Reflexões de dois burros falantes: qual é a moral da história nesta crônica fabular de Machado de Assis?*

 

Elisangela Aparecida Lopes1

 

RESUMO: O objetivo desta comunicação é analisar a crônica de Machado de Assis, publicada a 16/10/1892, na coluna “A Semana”, do jornal Gazeta de Notícias, na qual o diálogo entre dois burros e os ares de fábula que o texto apresenta traz à tona questões relativas à recente liberdade concedida aos negros no Brasil. De forma velada, a crítica aos resquícios da escravidão se faz presente pela boca dos personagens que, a partir de uma visão de “dentro”, analisam a sociedade brasileira dos fins do século XIX.

 

PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis, crônica, alegoria, crítica ao sistema escravocrata.

 

 

“A verdade fala pela boca dos pequeninos”

Machado de Assis

“A fábula (Mythos) é uma fala (logos) mentirosa que retrata uma verdade”

Theon (séc. I d.C.)

 

Este artigo tem como objetivo apresentar um breve estudo de uma das crônicas machadianas publicadas na coluna “A Semana”, do jornal Gazeta de Notícias, em 16/10/18922. Nela, Machado de Assis nos apresenta uma fábula na qual o escritor vela, desvela, revela reflexões acerca da liberdade dos escravos.

Segundo nos alerta David Arrigucci Jr3., a crônica se liga ao resgate da memória, ao “registro da vida escoada”. Sendo assim, pode ser entendida como instrumento que nos proporciona revisitar o passado ou contemplar o presente em seus modos, costumes, trâmites políticos e sociais. Para este crítico, a crônica pode ser encarada como “documento de toda uma época”, “testemunho de uma vida”, “meio de se inscrever a História no texto” (1985, 43). Por esses motivos, as crônicas machadianas se configuram como um importante instrumento capaz de representar uma visão crítica do escritor a respeito dos fatos históricos do final do século XIX.

Nos momentos em que detém a conceituar a crônica, Machado de Assis a define como ‘sobremesa’, “uma coisa leve, para adoçar a boca e rebater o jantar” (1970, 80); a fusão do “útil e do “fútil” (1997, 959). Enquanto o folhetinista é tido como um “confeiteiro literário” (1970, 80), e ao mesmo tempo o “colibri” (1997, 959). Machado descreve ainda os cronistas como “beneditinos da história mínima e cavoqueiros da expressão oportuna”. Diante destas definições, não seria a crônica machadiana uma narração de fatos ou de eventos imaginários cujo objetivo seria meramente informar e entreter?

Não me parece que a crônica de 16/10/1892, na qual o tema da escravidão e da abolição estão presentes, atenda somente a esses dois propósitos. O humor, a ironia e o tom de fábula impressos ao texto relativizam a crítica feita pelo escritor naquela página de jornal, e ao mesmo tempo promovem o disfarce daquilo que é “sério”, dando ao texto ares de “frívolo”.

A fábula, enquanto modo universal de construção discursiva, apresenta como características a presença de animais, dotados de características humanas, enquanto personagens da história; a construção de uma moral da história, que pode ser fornecida textualmente pelo narrador/fabulista ou inferida pelo leitor; a presença do diálogo argumentativo entre dois animais ou dois grupos deles.

Segundo o dicionarista Antenor Nascentes, a fábula é definida como “[uma] pequena composição literária em que se narra um fato alegórico cuja verdade moral se esconde sob o véu da ficção e na qual intervêm pessoas, animais e até coisas inanimadas, apresentando ou exemplificando uma máxima”. (1988, 272). Nos dizeres de Maria Celeste Consolin Dezotti4, a fábula é um discurso alegórico ancorado em “outro” significado.

No texto machadiano em questão, temos um narrador que presencia um diálogo entre dois burros encarregados de puxar os bondes comuns que estão sendo substituídos pelos elétricos. Eles discutem sobre a liberdade que a adoção do novo meio de transporte poderia lhes proporcionar. Como construção alegórica, o texto pode ser lido enquanto reflexão acerca da liberdade que, há pouco, havia sido proporcionada aos escravos.

O narrador inicia o texto justificando o seu silêncio de uma semana a respeito da inauguração dos bondes elétricos na cidade. Afirma que não havia tido, ainda, curiosidade de vê-los e, portanto, não poderia deles falar. Certo dia, estando em um bonde comum, viu passar ao seu lado um elétrico e alguns fatos chamaram a sua atenção. Primeiro, a forma como o cocheiro o manipulava, sentia-se superior por estar à frente da máquina indicativa do progresso. O narrador ficou a ver o bonde passar, este se foi, mas não saiu de sua memória. De repente, viu-se quase sozinho, e enquanto os dois acompanhantes dormiam, ele pensava.

Na quase solidão do bonde, o narrador passa a ouvir o diálogo que se estabelece entre os dois burros condutores daquele meio de transporte. Ele só consegue compreender a conversa porque afirmava conhecer a língua dos Houyhnhnms. Em nota, John Gledson5 nos esclarece o sentido do termo ao afirmar que este designaria “os cavalos sábio das Viagens de Gulliver, de Swift” (1996, 135). Sendo assim, nessa narrativa, cavalos e burros falam a mesma língua, o que possibilitou ao narrador entender aquilo que estava sendo dito pelos dois animais. .

A partir desse momento da crônica, os burros travam um diálogo sobre a liberdade, seu significado e suas implicações. Os dois personagens, denominados burro da esquerda e burro da direita, devido à posição em que estes se encontravam em relação ao narrador, passageiro do bonde, travam uma conversa enigmática.

O diálogo se inicia pela felicitação do burro da esquerda com a chegada da tração elétrica à cidade e com a possibilidade de que esta seja estendida a todos os bondes. Diante disso esse personagem conclui: “estamos livres, parece claro”. A que responde o da direita: “Claro parece, mas entre parecer e ser a diferença é grande” (1996, 136). A voz do burro da direita é representante de uma visão crítica, até mesmo cética, em relação à possível liberdade que seus irmãos poderiam gozar a partir da instalação dos bondes elétricos. Já o burro da esquerda adota um posicionamento discursivo baseado nas aparências dos fatos, através da relação direta entre causa e conseqüência, enquanto o da direita deseja provocar reflexões mais profundas. Assim, dotados de visões de mundo distintas, os dois animais darão início ao diálogo argumentativo que compõem esta crônica machadiana com ares de fábula.

Para tanto, parte da própria experiência para concluir que receber pancada sempre foi e continuará sendo o destino dos burros e declara: “Quem nos poupa no dia, vinga-se no dia seguinte” (1996, 136).6 Os comentários feitos pelo personagem não são apreendidos pelo burro da esquerda, incapaz de analisar profundamente os fatos. Depois de ouvir as reflexões do colega, o burro da esquerda indaga o que isto teria a ver com a questão da liberdade. Neste momento, o diálogo é interrompido pelos golpes de chicote deferidos pelo cocheiro no lombo dos dois animais: uma efetivação concreta do que, até então, eram só reflexões e suposições do burro da direita.

Nesta narrativa da história dos burros, situados à capital do país, um deles relembra uma ordem que havia sido enviada aos responsáveis pela gerência dos animais de tração: “engorde os burros, dê-lhes de comer, muito capim, muito feno, traga-os fartos, para que eles se afeiçoem ao serviço; oportunamente mudaremos de política, all right!” (1996, 136). A ordem, então, era fazê-los fortes, dar a eles comida, para que assim o trabalho fosse garantido; presos aos seus donos, os burros não quereriam fugir. As próximas passagens do diálogo entre os dois burros são de extrema importância para se entender o caráter alegórico do texto machadiano. Passemos à citação que se inicia com a fala do burro da direita:

 

O bonde elétrico apenas nos fará mudar de senhor.

De que modo?

Nós somos bens da companhia. Quando tudo andar por arames, não somos já precisos, vendem-nos. Passamos naturalmente às carroças.

Pela burra de Balaão! exclamou o burro da esquerda. Nenhuma aposentadoria? Nenhum prêmio? Nenhum sinal de gratificação? Oh! Mas onde está a justiça deste mundo?

Passaremos às carroças – continuou o outro pacificamente – onde a nossa vida será um pouco melhor; não que nos falte pancada, mas o dono de um só burro sabe mais o que lhe custou. Um dia a velhice, a lazeira, qualquer coisa que nos torne incapaz, restituir-nos-á a liberdade...(1996, 136-7), [grifo meu]

 

O resumo da referida crônica feito até aqui somado à citação acima já nos permite desvendar o que se encontra por detrás da narrativa aparente e elucidar a alegoria machadiana. Para se revelar os meandros do texto narrativo, faz-se preciso, mais uma vez, assim como o sugere Machado, “catar o mínimo e o escondido” do texto. Assim, passaremos à análise dos termos da crônica que nos permite tecer a relação entre a fábula e a realidade do final do século XIX.

O burro da esquerda parece não entender as relações de causa e conseqüência presentes na fala do colega, enquanto acredita que a chegada dos bondes elétricos irá proporcionar a ele e aos demais burros a liberdade. Já o burro da direita retoma o diálogo afirmando que a mudança do sistema de transporte apenas os fará “mudar de senhor”. Este seria, então, o elemento desencadeador da leitura que aqui proponho para este texto de Machado de Assis. O indício textual mais evidente, até este momento da narrativa, da aproximação entre o discurso dos burros, enquanto alegoria da reflexão dos libertos, encontra-se na primeira fala que inicia a passagem citada. A utilização da palavra “senhor”, pelo animal, ao se referir ao seus donos, aponta uma escolha vocabular feita a dedo pelo escritor carioca.

Outro elemento textual também deve ser destacado. A fala do personagem revela a condição por ele ocupada no sistema de transporte: “nós somos bens da companhia”. Desta forma, poderiam ser repassados a outros donos e destinados a outros trabalhos, como, por exemplo, puxar carroça. Assim também eram considerados os escravos: bens semoventes a serem transferidos por espólio, doação, compra e venda.

O burro, enquanto personagem de uma história, também aparece em outra crônica machadiana publicada em 10/06/1894. Tanto na crônica de 16/10/1892 quanto nesta, os personagens fazem a mesma reivindicação: o direito à liberdade. No texto de 1894, o narrador se depara com um burro, atracado em seu jardim, e a quem chama Lucius de Tessália. O burro, leitor de jornais ingleses, faz-se um exímio orador e solicita ao cronista que interceda pela sua “classe” junto à imprensa fluminense. Indignado com as penalidades legais aplicadas aos homens ingleses que tratavam mal os seus animais de tração, o burro reflete sobre a diferença, perante os olhos da justiça, entre ricos e pobres: “– Um tal John Fearon Bell, convencido de maltratar quatro potros, não lhes dando suficiente comida e bebida, do que resultou morrer um e ficarem três em mísero estado, foi condenado a cinco libras de multa; ao lado desse vinha o caso de Fuão Thompson, que foi encontrado a dormir em um celeiro e condenado a um mês de cadeia” (1997, 612). Desejando ser reconhecido enquanto sujeito, o burro espera que a justiça dos homens não mais se utilize de ‘dois pesos e duas medidas’ para condenar os infratores da lei dos homens e da lei dos burros. A fim de convencer o narrador-cronista a interceder pelos burros junto à imprensa local, o animal faz uso da teoria da evolução das espécies para reclamar o seu parentesco com a raça humana. O animal poliglota é dotado ainda de uma veia poética, já que é dado a fazer versos que saem sem muito esforço de sua parte: “ – (...) às vezes saem-me rimas da boca, e podia achar editor para elas, se quisesse; mas não tenho ambições literárias”, afirma ele (1997, 611).

As ambições do nosso personagem são mais concretas, ou melhor, políticas. Na sequência da narrativa, nota-se uma passagem que salta aos olhos devido à maestria da construção discursiva de Machado de Assis e a sua capacidade de dizer o dito pelo não dito. Da mesma forma como ocorre na crônica anterior, de 1892, nesta, alguns indícios textuais permitem-me afirmar que os burros, nestes dois textos, podem ser entendidos enquanto alegorias do escravo e do liberto. Vejamos a passagem:

– Ainda uma vez, respeitável senhor, cuide um pouco de nós. Foram os homens que descobriram que nós éramos seus tios, senão diretos, por afinidade. Pois, meu caro sobrinho, é tempo de reconstituir a família. Não nos abandone, como no tempo em que os burros eram parceiros dos escravos. Faça o nosso Treze de Maio. Lincoln dos teus maiores, segundo o evangelho de Darwin, expede a proclamação de nossa liberdade!. (1997, 612-613) [grifo do autor].

 

O burro, no afã de se libertar do sistema que o oprime e o trata como ser irracional, vê a imprensa como mecanismo de denúncia capaz de amenizar os maus tratos que recebe de seu dono, desejando estender tal benefício a todos os seus irmãos. O narrador-cronista, enquanto homem de imprensa, é visto como o Lincoln brasileiro, devido a sua capacidade de, através da escrita, interceder pelos “seus sobrinhos”. A aproximação entre os burros e os escravos é notória, nesta passagem em destaque. Aqueles eram parceiros destes já que ambos serviam ao sistema de produção escravista enquanto mão-de-obra. Ambos eram considerados seres não dotados de inteligência, além de serem destinados ao trabalho pesado capaz de mover a economia agrária brasileira. Àquela altura da narrativa, a liberdade dos cativos já havia sido proclamada, e enquanto parceiros de um mesmo sistema, o burro aguardava o “Treze de Maio” destinado a sua espécie. A fim de ajudar o burro em seu intento reivindicatório, o narrador-cronista orienta o animal a procurar a Gazeta, jornal no qual saíam os seus textos, e no qual Machado de Assis publicou por quase 15 anos.

O burro, enquanto pensador do sistema político e social em que vive, encontra uma saída que julga eficaz para diminuir o tratamento desumano que é dispensado a ele e a seus irmãos de sangue: “– (...) não exijo cadeia para os nossos opressores, mas uma pequena multa e custas, creio que serão eficazes. O burro ama só a pele; o homem ama a pele e a bolsa. Dê-lhe na bolsa, talvez a nossa pele padeça menos” (1997, 612). A comparação com a passagem do conto “Pai contra mãe” dá-se de imediato, já que nele o narrador, enquanto rememora a escravidão, comenta os açoites destinados aos negros, em uma passagem, também ela, recheada de um tom sarcástico capaz de revelar os princípios que fundamentavam a lógica escravocrata:

Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e mesmo o dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói (1997, 659) [grifo meu].

 

Tanto a crônica, quanto o conto, revelam o lado prático da ordem escravista: a inutilização de um escravo eqüivalia à inutilização de um bem. Sendo assim, tanto pagar pelas sovas dadas aos burros, quanto ter um cativo impossibilitado de exercer o trabalho são prejuízos que vão de encontro à lógica comercial.

Faz-se necessário destacar, apesar de evidente, que a aproximação entre o burro e o escravo, nas duas crônicas referidas, não está calcada em um tom pejorativo capaz de desvalorizar o negro; ao contrário do que ocorria no senso comum, nos discursos favoráveis à escravidão e na literatura de tese, produzida à época. Ao aproximar o burro e o escravo, Machado de Assis reveste aquele de aspectos positivos: o domínio da linguagem, a capacidade de análise, a reflexão social e política, o dom da oratória, a sabedoria – características humanas que confirmam a uma das características da fábula: a personificação. Ao construir a alegoria dos escravos na figura dos burros, o escritor proporciona que o sistema escravocrata seja desvelado pela voz do cativo. Nesta crônica, o escritor Machado de Assis parece seguir a constatação a que chegara, em texto de 1876: “a verdade fala pela boca dos pequeninos” (1997, 349).

Nicolau Sevcenko7, em sua apresentação ao livro de Gledson, após apresentar sucintamente o enredo da crônica de 1892, faz a seguinte afirmação:

nem a melhor historiografia pôs a questão da Abolição, do destino dos seres humanos egressos da condição servil, dos paradoxos da imigração, da modernização artificiosa e da exclusão social em termos tão dolorosamente crus quanto essa crônica perdida numa página de jornal (2003, 18).

O texto machadiano apresenta uma reflexão dos burros acerca das possibilidades de gozarem da liberdade. Nela alguns indícios textuais apontam para uma construção alegórica que toma os animais de tração enquanto representação dos libertos. Sendo assim, é possível entendê-la como uma reflexão dos ex-escravos, acerca da liberdade que lhes havia sido dada, há quatro anos.

Assim como há na crônica uma reflexão entre o ser e o parecer, os escravos, livres após 13 de maio de 1888, foram considerados libertos. Mas havia uma grande diferença entre estar livre e ser livre. Ianni, em seu livro Metamorfose do escravo, irá analisar, por um viés sociológico, a transformação do cativo em negro liberto e a difícil aquisição da condição de homem livre, na cidade de Curitiba. Segundo o sociólogo, a cor da pele, configura-se como uma marca que o liberto “transportará consigo do interior da escravidão, como símbolo desta” (1988, 153). Assim, iniciar-se-ia a metamorfose do escravo em negro, quando este, ainda durante a escravidão, recebia a liberdade. Já a metamorfose do negro, ex-cativo, em homem livre, dependia da condição de cidadania que, por sua vez, requeria atributos psicossociais e culturais aos quais o liberto não tinha acesso.

 

Nas duas crônicas mencionadas, os primeiros momentos em que o narrador se depara com os burros falantes é marcado por um tom galhofeiro, de descrença. Na crônica de 1894, às reflexões do burro visitante do jardim do narrador-cronista é dado um certo tom humorístico, o que confere ao texto um ar de brincadeira por parte do escritor. No de 1892, a conversa entre os dois animais de tração chama a atenção do narrador enquanto este pensava a respeito da chegada da modernidade, representada pelos bondes elétricos. Afinal, a crônica é definida pelo escritor como “uma sobremesa”, “um confeito”, mas também como a fusão do “útil e do “fútil”. Estes dois textos não têm só objetivo de informar e entreter, eles principalmente dariam aos leitores de “2a e 3a edição”, para usarmos uma definição machadiana constante em Memórias póstumas de Brás Cubas, a capacidade do pensamento crítico proporcionado pelas reflexões dos burros falantes. Sendo assim, estas fábulas permitem ao escritor manter sob um véu um assunto caro à época: o destino dos libertos.

Especialmente na crônica de 16/10/1892, a visão cética do escritor dá a tônica do texto, os escravos, mesmo livres, sem trabalho, estariam entregues ao ócio e à miséria. O olhar à frente do seu tempo permitiu a Machado de Assis vislumbrar o processo de liberdade dos negros de forma crítica, lançado luz sobre um futuro pouco promissor a que estes estariam destinados. Porém, nada disso é feito de forma panfletária, ao contrário, desvendar as intenções do escritor por detrás do narrador torna-se uma tarefa árdua, que requer escolher passagens e interpretá-las com um olhar desconfiado, a fim de trazer à tona o que, por hora, não se encontrava na superfície do texto.

A “moral da história” não nos é dada pelo narrador; ela deve ser inferida pelo leitor. Através da leitura dos textos de Machado, podemos perceber que para o escritor a tão esperada liberdade dos cativos só se efetivaria com a mudança das mentalidades responsáveis por orquestrar o andamento do curso da história do país. Segundo Paulo, personagem do romance Esaú e Jacó: “a abolição é a aurora da liberdade, esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco.” Só assim, os burros da direita e da esquerda deixariam de ser “bens da companhia” e exerceriam, de fato, a liberdade desejada.

Os disfarces do Bruxo do Cosme Velho são muitos e só podem ser desvendados pelas marcas textuais. Enquanto os burros esperam o Treze de Maio, o escritor carioca se detém a refletir, de forma velada, sobre o day after da escravidão brasileira, fazendo uso da literatura como meio marcado pela arte e pela realidade, instrumento capaz de velar e desvelar as marcas históricas do momento vivido.

 

Referências:

ARRIGUCCI JR., Davi. “Fragmentos sobre a crônica” In Boletim Bibliográfico Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de Bibliotecas Públicas, vol. 46 (n.1/4), jan./dez. 1985.

DEZOTTI, Maria Celeste Consolin (Org.). A tradição da fábula: de Esopo a La Fontaine. Brasília: Editora da Univesidade de Brasília. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003.

IANNI, Octávio. Metamorfoses do escravo: apogeu e crise da escravatura no Brasil meridional. 2 ed. São Paulo: Hucitec; Curitiba: Scientia et Labor, 1988.

MACHADO DE ASSIS, J. M. A reforma pelo jornal. O Espelho, Rio de Janeiro, 23 out. 1859. In COUTINHO, Afrânio (Org.). Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. III. p.963-965.

_______. Ilustração Brasileira, Rio de Janeiro, 1º out. 1876. “História de Quinze Dias”. In In COUTINHO, Afrânio (Org.). Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. III, p. 349-352.

_______. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 14 jul. 1878. “Notas Semanais”. In Obras completas de Machado de Assis. Rio de Janeiro; São Paulo; Porto Alegre: W.M.Jackson Inc. v.III, 1970. p. 78-90.

_______. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 04 ago. 1878. “Notas Semanais”. In COUTINHO, Afrânio (Org.). Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. III, p. 394-398.

_______. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 19 mai. 1888. “Bons Dias!”. In GLEDSON, John (Org.). Bons Dias!: crônicas (1888-1889). São Paulo: Hucitec; Unicamp, 1990. p. 62-64.

_______. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 16 out. 1892. “A Semana!”. In GLEDSON, John (Org..). A Semana: crônicas (1892-1893). São Paulo: Hucitec, 1996. p. 135-138.

_______. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 10 jun. 1894. “A Semana!”. In COUTINHO, Afrânio (Org.). Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. III, p. 610-613.

_______. “Pai contra mãe”. Relíquias de Casa Velha (1906). In Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. II., p. 659-667.

_______. Esaú e Jacó (1904). In: COUTINHO, Afrânio (Org.). Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. 1, p. 945-1093.

SEVCENKO, Nicolau. A ficção capciosa e a história traída. In GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

 

 

Reflections of two speaking donkeys:

what is the moral of the story in this fabled chronicle by Machado de Assis?

 

Abstract: The aim of this article is the analysis of Machado de Assis’ chronicle, published on 16th October 1892, at the column “A Semana” from the newspaper Gazeta de Notícias, in which the dialogue between two donkeys and the fable aspects that the text presents, raises questions related to the recent freedom given to black people in Brazil. In a hidden way, the criticism towards slavery remains is brought alive through the characters’ mouths who, from an “inner” point of view, analyze the late nineteenth century Brazilian society.

 

Keywords: Machado de Assis, chronicle, allegory, criticism of the slavery system.

 

 

1* Artigo publicado originalmente em DARANDINA revisteletrônica – Programa de Pós-Graduação em Letras / UFJF – volume 2 – número 2.

Disponível em http://www.ufjf.br/darandina/files/2010/02/artigo10a.pdf , último acesso em 18/04/2011.

 

 Mestre em Teoria da Literatura; Graduada em Letras pela Faculdade de Letras, da Universidade Federal de Minas Gerais – FALE/UFMG; Professora do CEFET-MG.

2

 Optou-se pela utilização da referida crônica que consta na edição publicada por John Gledson, cujas notas auxiliam muito no entendimento do texto. GLEDSON, John (Org..). A Semana: crônicas (1892-1893). São Paulo: Hucitec, 1996. p. 135-138.

3

 “Fragmentos sobre a crônica” In Boletim Bibliográfico Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de Bibliotecas Públicas, vol. 46 (n.1/4), jan./dez. 1985.

4 DEZOTTI, Maria Celeste Consolin (Org.). A tradição da fábula: de Esopo a La Fontaine. Brasília: Editora da Univesidade de Brasília. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003.

5 GLEDSON, John (Org..). A Semana: crônicas (1892-1893). São Paulo: Hucitec, 1996. p. 135-138.

6 Faz-se importante aqui fazermos uma associação entre a passagem destacada e a crônica de 19 de maio de 1888, publicada em “Bons Dias!”. O personagem Pancrácio é agraciado pelo seu senhor com a sua carta de alforria, no dia 07 de maio de 1888, e no dia seguinte continuava a receber deste o mesmo tratamento: pancadas, petelecos, pontapés, puxão de orelhas etc. Agraciado com a liberdade naquela data, no dia seguinte, ele continua a ser escravo, apesar de liberto.

7 SEVCENKO, Nicolau. “A ficção capciosa e a história traída”. In Machado de Assis: ficção e história. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

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