Emparedado: o sentimento do oprimido na voz ousada do poeta negro

Aciomar Fernandes de Oliveira*

O emparedado, texto em prosa que integra o livro Evocações do poeta catarinense, João da Cruz e Sousa, é um febril protesto contra as teorias racistas e a discriminação contra o negro, tão intensos no final do século XIX. De origem pobre, o poeta, nascido na pequena cidade de Desterro, atual Florianópolis, faz da sua prosa um importante instrumento de libertação. Sobretudo libertação da subjetividade que não encontrava espaço no parnasianismo, mas que se torna um dos principais elementos do simbolismo, à época muito influente na Europa. Cercado pela opressão escravista, ainda que alforriado, Cruz e Sousa lança um grito que está além da cor da pele, mas que encontra força na agonia dos afro descendentes. Sob influência da retórica condoreira abolicionista de Tobias Barreto e Castro Alves, além da inovação estética de Verlaine, Mallarmé e Baudelaire, Cruz e Sousa fala com ousadia das inquietações do negro. O jovem poeta foi o responsável por marcar o simbolismo no Brasil com traços singulares em relação à escola francesa, introduzindo a etnicidade em sua prosa poética. Disfarçada na individualidade do poeta, encontra-se a voz coletiva, o clamor de um povo cercado e acuado. Povo que, ao vencer um obstáculo, encontra outro e outro continuamente. A voz do eu enunciador carrega, em sua lírica, o lamento e o sonho de um dia alcançar plenamente a liberdade. A angústia da longa espera o atormenta!

Ah! Aquela era bem a hora infinita da esperança!

De que subterrâneos viera eu já, de que torvos caminhos, trôpego de cansaço, as pernas bambaleantes, com a fadiga de um século, recalcando nos tremendos e majestosos infernos do Orgulho o coração lacerado, ouvindo sempre por toda parte exclamarem as vãs e vagas bocas: Esperar! Esperar! Esperar! (Souza, 2000:660)

Afeito ao ideal libertário, tal como Vitor Hugo, o poeta era um sonhador, mas se digladiava em seu inferno interior porque tinha que viver no limiar entre o negro e o branco. Mesmo sendo intelectual nos moldes literários canônicos, buscava o rompimento, a transgressão. O autor sabia ser necessário usar a linguagem da elite branca, para fazer-se ouvido por ela. A beleza formal do que escrevia assemelhavam-no aos parnasianos e; de outro lado, a agudeza de suas palavras, a sua ousadia, identificavam-no à chamada escola dos novos, os repudiados simbolistas. O Emparedado é a voz de um poeta maldito tal como Baudelaire. Sua terra mãe, a África, é o loccus horrendus, deserto e amaldiçoado por Deus. África, pátria de Cam (personagem bíblico, que teria sido almaldiçoado pelo pai, Noé), de onde o negro, esse ser tido como maldito, é capturado e escravizado por outros povos. No final do texto, há uma dimensão trágica, exposta visceralmente pelo poeta que evoca um novo “Dante Negro” ( referência ao escritor Dante alihiere, autor de A divina Comédia, célebre obra da literatura universal), que seja capaz de retratar com tal realismo o inferno dessa gente. Para Cruz e Sousa, a história da África e de seu povo é uma epopeia; no entanto a dor e a saudade não lhe arrancam o sentimento duplamente perverso, de negro e poeta oprimido. Todas as sensações o impelem, conduzem-no à subida ao Gólgota (monte que na Bíblia serviu de cenário ao sacrifício de Cristo). Se sua caminhada é redenção, não pode concretizar-se sem martírio, mas a voz íntima do poema o confronta e tenta despertá-lo de seu sonho, impelindo-o para a frustração da realidade e a impossibilidade de realização de seus sonhos, para o que as civilizações e sociedades fatigantes e caricatas são o seu impedimento. O poeta e o eu eu nunciador se confrontam, porque um insiste em lembrar ao outro a sua triste condição, os seus limites.

 

_ Tu és de Cam, maldito, réprobo, anatematizado! Falas em Abstrações, em Formas, em Espiritualidades, em Requintes, em sonhos! Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses dos arianos, depurado por todas as civilizações, célula por célula, tecido por tecido, cristalizado o teu ser num verdadeiro cadinho de idéias, de sentimentos_ direito, perfeito, das perfeições oficiais dos meios convencionalmente ilustres! Como se viesses do Oriente, rei!, em galeras, dentre opulências, ou tivesses a aventura magna de ficar perdido em Tebas, desoladamente cismando através de ruínas; ou a iríada, peregrina e fidalga fantasia dos Medievos, ou a lenda colorida e bizarra por haveres adormecido e sonhado, sob o ritmo claro dos astros, junto às priscas margens veneradas do Mar Vermelho.! (Souza, 2000: 672)

 

Tal como o eu enunciador, Cruz e Sousa se vê a todo tempo “Emparedado”. Emparedado porque para ser ouvido era necessário usar a linguagem da elite intelectual branca. Embora a sua poesia fosse bastante apreciada e seu livro Broquéis, considerado por muitos um sucesso, foi-lhe negado tantas vezes o ingresso na academia Brasileira de Letras.

A prosa poética do Emparedado constituiu um importante protesto de Cruz e Sousa contra a “ciência de hipóteses”, cujas teorias eram profundamente questionáveis, mas se impunham no meio intelectual brasileiro. Teorias francamente difundidas por intelectuais como Taine e Gobineau na Europa e, no Brasil, por Nina Rodrigues. Cruz e Sousa combatia as teorias científicas de inferiorização da raça negra, aliadas aos interesses escravistas. Essas teorias negavam que o homem negro fosse dotado de capacidade intelectual. O Emparedado denunciava a forma como as nações novas e colonizadas eram oprimidas e como, devido às teorias de hierarquização de raças, essa opressão pesava duplamente sobre o negro.

Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto!... (Souza, 2000:673)

Dotado da sensibilidade dos parnasianos e com uma intensa dedicação pela busca de sonoridade e de imagens apropriadas para dizer o que lhe inquietava, o Cruz e Sousa de Emparedado é um homem amargurado e ao mesmo tempo, consciente das imposições que sofria como negro. O que seria então, obra senão um manifesto de resistência. Nela está a contestação às injustiças que a sociedade infringia ao negro, como a que se deu quando Cruz e Sousa foi impedido de assumir o cargo de promotor de Laguna, para o qual havia sido nomeado. Mesmo tendo recebido uma excelente educação, além de ter sido criado por uma família branca da aristocracia, sofria o preconceito de uma sociedade escravocrata, às voltas com a tensão gerada pelos movimentos abolicionistas.

A prosa lírica da obra expressa o manifesto do poeta e vai na contramão do caráter objetivo do parnasianismo presente à época, ao expor a subjetividade do poeta. Através do seu desabafo ousado, Cruz e Sousa dá lugar e vez às potencialidades do negro. As pedras, as paredes, que o cercam são os duros conceitos de uma sociedade racista e escravista, e também produtos de uma cultura fortemente discriminatória; que nega ao negro a liberdade e a expressão. Quase três séculos depois e o Emparedado continua atual, unindo-se às vozes que se opõem ao racismo e ao preconceito ainda presentes na sociedade brasileira. O manifesto continua vivo, clamando pelo reconhecimento de intelectuais e artistas negros, que somente por meio da ousadia e da rebeldia conseguem se fazer vistos e ouvidos. Ainda permanece uma voz inquietando a consciência de negros e brancos. Uma voz que parece interior, mas que é apenas o reflexo dos conceitos discriminatórios que ainda pesam sobre a sociedade brasileira e insistem em apresentar-nos a diferença, nunca como elemento de aceitação e convivência mas, no entanto, como repulsa e preconceito. Embora numa sociedade que afirme não haver racismo, sob a ilusão da chamada democracia racial, o afro-brasileiro é um ser emparedado, oprimido.

Referências

BOSSI, Alfredo. Poesia versus Racismo. Estudos avançados. [ online]. 2002, vol.16, no 44 [citado 2007-03-13], pp.235-253. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=SO103-40142002000100015&Ing=pt&nrm=isso. ISSN 01034014 doi: 10.1590/s0103-40142002000100015 Acesso em 13/03/2007.

CRUZ e SOUZA, João da. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. 1995.

MAGALHÃES JUNIOR, R. Poesia e Vida de Cruz e Sousa. Brasília: Civilização Brasileira, 1975. 3 ed.


* Mestrando em Letras pela UFMG

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