Ao abrigo da dissimulação: a crítica machadiana e o mundo das aparências

Giovana Caires Motta

 

 

Resumo: A obra de Machado de Assis se apresenta de maneira singular, na medida em que lança ocultamente uma crítica à sociedade. Desse modo, por meio de uma estrutura de dissimulação, os contornos nítidos da poética de Machado se diluem. É preciso, portanto, adentrar em um contexto mais profundo para compreender a essência de sua obra. Assim, no trânsito entre ausência e presença, dito e não dito, essência e aparência que as situações e os personagens configuram o cenário machadiano.

 

Palavras-chave: Poética Machadiana; Crítica; Estratégia de Dissimulação; Jogo das Aparências

 

 

 

I - Introdução: Um jogo de camuflagens

 

A análise das obras de Machado de Assis nos faz refletir acerca do modo peculiar com que ele organiza a sua crítica à sociedade brasileira do século XIX. Utilizando-se de estratégias de camuflagem, as idéias não são apresentadas de maneira explícita, mas se encontram dissolvidas na estrutura do texto. Diante desse sistema de incógnitas, é preciso ter um olhar apurado para desvelar as situações que se mostram encobertas.

É na ordem da dissimulação que a ficção machadiana se configura. Nada está dado de antemão, é a partir de um jogo de disfarces que os seus escritos se constituem. As idéias colocadas, algumas vezes, podem não significar o que aparentemente mostram ser. John Gledson (1986) já nos alertava sobre o traço “enganoso” do realismo de Machado e destacava a necessidade de se “ler nas entrelinhas”. Com isso, observamos que não se pode buscar na superfície e na horizontalidade das linhas, a essência da obra machadiana. É necessário imergir em um contexto mais profundo para poder compreendê-la.

De forma sutil, mas não menos corrosiva, Machado de Assis empreendia sua crítica às atitudes, aos comportamentos, aos costumes e as estruturas sociais. Através da sátira, da ironia e da carnavalização, ele construía o seu enredo e revelava sua concepção do mundo. Assumindo, muitas vezes, a postura ou o lugar de um “outro”, Machado se apresentava ocultamente, sob o signo dos pseudônimos.

É relevante notar que a poética de Machado se estrutura nos disfarces e na ausência, ou seja, o autor tem muito a nos dizer quando se cala ou quando deixa os fatos subtendidos. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador, o próprio Brás Cubas, chama-nos a atenção de que “há coisas que melhor se dizem calando” (s/d., p.196). Isso sintetiza bem, não só o pensamento de Machado, mas também a sua forma de dizer. Assim, entre o que é relatado e o que não é, encontra-se a sua visão crítica.

Diante dessas considerações, o termo ausente é ressignificado na obra de Machado, pois em sentido inverso, a ausência significa uma presença. É na sintonia e na configuração dos termos contrários, isto é, o dito e o não dito, a ausência e a presença, a aparência e a essência, que as situações e os personagens fazem parte da realidade machadiana.

No entanto, a característica de Machado de não optar por uma atitude escancarada ou panfletária, não significa que ele se caracteriza como um escritor omisso. O autor constrói sua crítica indireta por meio de estratégias ocultas e de jogos de dissimulação.

Na perspectiva das falsas aparências e dos disfarces, a análise de alguns contos de Machado se mostra de grande valia. Teoria do Medalhão, O Espelho e Um Homem Célebre são obras que dialogam entre si; três instantes em que os personagens são regidos principalmente por sua “alma exterior”.

 

II – A lógica das aparências

 

No âmbito do parecer e não do ser, entra em cena a Teoria do Medalhão. É no diálogo entre pai e filho que o conto se estrutura e nos permite observar, em suas respectivas atitudes, a necessidade de se adequar aos padrões vigentes da época e de se encobrir através de máscaras.

Janjão já se encontrava com vinte e um anos e, então, seu pai levantou algumas questões que julgava ser relevantes. O desejo dele, independente da profissão que o filho escolhesse, era que Janjão se tornasse ilustre ou no mínimo notável. Com isso, começamos a verificar a preocupação desse pai com a aparência ou com uma notável exterioridade.

Desse modo, o pai alertava o seu o filho para um relevante ofício, ou seja, o de medalhão. Ao discorrer sobre as características dessa função, ele ressaltava a questão da publicidade e revelava que um verdadeiro medalhão fazia o seu nome ficar conhecido frente ao mundo. Essa idéia reitera o pensamento anterior de se valorizar a construção de uma figura notável.

Um outro detalhe importante que esse pai destacava era a postura que um medalhão devia assumir: “toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos”1. Nessas circunstâncias, percebemos que a lei é seguir as regras e os modelos de comportamento estabelecidos pela sociedade. Assim, a ordem é não se fixar em uma única idéia, nem desenvolver um pensamento próprio, mas se adequar a um sistema vigente e se modelar conforme o sentido da via.

No mecanismo de seguir um padrão pré-determinado e constituir a teoria do medalhão, o pai ordenava ao filho: “proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.”2. Desse modo, observamos que a regra é escapar de tudo que se distancia do que já foi instituído. Ser um medalhão significa não ter idéias próprias, não desenvolver novas normas, nem transformá-las, mas se fazer conhecido na sociedade e ter o seu nome lembrado.

Nessa perspectiva, a figura desse pai traduz a lógica das aparências, na medida em que cultiva o oficio de medalhão. O princípio que rege esse sistema é o de aparentar ser; parecer ser sábio, parecer conhecer a “filosofia da história”, mas sem realmente ser e conhecer. Aparentar, apenas aparentar, eis então, o mecanismo de funcionamento das máscaras.

É importante destacar a maneira como a notoriedade é perseguida neste conto. Com isso, ser uma figura notável, ter o nome lembrado e conhecido por todos fazia parte do ideal e dos conselhos que esse pai transmitia ao seu filho. Nas lições e no alerta para o ofício do medalhão, uma exterioridade era referenciada. Portanto, podemos perceber o valor atribuído à concretização de uma imagem notória.

Entre as conversas estabelecidas entre pai e filho, no enredo desse conto, Machado lança sua crítica à sociedade. Assim, ele se posiciona criticamente ao modo de pensar, ao tipo de comportamento padrão e às atitudes realizadas. As regras a serem seguidas para a manutenção do conteúdo externo estão presentes no discurso desse pai. O que resta, por fim, a essa sociedade suscetível ao sistema das aparências é aceitar as regras do jogo.

 

III – Alma interior X Alma exterior

 

Qual é a teoria da alma humana? A tentativa de responder a esse questionamento pode ser encontrada no conto O Espelho, através do narrador-personagem Jacobina. Nessa obra, Machado se utiliza de dois narradores, o primeiro que aparece no início e no momento final do conto e o segundo, Jacobina, que faz uso da palavra por quase toda a narrativa. A estratégia do autor de se servir de dois narradores revela a maneira com que este pretende atenuar as formas delineadas.

O conto apresenta, inicialmente, “quatro ou cinco cavalheiros” que discutiam e investigavam questões metafísicas. O motivo da divergência quanto ao número de cavalheiros se deve ao fato de que apenas quatro falavam, um outro sempre permanecia calado, porém não por muito tempo. Assim, Jacobina se utiliza da palavra e começa a sua narração. O rumo da conversa atinge o tema da natureza humana e o primeiro fato relatado é que não existe somente uma alma, cada pessoa possui duas: uma exterior e uma interior.

Estas duas almas, portanto, seriam duas faces de um mesmo personagem. Contudo, uma dessas faces parece, às vezes, apresentar relevância sobre a outra. Tal fato se torna explícito na fala de Jacobina, pois “quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira”3. Se perder a alma exterior pode significar perder a própria existência, então essa exterioridade assume características preponderantes e pode ser considerada um fator essencial para a existência humana.

Assim, a aparência transita por mais uma obra de Machado e como um elemento primordial, ela é valorizada dentro da sociedade. Não podemos nos esquecer que a alma exterior é moldada conforme as regras vigentes e que ela “muda de natureza e estado”. De acordo com a sintonia do momento, a exterioridade se configura e toma conta da existência humana.

Neste sentido, o personagem Jacobina comentava sobre uma conhecida que mudava de alma exterior cinco ou seis vezes por ano, mas preferiu não se deter aos detalhes desse fato e se restringiu ao comentário de um episódio de sua vida. Assim, começou sua narração, contando quando tinha vinte e cinco anos, era pobre e foi nomeado alferes da Guarda Nacional. A partir desse fato, passou a ser chamado de seu alferes. Com a sua tia, D. Marcolina, não foi diferente “era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o ‘senhor alferes4’. Mesmo a pedido de Jacobina, sua tia não o chamava pelo nome, mas sim pelo cargo o qual tinha sido nomeado. Com isso, verificamos que o mais importante é o que uma pessoa apresenta ser, a sua postura dentro da sociedade e não o que ela realmente é. Ser alferes prepondera sobre ser apenas um “Joãozinho”.

O respeito e os privilégios que Jacobina adquiriu dentro da casa de sua tia se devem ao fato da sua nomeação. Um alferes precisava ter o melhor lugar na mesa e ser o primeiro servido. No entanto, um simples Jacobina pobre, provavelmente, não receberia dedicações e cuidados exclusivos. Um alferes sim, merecia ter a melhor mobília da casa em seu quarto, neste caso, um espelho. Assim, as transformações na natureza da alma exterior começam a se revelar:

 

O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado.5

 

Com este relato de Jacobina, notamos que tudo que é referenciado se trata da questão de alferes, ou seja, o fato mais importante é seu posto e não as suas características elementares. No duelo entre alma exterior e alma interior, a primeira vence e é valorizada, enquanto a segunda se mostra enfraquecida e se dispersa.

Jacobina, isto é, o alferes, na falta de sua tia Marcolina devido a uma viagem às pressas, ficou responsável por cuidar da casa. A princípio, estavam ele e alguns escravos, os quais, durante a noite, decidiram fugir. Assim, Jacobina se encontrava totalmente só, comia mal e se dividia entre alma interior e alma exterior. A fuga dos escravos tornou a condição de Jacobina reduzida e desestabilizada. Quem antes era servido na mesa primeiro, agora se mostrava comendo “farinha, conservas e algumas raízes tostadas”.

O temor de Jacobina quanto à imagem que encontraria refletida, não o permitia de se olhar no espelho. Um dia ao se deparar com esse objeto, viu a projeção de uma imagem sem contornos nítidos. Sem uma identidade própria, essa figura refletida apresentava sua alma exterior dissolvida em linhas tortuosas. Nessas circunstâncias, Jacobina ao tentar estabelecer a ordem e a nitidez de sua imagem, vestiu-se com sua farda de alferes. Com isso, “o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho”6.

É preciso, portanto, utilizar-se da farda para encontrar uma maneira de se afirmar e de delinear a alma exterior. Assim, Jacobina, na ausência de uma identidade, buscava na qualidade de alferes a sua “figura integral”. A sua alma exterior, sustentada por sua tia e pelos escravos, apresentava-se dispersa e difusa, na medida em que essas figuras se encontravam ausentes.

Essa idéia de ausência nos remete ao relato de Gomes (1994) acerca da construção textual de O Espelho. Assim, ela afirma que a narrativa se estrutura em elementos que se isentam, ou seja, na fuga dos escravos, na falta de Marcolina e na retirada dos narradores. Essa visão é pertinente para se pensar não apenas essa obra, mas a própria poética machadiana. Ao tratar de questões na sua ausência, ao dissolver os contornos nítidos e explícitos, Machado manifesta a sua crítica.

Por fim, O Espelho reflete o modo de pensar da sociedade, o qual valoriza mais a aparência do que a essência. No esvaziamento da alma interior, o contorno exterior ganha espaço. Assim, análoga às máscaras sociais, a farda de alferes reproduz o sistema das aparências.

 

IV – Ser X Querer ser: o trânsito entre o erudito e o popular

 

A dualidade entre popular e erudito percorre o conto Um Homem Célebre. Por estas duas instâncias transita o personagem Pestana, um compositor de polcas que reverenciava a música clássica. Era aclamado e celebrado como um músico popular, mas fracassava em suas predileções eruditas. Dessa forma, sucesso e fracasso se coincidem e compõem o personagem.

Logo no início do conto, percebemos que Pestana parecia não se apresentar satisfeito com o reconhecimento e com os pedidos para que tocasse mais polcas. Ele as executava, mas sem muito entusiasmo. Suas polcas faziam sucesso, de modo que até as mais recentes já eram conhecidas por toda a cidade.

Cada vez mais a imagem de Pestana enquanto um compositor de polcas se configurava de maneira notória. Entretanto, esse reconhecimento era ignorado pelo mesmo. Desse modo, é importante perceber que contrariamente a Teoria do Medalhão, a notoriedade concretizada em Um Homem Célebre era aparentemente recusada, pois Pestana não tinha pretensões de tornar o seu nome público e de ser referenciado entre as polcas; o seu ideal era a música clássica. Se Pestana fosse aclamado como um célebre músico de obras clássicas, talvez, essa notoriedade não seria refutada.

Distante do seu público, dos saraus, dos bailes e do seu mundo de polcas que Pestana podia penetrar em um contexto erudito. Entre os retratos presos na parede de sua casa se encontravam vários compositores clássicos, como por exemplo, Beethoven, Mozart, Bach, Schumann e outros. “O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven”.7 Assim, é interessante observar a importância concedida aos clássicos e a forma como esse ambiente se ordena como sagrado. Todo esse espaço agradava Pestana.

Entre o piano e os retratos, Pestana tentava compor uma obra clássica, mas todo o esforço empreendido se mostrava em vão. Em contrapartida, sentava-se diante do piano e em instantes compunha uma polca. “Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene”.8 A tentativa, sem êxito, de estruturar uma obra clássica se apresentava reconfigurada quando se tratava de polcas. Em pouco tempo e sem recorrer ou questionar algo, uma nova polca despontava.

Desse modo, percebemos que seus objetivos e suas ambições andam na contramão do resultado atingido, ou seja, Pestana almejava a música erudita, mas conseguia produzir apenas polcas. Obra clássica e polca, eis, portanto, o dilema do Homem Célebre.

De acordo com Wisnik (2004), a polca foi introduzida no Brasil entre 1844 e 1846, dois anos após ter sido lançada em Paris. No entanto, esse gênero importado sofreu transformações e, na década 1870, ordenou-se como “maxixe”: uma fusão de dança de salão com música de escravos. O autor reitera que a polca de Pestana não deve ser pensada apenas como uma dança importada, mas também como um ritmo transformado. Essa idéia se torna válida, mediante ao fato da data em que Pestana compôs sua primeira polca, 1871, mesmo período em que o termo “maxixe” começou a ter significado musical.

A questão dos títulos das “polcas – maxixe” de Pestana merece nossa atenção. Este compositor queria nomear sua primeira polca como Pingos de Sol, porém o editor recusou e afirmou que os títulos deviam ser “destinados à popularidade”. Assim, propôs dois nomes: A Lei de 28 de Setembro ou Candongas Não Fazem Festa. Segundo Wisnik, a união entre esses dois títulos, “aparentemente discrepante em si, forma, no entanto, uma intrigante figura de contraponto: a emergência da polca amaxixada, de cunho africanizante, combina-se com a lei de 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre” (2004, p. 70).

Frente aos títulos sugeridos pelo editor, Pestana, a princípio, recusou, mas guiado pela “comichão da publicidade” se rendeu e aceitou as nomeações mais adequadas. Vieram mais polcas e “em oito dias estava célebre”. Em suas primeiras composições, Pestana se encontrava envolvido com as polcas, mas rapidamente “voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma cousa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schuman”.9

A ambição pela música erudita, fez Pestana se casar com a cantora Maria. Com este casamento, ele pretendia imergir na obra clássica. Tudo isso, entretanto, mostrou-se sem muito êxito; Maria morreu, Pestana tentou compor um Requiem que o executaria no primeiro aniversário da morte dela, mas não atingiu nenhum resultado.

Nessas circunstâncias, o retorno às polcas foi inevitável. O editor propôs um contrato de vinte polcas em doze meses e Pestana aceitou. Devido à subida dos liberais ao poder, a primeira polca a ser composta já tinha um título pronto: Bravos à Eleição Direta. “Não é política; é um bom título de ocasião”. O editor, portanto, aproveitava-se dos fatos do momento e das questões da moda para nomear as polcas de Pestana.

As polcas foram aparecendo com regularidade, mas a informação da subida dos conservadores fez com que o editor viesse pedir uma polca de ocasião. Esse pedido coincidiu com a doença de Pestana, o qual pensando na probabilidade de sua morte declarou que iria fazer duas polcas; “a outra servirá para quando subirem os liberais”.

Assim, Pestana morreu “bem com os homens e mal consigo mesmo”, pois o que ele era, um compositor de polcas, não condizia com o que ele queria ser, um compositor de música clássica.

 

V – Considerações Finais: o invólucro social

 

Transitar entre duas instâncias diferentes é um mecanismo do qual fazem parte não só os personagens, mas a própria estratégia crítica de Machado de Assis. Enquanto Pestana, Jacobina, Janjão e seu pai, vivem um duelo entre a essência e a aparência, Machado se apresenta entre o dito e o não dito. É na dissimulação, na dualidade e nos disfarces que se insere a crítica machadiana.

Os três contos apresentados dialogam entre si, pois são guiados pela lógica das aparências, apresentando uma “alma exterior” que muitas vezes não condiz com a realidade. A aparência pode ser enganosa, pois uma máscara encobre a sociedade. Assim, da mesma maneira que encontramos uma sintonia entre esses textos, algumas diferenças também espontam. Frente às peculiaridades de cada um, cabe ressaltar que enquanto a “Teoria do Medalhão” e “O Espelho” alimentam e valorizam a exterioridade, tanto no que diz respeito ao ofício de medalhão, quanto ao ofício de alferes, Um Homem Célebre se divide entre o seu sucesso e o seu fracasso. Como já fora apontado anteriormente, não podemos perder de vista que a Teoria do Medalhão, diferentemente de “Um Homem Célebre”, exalta e persegue uma notoriedade.

Em um jogo de elementos visíveis e invisíveis ao mesmo tempo, Machado consegue se proteger e diluir os contornos nítidos da sua crítica. Lembremos do que ele próprio nos relata em uma de suas obras: “houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí á rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito” (2007, p. 72). Nessa perspectiva, ser “o mais encolhido dos caramujos”, significa não só estar resguardado dos possíveis ataques, mas também traduz a forma dissimulada com que ele ataca a estrutura social. Nada está na superfície, nada está facilmente visível; um elemento sempre se esconde nas entrelinhas.

Machado se utiliza de um jogo de camuflagens para introduzir o seu pensamento crítico, ao passo que a sociedade faz uso de um sistema de disfarces ou de máscaras para apenas aparentar algo que, muitas vezes, não se ajusta a realidade. Assim, dentro dessa sociedade, a “alma exterior” prepondera e nos engana, pois ela nem sempre está em sintonia com a “alma interior”.

Portanto, é sob o signo da dissimulação que a poética machadiana se constrói e que a sociedade se reveste de máscaras. Nada mais importante a uma sociedade que segue regras e comportamentos pré-estabelecidos do que apenas aparentar. A essência e a aparência não conseguem encontrar um equilíbrio. Assim, é frente ao Espelho que a alma exterior pode se projetar, é na Teoria Medalhão que aparência pode se sustentar e é em um Homem Célebre que a dicotomia ser e querer ser pode se relevar. Nesse contexto, por fim, é que Machado lança o seu olhar e configura a sua crítica a essa sociedade das aparências.

 

Referências:

ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo. Sol Editora, s/d.

______.O Espelho. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000240.pdf . Acesso em: 11 de junho de 2009.

______. Teoria do Medalhão. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000232.pdf . Acesso em: 10 de junho de 2009.

______. Um Homem Célebre. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000260.pdf . Acesso em: 11 de junho de 2009.

DUARTE, Eduardo de Assis (org). Machado de Assis afro-descendente – escritos de caramujo. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Pallas/Crisálida, 2007.

GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

GOMES, Heloisa Toller. As marcas da escravidão: o negro e o discurso oitocentista no Brasil e nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ EDUERJ, 1994.

WISNIK, José Miguel. Machado Maxixe: O caso Pestana. In: Sem Receita. São Paulo: Publifolha, 2004.

 

1 ASSIS, Machado. Teoria do Medalhão. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000232.pdf . Acesso em: 10 de junho 2009.

2 ASSIS, Machado. op. cit.

3 ASSIS, Machado. “O Espelho”. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000240.pdf . Acesso em: 11 de junho de 2009.

4 ASSIS, Machado. op.cit.

5 ASSIS, Machado. op.cit.

6 ASSIS, Machado. op.cit.

7 ASSIS, Machado. “Um Homem Célebre”. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000260.pdf . Acesso em: 11 de junho de 2009.

8 ASSIS, Machado. op.cit.

9 ASSIS, Machado. op.cit.

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