A nova face da escravidão

Eduarda Rodrigues Costa1

Nos poemas de Bahia, percebemos a recorrência de uma voz individual que cede lugar a uma voz coletiva capaz de representar a afro-brasilidade. Essa voz encontra-se empenhada em preservar e fazer reconhecer o valor de sua herança cultural africana. Seus poemas ressaltam a importância do debate e da conscientização do lugar social ocupado pelo negro no Brasil, fazendo da denúncia da marginalização o tema principal.

Em poemas publicados em Cadernos Negros 11, de 1988, contexto do centenário da abolição da escravatura no Brasil, percebe-se a predominância de poemas de protesto, que apontam para uma realidade atual que não se difere muito da época do cativeiro. Tal processo pode ser observado em “Até quando?”, no qual é explícito o tom de indignação do eu-lírico frente à condição de desigualdade de direitos a que os afro-descendentes são submetidos desde a época escravista.

Até quando os grilhões
a limitar nossa ação?
até quando a escravidão
prevalecerá entre nós?

Quando deixaremos de ser
a sub-raça a subserviência
dos medíocres feudais?

 Quando sairemos ilesos
desse estágio medieval
no qual estamos submersos?
Até quando perdurará
essa beocidade extrema
rotulada de RACISMO?

(Cadernos Negros 11, p. 23)

O mesmo discurso pode ser notado em “Abolição Sofismática”, poema irônico que denuncia a Lei Áurea como uma falsa liberdade; mostra a situação pós 1888 como uma farsa criada pela aristocracia detentora do poder, que ainda mantêm os negros e mulatos em condições subalternas, em uma nova escravidão:

[...]

Há cem anos oficializaram nossos sacrifícios
traçando fronteiras indefinidas
enquanto a tortura exclusivamente física,
era substituída pela moral/psicológica
a qual nos conduz
ao âmago dos precipícios.

(Cadernos Negros 11, p. 20)

O poema reflete sobre a condição atual do negro que, frente às oportunidades desiguais, o preconceito étnico e a imobilidade social. O texto ainda denuncia a existência uma nova forma de escravidão, agora “moral/psicológica”. Em “Quadrantes escuros” também se percebe o tom de revolta e de denúncia quanto à marginalização do afro-descendente no processo de desenvolvimento de seu país:

Os morros, as masmorras
Favelas/Palafitas/Calabouços:
Nos quadrantes/ancoradouros
na atroz diuturnidade...

 Os guetos, presídios
fronteiras da desestrutura.
Prioridades reservadas
à nossa pele escura...

(Cadernos Negros 11, p. 22)

As instituições carcerárias são como as masmorras do tempo do cativeiro e os morros e as favelas também são consideradas prisões de uma “nova escravidão”, marcada pela subalternidade da população afro-descendente dos circuitos sociais, das instituições de ensino, do mundo do trabalho.

Podemos observar que o tom do protesto dá lugar a uma reflexão sobre as questões da identidade negra. Através da metalinguagem, novamente observa-se a presença de um eu que fala por e para sua coletividade a fim de contribuir para a conformação da consciência negra e enfraquecimento das barreiras étnicas:

Nesses versos negros
que não seja o meu poema
apenas um grito escrito
com a negritude da tinta,
Mas, que neles alguém se sinta
espelho do meu inspirar
sob a tradução da minha negritude.
Busco aqui, não traçar
a vil fronteira étnica
que faz do ser humano,
maestro/algoz da imbecilidade:
Muito mais do que tudo isso,
Almejo a conexão da sensatez.

(Cadernos Negros 11, p. 18)

É possível observar a presença de um eu-lírico que assume sua negritude e, no momento em que dá cor aos seus versos, faz da escrita instrumento para o despertar de uma consciência negra desejosa de uma conexão sensata entre as etnias.

Mas não só de protestos se sustentam os versos de Bahia. O poema “É noite...” apresenta a valorização da cor e do canto negro ao compará-lo à noite que, por sua vez, remete ao tempo em que os escravos faziam do canto um modo de resistência frente ao cativeiro e aos valores culturais dos senhores. Tal signo carregado de metaforicidade oferece um sentido positivo à especificidade negra, relativizando os valores, até então, dominantes. Pode-se perceber ainda uma nova conotação dada à palavra “breu”, a qual costuma-se atribuir certo tom pejorativo. Neste caso, tal termo funciona como elemento de exaltação da negritude:

É noite sem raios de luar
E a noite é nossa cor.
À revelia da noite,
realçam as constelações,
À revelia da vida
realça vivo, nosso canto.
É noite e o BREU
constitui-se no ELO
entre a luz, a noite e NÓS...
...Somos parte da noite.”

(Cadernos Negros 11, p. 23)

A partir dos poemas aqui apresentados percebe-se que o poeta problematiza a condição do afro-descendente na atualidade, quando levanta questões como a marginalização a que o negro liberto foi submetido, e ao denunciar a miséria dos dias de hoje como o cativeiro da modernidade. Além disso, o poeta afirma sua identidade negra através do discurso literário - discurso este que agora também pertencente ao negro, que passa a deter a voz do seu texto.

Referências Bibliográficas

Cadernos negros 11. São Paulo: Quilombhoje, 1988.

1 Graduada em Letras pela UFMG.

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