Cruz e Sousa: a figura do intelectual emparedado pela sociedade
Maria do Rosário Alves Pereira*
A poesia de Cruz e Sousa é marcada por uma influência da filosofia pessimista de Schopenhauer e pelo simbolismo alemão. Muito se tem questionado acerca da brancura que supostamente permearia seus textos. No entanto, ainda que alguns críticos considerem o poeta como um autor que procurou ocultar suas origens afro-descendentes, através de uma poesia marcada pela extrema habilidade técnica e pela sensibilidade, é válido ressaltar que o vocabulário relacionado à alvura, à atmosfera aérea e nebulosa que aparece em Cruz e Sousa dá mostras apenas de vinculação à estética simbolista que reinava na época. O crítico David Brookshaw salienta que, na verdade, tem-se a “busca de um ideal disfarçado que torna a poesia de Cruz e Souza tão complexa e original e seu simbolismo tão trágico.” (BROOKSHAW, 1983). Obs.: o nome do poeta foi grafado com “z” por esse autor).
Além disso, o autor chegou a trabalhar a questão da negritude em sua poesia, denunciando de uma maneira lírica as mazelas sociais que permeavam a vida dos afro-descendentes de seu tempo (“Da senzala...”, “Escravocratas”) e também chegou a cantar a mulher branca em alguns de seus textos. Afinal, se um branco pode exaltar a beleza negra, por que um negro não poderia exaltar a beleza branca? Essa visão aparece no poema “Lubricidade”:
A mulher branca é colocada num patamar erótico antes atribuído somente às negras, tanto na sociedade quanto na literatura. Ainda que a forma utilizada seja a do soneto clássico, em termos temáticos o texto é ousado por exaltar a mulher branca, símbolo de pureza e castidade conforme os padrões sociais, em toda sua sexualidade. O eu-lírico não assume uma postura contemplativa, é um ser desejante que enxerga a mulher como um ser desejável, ou seja, esta passa a ser vista carnalmente.
No entanto, é no texto Emparedado que sua condição de afro-brasileiro aflora com todo vigor. As vivências do intelectual negro são problematizadas ao longo do texto, escrito em prosa, requintado, que se utiliza da símile e de um certo lirismo para, discursivamente, mostrar a encruzilhada de culturas e a tensão proveniente dos conflitos raciais. O caráter lírico, portanto, vai cedendo lugar ao drama, e o texto torna-se, assim, uma espécie de manifesto. O Emparedado traz à tona as reflexões de um artista marcado por formas diversas de exclusão, tais como raça e poder social, legitimadas por discursos científicos e estético-culturais vigentes no século XIX. Dessa forma, o eu-enunciador do texto é emparedado pelo preconceito, pela ignorância e por esses discursos legitimadores de uma sociedade branca que não aceita as diferenças:
Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás [...] numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a Esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira [...] Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências [...] Se caminhares, enfim, para trás, ah! Ainda uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo – horrível! – parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto... ("Emparedado", p. 390-391).
O que se vê, então, é a interiorização de uma questão social, ou seja, ainda que se possa dizer que se trata de um discurso da rememoração biográfica, o eu do texto não é apenas um eu biográfico, mas nele se encontra o discurso de toda uma coletividade. A palavra é aquela que assume uma força revolucionária, é o “verbo soluçante”, pois tem o poder de abalar as estruturas sociais. Para o autor, a arte deve desprender-se de idéias pré-concebidas, pois sua grandeza supera qualquer fator de ordem social ou racial. Dessa forma, critica o racialismo que condena certos povos à ignorância eterna “por uma questão banal da química biológica do pigmento”, ou seja, que os condena por procederem “de uma raça que a ditadora ciência de hipóteses negou em absoluto para as funções do Entendimento, e, principalmente, do entendimento artístico da palavra escrita” ("Emparedado", p. 381).
Poeta de singular habilidade com o trato da palavra, simbolista representativo de seu tempo e intelectual negro consciente de sua condição e de seus propósitos, Cruz e Sousa foi considerado por alguns críticos como o maior poeta brasileiro. Nas palavras de Roger Bastide, trouxe aos homens a “mensagem da sua experiência” e apresentou-a em “poesia de beleza única, pois que é acariciada pela asa da noite e, todavia, lampeja com todas as cintilações do diamante” (Poesia afro-brasileira Apud BOSI, 1994, p. 275). Dessa forma seus textos, tanto em verso quanto em prosa, mostraram ao mundo não apenas o lirismo de um poeta simbolista, mas também o universo que permeia o imaginário do intelectual negro.
Referências
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Tradução de Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.
FONSECA, Jair Tadeu. Cruz e Sousa: as expansibilidades do emparedado. Aletria: revista de estudos de literatura, Belo Horizonte: POSLIT/CEL, Faculdade de Letras da UFMG, v. 9, 2003.
SOUSA, Cruz e. Poesias completas: broqueis, faróis, últimos sonetos. Introdução de Tasso da Silveira. São Paulo: Publifolha, 1997.
SOUSA, Cruz e. Evocações. Edição fac-simlar; Apresentação de Esperidião Amin Helou Filho. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1986.
SOUZA, Cruz e. Poesia completa. Introdução e Organização de Zahidé L. Muzart. 12 ed. Florianópolis: FCC; FBB, 1993.
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* Maria do Rosário Alves Pereira é Mestre e Doutora em Letras, Literatura Brasileira pela UFMG e professora do CEFET-MG, campus Belo Horizonte. Coautora de Literatura afro-brasileira, 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., 2019).