma parte dos discursos que os devotos elaboram para o período específico das celebrações e que, mediante a aceitação do grupo, permeia também as suas vivências cotidianas. A leitura das letras, isto é, dos poemas, permite-nos analisar os aspectos que privilegiam o ponto de vista da escritura do texto, ainda que na maioria das vezes a escritura pareça ocupar um plano secundário em relação ao canto. (PEREIRA, 2002. p. 38-39).

Não posso afirmar, mas parece que ao criar um conceito para analisar esteticamente as manifestações poéticas das irmandades Pereira deixa pistas metacríticas, pois os cantopoemas são transportados, em alguns aspectos, para sua poesia. E foi a partir delas que passei à tentativa de articulação da idéia de preceito como operador teórico. O cantopoema traz em si o início do que, no Ocidente, convencionou-se chamar poesia, uma atividade estética que alia canto e palavra. Já o poema composto por Pereira expõe numa página branca os vestígios, ou como quer Edouard Glissand (2005. p. 13-39), os rastros/resíduos do ritmo desse canto ancestral. A sacralidade é transmutada em elaborada transposição, lavrada em técnica. Em seus poemas canto e escritura se alternam, num jogo de sinuoso contraponto. Explicitando: preceito seria então a apurada escrita de palavras e ritmo, nem sempre dada pela costumeira rima, porque a valorização do peso da sinuosidade é dada justamente pela quebra de expectativa por um determinado som. Como exemplo inicial, poderia indicar a dupla de poemas que compõe “PASSEIO” (PEREIRA, 2002. p. 85). O primeiro deles faz direta referência ao poeta afro-norte-americano Langston Hughes e o segundo ao escritor e performer mineiro Ricardo Aleixo. Os poemas são compostos de três quartetos são uma mostra de como o ritmo é trabalhado com e sem o auxílio do esquema de rimas. Em “C/ LANGSTON HUGHES” o poeta utiliza o verso em redondilha maior (heptassílabo) em quase todas as estrofes – “verso dominante nas quadrinhas e canções populares” (GOLDSTEIN, 1985. p. 27) – para, quem sabe, possibilitar ao leitor que não conhece o texto afro-americano, perceber o vestígio da musicalidade presente no idioma original, o inglês. E isso se constrói ainda a partir da aliteração “F” e da assonância “I” presente na quase totalidade dos versos, coincidindo na última sílaba tônica. Entretanto, em “C/ RICARDO ALEIXO”, surgem diante dos olhos os versos de nove sílabas (eneassílabos) e aliterações e assonâncias desaparecem, rompendo o pacto sonoro explicitado no poema anterior – vale ressaltar que ambos estão dispostos em seqüência, na mesma página. No segundo poema, a disposição dos versos em três quartetos, à primeira vista, convida para uma leitura ao som de rimas. Porém, o que governa é a quebra de cadências e cada pequena decepção sonora – entendida como ausência da rima – revela ao leitor outra possibilidade rítmica, na qual domina o inesperado, sempre. Se a temporalidade de Langston Hughes era celebrada por uma espécie de pré-jazz – o ragtime –, para a contemporaneidade de Ricardo Aleixo (em determinada porção dispersa por sua obra) há toda a bagagem acumulada por músicos como Charlie Parker, Miles Davis e, por que não, a pletora representada pela família Marsalis. E o que dizer do samba-blues, a meu ver um primeiro desdobramento de preceito? Isso será melhor apreciado na próxima sessão.

Estratégias poéticas afrodescendentes

Quando a poesia presenteia alguém com um conceito, ou uma ideia da qual se dará o passo inicial, esse sujeito não suspeita da desmedida que lhe espera. Isso, o samba-blues como estratégia poética pensada a partir da diáspora africana nas Américas, vem carregado com esse sabor, uma desmedida. Fui percebendo aos poucos, poema aqui, poema ali, meticulosamente disposto pelas páginas do já citado livro, um jogo sonoro entre aliterações e assonâncias, disponibilizado nas métricas mais diversas. Curiosamente, os sons transpostos para a página não se tratam de tons graves, a marcação do surdo no samba e a do contrabaixo no blues. O que persiste de cada um desses ritmos são os tons agudos: o tamborim por parte do samba e a batida da baqueta próxima ao centro do prato, ao se referir ao blues. E essa mescla traça outro resultado, pois ocorre uma espécie de embate entre os dois sons – o tamborim e o prato – simplificando: couro contra metal. O timbre agudo do tamborim se dá, também, pela pequena circunferência do instrumento. A manobra do baterista – aproximar a baqueta do centro do prato – é a busca por um som ainda mais agudo e, no entanto, simultaneamente, fechado, abafado, de menor intensidade.

Transportando numa linguagem mais literária, tem-se algo similar a utilização de aliterações e assonâncias compostas pela oposição de sons abertos e fechados. Contudo tal simplicidade operatória não se resume a isso. É necessário impedir que especialmente as assonâncias se transformem em rimas óbvias. E esse bailado sonoro pode ser comparado a uma característica musical afro-americana recolhida em Afrografias da memória (MARTINS, 1997, p. 125) denominada “tendência à obliquidade”. Nessa prática “a sincronia e a acentuação são implicadas ou sugeridas”. Assim, se “nota alguma (na música africana) é atacada diretamente”, o samba-blues de Edimilson Pereira é um ataque não constante e indireto aos recursos sonoros aplicados, por sua vez, ao texto poético. Dessa forma, Pereira traz a musicalidade de volta ao poema de modo bastante paradoxal, se pensado dentro de certa tradição musical, pois esse retorno é simultâneo a um afastamento. O leitor aguarda por um som agradável, que completa uma sequência, mas essa expectativa é frustrada – uma tendência da lírica moderna, o choque, a dissonância (FRIEDRICH, 1978). Pode-se exemplificar essa ruptura até mesmo com o título de um dos livros que compõem o “exercício de obra poética”, como denominado pelo próprio autor: Sociedade lira eletrônica Black Maria.

Recapitulando percursos teóricos...

Estudos sobre a influência africana na música brasileira têm sido feitos desde o Modernismo, com Mário de Andrade, naquela primeira grande busca por elementos que explicasse a brasilidade e que, muitas vezes, ficou agarrada à imagem alegórica de um “tupi tangendo o alaúde”. Recentemente, o trabalho de músicos como Chiquinha Gonzaga, o flautista Patápio Silva e até mesmo Pixinguinha passou a receber a devida atenção. O primeiro texto teórico relativo ao tema que chegou às minhas mãos foi Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira (MUKUNA, s/d.). O livro traça um breve mapa das células musicais africanas que podem ser identificadas a partir dos subgêneros do samba. Os poemas de Edimilson Pereira despertaram minha atenção na tentativa de elucidar como tais musicalidades seriam incorporadas no texto poético. O próximo texto teórico foi justamente o também citado Afrografias da memória (MARTINS, 1997). A pesquisadora e teórica Leda Maria Martins inaugura essa travessia – águas da música para as que se referem à literatura –, principalmente, no tocante à produção negra e/ou afro-brasileira.

Leda Martins, a partir de LeRoi Jones (1967), enumera as características contrastantes entre a música africana e a ocidental. São elas: a qualidade rítmica, a diversidade melódica, o canto antifonal, os dispositivos de percussão, o universo narrativo das líricas, a funcionalidade da expressão e a tendência à obliquidade (MARTINS, 1997. p. 123-125), esta última trabalhada no início desta seção. Cabe destacar a diversidade melódica, por representar uma operação que permite a mudança de significado de uma palavra – como ocorre em idiomas africanos – apenas pela modificação de tonalidade da mesma. Talvez, uma primeira demonstração disso, na poesia, seja a estratégia de mesclar samba e blues pelo poeta aqui estudado. Já o canto antifonal, que implica num exercício de contraponto e improviso – uma voz indica um tema e as outras respondem simultaneamente ou de forma individual. A improvisação se tornou uma parte de muita importância para a sobrevivência da música de matriz africana no chamado Novo Mundo. No meu entender, o canto antifonal seria simbolizado na poesia negra e/ou afro-brasileira (e afro-norte-americana, afro-caribenha e afro-latina) pela existência de um eu-lírico que traria em si um “nós”, toda uma coletividade. E mais importante é ainda notar que esse “eu” jamais se percebe completamente autorizado a ser, como os griots, a voz da coletividade. É uma espécie de representação circunstancial e que pode ser desmascarada no próprio fazer poético, que deslizaria, por assim dizer, para territórios não mapeados por improvisos anteriores, pois os mesmos não podem e nem são apenas a fuga do tema. Gostaria ainda de comentar rapidamente a característica denominada funcionalidade da expressão. Ela representa uma diferença considerável quando se compara a arte africana com a que é produzida pelo Ocidente. Para as manifestações de África a questão da funcionalidade é um ponto passivo, pois não há forma de arte que esteja desvinculada do cotidiano. A força dos poemas de Edimilson Pereira consiste em transitar por essa tradição africana e trazê-la para uma mídia ocidental – o livro – sem que essa mesma expressão seja completamente anulada. Pode não mais haver uma função explícita para o poema, mas seus vestígios permanecem ali, pulsando.

Exercitando a leitura poética

Trajeto teórico traçado é chegado o tempo de colocá-lo à prova. A escolha por um poema não vem desacompanhada e decidi apresentar aos leitores algo para que leiam também com os ouvidos. O texto poético que apresentarei a seguir é parte do livro intitulado Veludo Azul e integra a seleção para Zeosório. É um poema composto por seis quadras e antecipo que a “tendência à obliquidade” já surge nos versos ao apenas sugerir uma possibilidade de rima, valendo-se de aliterações (B, D, R e S) e assonâncias (A, E, I). Mencionei que o leitor teria que se valer dos ouvidos, mas o motivo se dá logo no título do texto: “CAROS OUVINTES”. Esse vocativo remete aos programas de rádio, nos quais o locutor busca um contato mais próximo de seu público. Presentes ali os temas caros ao samba dor-de-cotovelo e ao blues, expostos a guisa de uma narrativa:

CAROS OUVINTES

Amor se termina sábado

é como notícia de rádio.

Ganha seus episódios

circulando pelo bairro.

A dor em si aumentada

pune sem elegância.

Cada estilete ou tiro

fere mais duramente.

Lágrima que desça

traz resumido oceano.

A música preferida

áspera não se dança.

E há sempre alguém

rosto limpo braços nus.

Que abre o gás respira

até não respirar mais.

O terror sem monstros

no copo apenas água.

A solução dissolvida

até não se pensar nada.

Amor se termina sábado

é como notícia de rádio.

Paira com sua lâmina

de céu quando maio.

(PEREIRA, 2002. p. 105). 

Os quadros de desespero são vocalizados com esmero pelo locutor/eu lírico/narrador/ pintor. Imagem e som ampliam o conceito samba-blues, agrega-se a partir desse poema a sinestesia de um “gás que respira/ até não respirar mais”. E o etéreo GLP (gás liquefeito de petróleo) é personificado, passa a simbolizar a quem não mais suporta a dor, a perda, o mundo particular aos pandarecos e de cabeça para baixo. Sábado passa a ser o mais cruel dos dias, com direito a lâmina no céu dos candidatos a suicidas. O bairro pode ser o Harlem do poeta afro-norte-americano Langston Hughes ou qualquer outro em que resida uma população negra e/ou afro-brasileira, nesta terra que não se dá nome aos bois, pois à noite todos deveriam ser pardos.

Esse amor que finda também se representa sonoramente. A primeira estrofe rompe a métrica quase rígida presente em “PASSEIOS” (PEREIRA, 2002, p. 85). A leitura se faz por meio de timbres descendentes, o acento ao final de cada verso tem seu volume também reduzido pela mudança inesperada, novamente quebrando a rima. A segunda estrofe retoma a carga sonora com a consoante T em “aumentada”, “tiro” e “duramente”, mas nessa última já se nota a diminuição, outra vez, do volume. O poema incorpora o tenso clima dos fins-de-caso, relações amorosas desfeitas num mês atípico – “maio” – como se o “amor” obedecesse às leis do desejo. Não bastasse a perda, o acontecimento não circula apenas pelas bocas do “bairro”, voa ligeiro em ondas médias e curtas.

Considerações finais

Esse trabalho não se encerra nesse breve artigo, já que é parte do desdobramento de outra leitura dos poemas de Edimilson Pereira. Espero ter colaborado com futuras investidas que ousem atravessar esse caudaloso oceano de produções, navegado por meus ancestrais de África e que lograram deixar sinais de uma existência árdua, sob os auspícios generosos da poesia e da música. Tentei trazer à tona das águas teóricas alguns vestígios que se tornaram conceitos como preceito e samba-blues, pois talvez possa instigar outros pesquisadores a prosseguir/perseguir tais pistas. Essa estratégia da memória sonora que percorre muitas das ruas nas Américas, encontra-se impressa também sob o signo da poesia. Devo sair de cena e deixar os versos finais do poema “PRECEITO”: “Se alguém quer matar-me/ de amor, dance a aspereza./ Nada aqui se faz sem ritmo” (PEREIRA, 2002, p. 127).

Referências

CRUZ, Adélcio de Sousa. Afro-brasilidade urbana: poética da diáspora em performance. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 120-138.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. Tradução do texto por Marise M. Curioni; tradução de poemas por Dora F. da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

GLISSANT, Édouard. Crioulizações no Caribe e nas Américas; Cultura e Identidade. O caos-mundo: por uma estética da Relação. In: GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. (p. 13-39; p. 71-95; p. 97-127).

GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Versos, sons e ritmos. 2 ed. São Paulo: Ática, 1985.

JONES, LeRoi. O jazz e sua influência na cultura americana. Trad. Affonso Blacheyre. Rio de Janeiro: Distribuidora Record, 1967.

MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: O Reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.

MUKUNA, Kazadi Wa. Contribuição bantu na música popular brasileira. São Paulo: Global Editora, s/d.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Zeosório Blues: obra poética 1. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2002.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Signo cimarrón. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2005.

 

1 Retirado da expressão “poemas de preceito” – “letras” dos cantos das cerimônias religiosas das irmandades do Rosário.

* Adélcio de Sousa Cruz é doutor em Literatura Comparada pela UFMG e professor da Universidade Federal de Viçosa - UFV. Membro do grupo interinstitucional de pesquisa “Afrodescendências na literatura brasileira”, vinculado ao NEIA-UFMG. Autor de Narrativas contemporâneas da violência: Fernando Bonassi, Paulo Lins, Ferrez (2012).

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