Carlos de Assumpção: resistência e afirmação do negro

Zélia Maria N. Neves Vaz*

Eu sou a noite
Sem destino
Esbofeteada pelo vento
Nesta selva branca

Carlos de Assumpção

Ao tentar perceber a que se prende a obra Quilombo, de Carlos de Assumpção, deve-se ter em mente que o autor encarrega-se de um universo poético o qual perpassa o âmbito da literatura marcada por uma forte militância, pela crítica ao preconceito enraizado na cultura brasileira e ainda pela afirmação ou recuperação da identidade negra perdida. Outros aspectos caracterizadores da obra aqui analisada, e que funcionam como formas de se reconhecer a literatura negra – a partir dos pressupostos definidos por Zilá Bernd para esta linhagem – são: “conscientização, comunicação em particular com o sentimento negro, reencontro da verdadeira imagem, visão do negro livre de estereótipos e evidência de uma intencional atitude de resistência” (BERND, 1987, p. 81). Este último ponto talvez possa ser considerado um dos mais definidores da produção poética de Carlos de Assumpção, uma vez que se encontram em sua obra vários momentos que tratam deste assunto em especial.

Sua poesia está indelevelmente marcada pelo engajamento militante com a afro descendência, como em “Canto dos Ancestrais”: “minhas irmãs, meus irmãos / Os ancestrais fazem de mim seu instrumento”. Essa herança é invocada para emoldurar o comprometimento do poeta com a causa de todos os oprimidos: “Saibam que minha luta / Está enraizada nas lutas dos meus avós / e também saibam que minha luta / Não é só minha / É luta de todos nós.” (1984, p. 18-9). Assim, passado e presente são invocados e o eu poético se coletiviza num nós que clama pelo resgate do papel histórico exercido pela diáspora africana no Brasil. Em “Complexo”, Assumpção denuncia a “nação que tem vergonha de si mesma” e que deseja apagar a presença da cultura afro-brasileira pela via da discriminação racial: “Eu era livre na África / Não vim aqui porque quis / De repente precisaram de braços que construíssem este país / E me arrebataram para cá preso em correntes / [...] Fui eu (repito e repetirei sempre) fui eu quem construiu o que esta nação tem / Não quero saber de coisa alguma / Só sei que esta nação é minha também” (1984, p. 19). É este tom militante que caracteriza a maior parte de sua produção.

Como uma outra exemplificação desta poesia de resistência, atentaremos para o poema de maior expressão do autor, importante referência para aqueles que se identificam com a causa da negritude:

Mesmo que voltem as costas
Às minhas palavras de fogo
Não pararei de gritar
Não pararei
Não pararei de gritar 

[...] 

Senhores
O sangue dos meus avós
Que corre nas minhas veias
São gritos de rebeldia
(ASSUMPÇÃO, 2000, p. 33)

O poema acima, intitulado “Protesto”, carrega em suas palavras um símbolo de força e reconta a história do negro a partir de seu próprio ponto de vista, superando dessa maneira, a ótica do branco, muitas vezes deformadora do verdadeiro passado dos escravos no Brasil. Esta elite branca que no período escravocrata declarou livre o contingente negro do país “sob ovações e rosas de alegria”, para usar as palavras do poeta, não escapou de ser ironizada nos versos de Carlos de Assumpção. A Lei Áurea é constantemente discutida pelo autor, de tal forma que encontramos referência a ela em quatro poemas no interior de Quilombo. No poema “Lei Áurea”, o caráter irônico evolui para o sarcasmo rebaixador:

Viva a princesa Isabel
Viva a senhora redentora
Agradecimento profundo
à bondosa princesa que em maio
nos deu de bandeja a Lei Áurea 

Lei Áurea verdadeiro cheque sem fundo
(ASSUMPÇÃO, 2000, p. 39)

Percebe-se dessa forma que Assumpção não difunde a imagem positiva da princesa Isabel disseminada na história oficial do país, já que a Abolição da Escravatura beneficiou majoritariamente àquelas pessoas detentoras do poder político e, sobretudo, econômico da época. E, aqueles apontados como “os favorecidos”, se viram em uma “liberdade” que representaria uma exclusão ainda maior, em uma “prisão mais ampla” de “serpentes futuras” (“Protesto”). Nesse sentido, o princípio que afirma: “todos os homens são livres e iguais perante a lei” assim como a ideologia de uma nação una que comporte todos os seus “filhos” de modo harmônico e democrático, certamente nunca existiu na prática. Sempre convivemos com um tipo de discurso que ratifica uma noção de cultura igualitária com a qual todos que dela fazem parte se reconhecem e se identificam. Este discurso, que acaba por fazer parte de um imaginário popular, pode ser explicado no conceito de nação utilizado por Stuart Hall em seu livro A identidade cultural na Pós- modernidade:

A nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da ideia da nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica seu ‘poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade’. (HALL,1992, p. 49).

Através do fragmento citado, cabe ressaltar que os negros foram impedidos de compartilhar com tal lealdade e identidade, uma vez que o sistema de representação cultural, explicitado acima, está pautado por referenciais majoritariamente brancos. Isto significa dizer que as representações simbólicas, as crenças, os valores, os padrões negros, enfim, tudo que a eles esteja relacionado, não serão compatíveis com o sentido hegemônico de nação. Por outro lado, há os negros que buscam se reconhecer nesse padrão cultural dominante, renegando suas raízes a fim de serem aceitos numa sociedade etnocêntrica que rebaixa e discrimina as manifestações da cultura afro-brasileira. O poeta Adão Ventura, que, assim como Assumpção busca uma literatura afro-descendente que rompa com as imposições do dominador, retrata em seu poema “Preto de Alma Branca Algumas Conceituações” a que se sujeitam esses negros que não se aceitam enquanto tal, procurando uma maneira de inserir-se no mundo do branco se distanciando de suas origens africanas.

Já o poema de Assumpção “Três Quadrinhas” aponta para esta mesma questão, ou seja, trata do negro que tem em comum apenas a cor de sua pele, pois não possui a postura e orgulho de ser afrodescendente: “minha prima é mestiça / Não é negra como eu sou / Alguém a chamou de negra / Minha prima desmaiou”. Na próxima estrofe o poeta salienta que para ser considerado negro não basta apenas o fator fenotípico, é preciso ir além, ser preto é mais uma questão interna que propriamente social: “ser negro não é ser preto / Ser preto não é ser negro / Cor de pele não é tudo / Negro é quem se sente negro”. (ASSUMPÇÃO, 2000, p. 17).

Carlos de Assumpção busca uma identidade com a qual o negro possa verdadeiramente encontrar-se, valorizar-se e ser aceito, recria uma perspectiva divergente daquela dos brancos, convoca os pertencentes de seu grupo para que tomem consciência de quem são e de sua cultura. Ele objetiva desconstruir um universo de preconceitos enraizados na sociedade que transitam até mesmo entre os próprios negros, que assimilaram uma maneira de pensar e sentir branca. Em seu poema “Que negros somos nós”, é evidente o alerta de Carlos de Assumpção com relação àqueles que ainda não despertaram para a realidade de união e luta contra os que massacram os símbolos, as memórias e as raízes concernentes à negritude:

Que negros somos nós que descrentes nos envergonhamos da
nossa religião que nós muitas vezes chamamos de feitiçaria
folclore mitologia

[...]

Que negros somos nós principalmente os de movimentos
negros que dizemos combater preconceitos e temos às vezes
mil preconceitos no peito

[...]

Que quando conseguimos boa situação na vida tantas vezes
nos isolamos em torres de marfim ou casamos com pessoas
brancas só porque são brancas

[...]

Que negros somos nós que desvivemos desunidos
desconfiados uns dos outros por aí sem rumo sem líder nenhum
Que negros somos nós que não mais empunhamos a espada
afiada de Ogum.
(ASSUMPÇÃO, 2000, p. 49)

Pode-se perceber que Carlos de Assumpção aponta para o complexo e longo caminho a ser percorrido a fim de que o preconceito não mais exista. Compromissado com tal questão e consciente da difícil realidade vivenciada pelos afro-descendentes, o poeta insiste no problema e coloca em discussão agora o que significa ser negro no Brasil, país onde se afirma existir uma democracia racial, mas o que verificamos na prática é a predominância do racismo: “de repente / Duma viatura / Saltam sobre mim / Vários policiais / [...] / Não me pedem documentos / Não me perguntam nada / Basta a minha cor” (ASSUMPÇÃO, 2000, p. 27). Constatamos neste fragmento o caráter inverossímil do discurso que perpetua a idéia da harmonia entre as raças, pois o poema mostra claramente a polícia a serviço do preconceito. Assumpção retrata também como ocorre o impedimento de inserção do negro em uma sociedade, que se diz igualitária, como foi dito anteriormente, mas que não o aceita enquanto ser capacitado, “Questão de Sorte” é um exemplo de tal problemática:

O negro era inteligente
O branco não
O negro era culto
O branco não
O negro era educado
O branco não
O negro era capaz
O branco não 

Foram juntos pedir emprego
A uma mesma repartição
Umas três vagas havia
Fizeram sua inscrição 

Decisão
O branco foi contratado
O negro não.
(ASSUMPÇÃO, 2000, p. 69)

Nota-se, então, que a discriminação racial sobrepõe-se à capacidade intelectual do afrodescendente, a tal ponto que a sociedade não o aceita mesmo quando este possui preparo e conhecimento superior ao do branco. No texto, o advérbio “não” aparece vinculado inicialmente à esfera semântica do branco, como forma de destacar os predicados do candidato negro junto ao mercado de trabalho. Mas o advérbio retorna no final para assinalar a negativa recebida por este no momento da contratação. “Questão de Sorte” ganha assim um forte componente irônico, que indica a permanência da discriminação no cotidiano dos afro-brasileiros.

No poema “Ponte de Ouro” percebe-se uma certa melancolia por parte de Assumpção. Através de seus versos, o eu-lírico nos deixa a impressão da impossibilidade de termos um país livre de preconceitos: “vou-me embora... Vou-me embora... / Ninguém escuta meu grito. / Tenho uma ponte de sonho / De minh’alma pro infinito”. O poeta sente-se descrente com relação aos brancos, os quais seu grito não consegue sensibilizar: “vou-me embora, estou cansado, / Cansado, irmão, vou-me embora. / Com tantas almas de pedra / É inútil esperar a aurora...” (ASSUMPÇÃO, 2000, p. 63). Porém, na poesia intitulada “Resistência”, encontrada nas páginas finais de seu livro, o otimismo predomina, principalmente no que diz respeito ao destino de sua raça: “em toda parte / Muitas mãos de ébano / Estão tecendo o destino da Raça / Sei que não vou desaparecer / Não tenho mais medo da morte / não tenho mais medo de nada / Tocai tambores tocai / Tocai tambores da alvorada” (ASSUMPÇÃO, 2000, p. 87). O sujeito de enunciação festeja, pois acredita que o som de seus tambores, a consciência negra, resiste diante de inúmeros obstáculos. Os afro-descendentes, atingidos por esta música, estão contribuindo para que a igualdade de direitos, apresentada metaforicamente no poema por meio do signo “alvorada”, possa, enfim, ser uma realidade.

Assim, a militância caracteriza o cerne da poética de Carlos de Assumpção. Porém, em alguns momentos do livro Quilombo, sua poesia perde a contundência política para ganhar um tom lírico. Em “Mulher Negra” encontramos a exemplificação desta afirmativa: “eu canto a tua beleza / A noite de tua pele / A lua estelar de teus olhos oblíquos / O chocolate de teus lábios grossos / O luar de teu sorriso / Os teus cabelos que não se desalinham / Ao sopro do vento”. (ASSUMPÇÃO, 2000, p. 51). Percebemos um fator relevante no que diz respeito ao ponto de vista adotado por Assumpção ao se referir à mulher afrodescendente. O campo semântico construído apresenta-se na poesia como forma de valorização desta figura feminina, por exemplo, no momento em que ele associa o “chocolate” aos “lábios grossos” da negra. Assumpção cria, assim, um padrão de beleza que, como já é sabido, não possui espaço na estética ocidental. É importante ressaltar também, que esta mulher presente no texto supera os estereótipos da mulata assanhada, da negra a serviço do prazer, e tantos outros que encontramos reproduzidos na sociedade e na literatura brasileira.

Nesta vertente menos engajada de Carlos de Assumpção, não poderíamos deixar de destacar o poema “Prece”, no qual o poeta faz uma paródia da oração “Pai Nosso” em que a referência passa a ser Castro Alves. O eu-lírico pede força, inspiração e a chama da liberdade ao poeta abolicionista: “Castro Alves que estais no Céu / santificado também seja o vosso nome / Olhai por nós agora e sempre do além / Estendei as mão sobre a cidade / Acendei a chama da liberdade / do amor da fraternidade / [...]” (ASSUMPÇÃO, 2000, p. 45).

A obra de Carlos de Assumpção abrange inúmeros outros temas, igualmente relevantes, mas não trabalhados aqui. Dessa forma, é importante ressaltar nos poemas do livro Quilombo a presença da reversão do simbolismo estabelecido pelo universo cultural branco. Em um deles, denominado “Mãe”, o poeta associa a figura materna à noite transformando-a em símbolo positivo, desfazendo-se da visão estereotipada que permeia o imaginário de muitos. Verifica-se também a existência da música que se apresenta nos vários poemas como forma de unir os negros, como forma de libertação e como resistência. Há ainda referência a Zumbi e aos orixás do candomblé, sempre de forma engrandecedora. No prefácio do livro Quilombo, Irene Sales de Souza retrata muito bem a que vieram e o que representam os poemas de Carlos de Assumpção:

Sua obra, sua luta não é em vão: seus poemas, seu ser, sua consciência clamam por justiça, denunciam, levam à reflexão, mostram a condição do negro em nossa sociedade. Ora eles são gritos de rebeldia, ora revelam ligeireza e sagacidade, ora evocam os orixás, ora denunciam as injustiças contra os homens negros, o bóia-fria, as crianças, ora ternamente reconhecem a maternidade, amam as mulheres e derramam sobre nós uma chuva de estrelas. (SOUZA, 2000).

Referências

BERND, Zilá. Negritude e literatura na América Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

http://bayo.sites.uol.com.br/poemas_carlosassumpcao.htm

Cadernos negros 7: poesia. São Paulo: Quilombohoje, 1984.

 


* Graduanda em Letras pela UFMG

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