A poética de Cuti e a configuração do sujeito literário afro-brasileiro

Luiz Henrique Oliveira*

 “A produção literária de Cuti procura romper com a versão oficial encenada pelo discurso pedagógico da nação – que inibe a presença da diferença – bem como, propor-se como um fazer literário onde a presença da coletividade negra se mostra dinâmica e atuante”, elucida Rosane de Almeida Pires na abertura da home-page do poeta (www.luizcuti.silva.nom.br). Nesse sentido, a produção poética também carrega os objetivos de subverter e de ressignificar a condição afro-brasileira. Como quer Zilá Bernd (1987, p. 18), “é, portanto, uma poesia engendrada pela volta à natureza profunda de si próprio, pela reconstrução do eu que conseguiu sobreviver ao estigma da escravidão”. Além do mais, os poemas expõem a dificuldade de se pensar o texto literário fora da complexidade de seu próprio discurso. A tese de que a literatura pode funcionar como uma forma de resistência aos horrores do mundo é fortalecida.

Desta forma, sugere Edimilson Pereira de Almeida buscar um critério pluralista, estabelecido por uma orientação dialética que possa demonstrar a Literatura Afro-Brasileira como uma das faces da Literatura Brasileira – esta mesma devendo ser percebida como uma unidade constituída de diversidades (Callallo, v. 18). O critério pluralista que se propõe, então, engloba o ponto de vista distinto, a servir de marcador étnico e cultural frente à Literatura Brasileira tout court. Cuti, em Sanga, por exemplo, apoia-se num ponto de vista interno e outro em suas poesias para tratar da representação do negro. Vejamos o poema “Colo”: 

façamos auroras
com nossas auras
no horizonte
sinceridades raras.
(Sanga, p. 26). 

O código lingüístico é, não raro, um empecilho para a expressão poética do afro-brasileiro, já que se trata da (in)viabilização de uma idéia no sistema comunicativo do outro. É o próprio Cuti quem alerta: 

há autores negros preocupados com a metalinguagem, a estrutura do texto, a construção de palavras. Não podemos ser ingênuos. A língua não foi estruturada de modo a facilitar o trânsito de nossos sentimentos e idéias com facilidade. O código tem toda uma série de armadilhas, nas quais caímos por vezes. Precisa ser mexido, manipulado com a máxima destreza possível, o que implica lucidez e desconfiança. É a linguagem. (1987, p. 156). 

Sobre o ponto de vista, elemento construído via linguagem, o autor esclarece que “o eu poético negro, quando assumido como tal, dirige-se a um interlocutor branco em postura de lamento (o que mais se tem refletido nos textos e/ou acusação crítica). Quando se pressupõe um interlocutor negro é muito comum espelhar-se um princípio de solidariedade e a reiteração de identidade racial via África-Mãe, paraíso perdido. Mais recentemente a identidade através da tomada de consciência política vem surgindo”. (1987, p. 152-153) Além do ponto de vista interno, há um resgate da ancestralidade cultural e da inserção no texto de elementos da negritude e reversão de valores brancos. Confiramos “Cultura negra”: 

nossa cor sim
e não
reelabora elegbara
[...]
orixás não tomam chás de academias
tampouco em mídia sui-seda
cedem
[...]
poema de negrura exposta
tece vida
na resposta
(Sanga, p. 37).  

Em “Pane”, o eu-poético instaura um descentramento dos vocábulos que remetem ao preconceito racial: 

Quando dá um branco
em um negro
não há moreno que salve
nem mulato que apague
o lixo que vem contido
nesse medo antigo
de escravo.
(Sanga, p. 42). 

Roger Bastide comenta que a identidade afro-brasileira vincula-se à memória coletiva: “talvez não seja impunemente que se traz correndo nas veias sangue da África e, com o sangue, pedaços de florestas ou de descampados, música longínqua do tam-tam ou o ritmo surdo da marcha das tropas, reminiscências de magia e de danças, gris-gris e amuletos de madeira.” (BASTIDE, 1943, p. 8) Nesse sentido, é possível detectar o quanto o negro se configura como sujeito na escrita de Cuti. Ademais, a representação do afro-brasileiro dentro de uma visão de mundo específica nele já “ultrapassou” a fase da militância e tende a ser atualmente produto quase de uma “in-consciência”, ou seja, de um processo de construção literária que inclui naturalmente a auto-afirmação, já que esta se encontraria inscrita na memória histórica absorvida pelo ponto de vista autoral.

Nos últimos anos, Cuti vem se notabilizando não apenas como o dramaturgo militante ou o poeta do protesto negro, mas também como aquele contista atento a situações muitas vezes hilárias existentes no cotidiano dos afro-descendentes. O autor se renova e se diversifica. Sua poesia deixa-se embalar por apelos de tonalidade erótica e, mesmo, humorística. E seu ensaio, embora sem descartar a pesquisa séria e a necessidade de resgatar nomes relevantes da intelectualidade negra, volta-se igualmente para temas como o erotismo na literatura afro-brasileira contemporânea.

Tais predicados incluem os escritos do autor dentre os que instigam permanentemente a leitura e solicitam estudo e divulgação. Até porque sua fortuna crítica é relativamente escassa. Nesse momento rico em transformações no campo dos estudos literários, em que se abrem possibilidades novas para a pesquisa de autores até então esquecidos pela crítica universitária, é preciso estudar a obra de Cuti a partir de concepções suplementares sobre a compreensão do afro-brasileiro enquanto sujeito discursivo.

 

* Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG.

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