Machado de Assis, crítico da educação brasileira

 

 

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

 

Há 100 anos, perdemos um dos maiores expoentes da literatura universal: Machado de Assis. A intenção deste artigo é prestar-lhe uma homenagem, ao destacar e comentar a narrativa "Conto de Escola", publicado na Gazeta de Notícias, em 1884, sob a perspectiva de investigar a expansão do ensino de primeiras letras e a escolarização da infância pobre no Brasil, associada à ideologia da elite imperial de construção e consolidação do Estado Nacional.

A narrativa desenrola-se no próprio ambiente escolar, "um sobradinho de grade de pau" situado à Rua do Costa, localizado na capital do Império. É significativo o fato de o contista ter identificado o narrador como um estudante das séries primárias. Dentro dos discursos educacionais oitocentistas, não se pode deixar de salientar o tipo de infância que é explorada no conto, relacionada ao estamento social menos favorecido. Por exemplo, Pilar, narrador personagem do conto, se identifica como filho de um velho empregado do Arsenal de Guerra. Raimundo era filho do professor Policarpo, e pela descrição do narrador, o mestre-escola não parecia ter muitas posses. Outra pista para a identificação da origem social do narrador é a fascinação deste pela moeda que Raimundo lhe oferece.

Raimundo propôs "um negócio, uma troca de serviços" a Pilar. Baseado na política do "toma lá, dá cá", o filho do professor daria a moeda mediante à explicação de um ponto da lição de sintaxe, dada pelo narrador personagem. Merece ser destacado que o autor da proposta de suborno tem como pai o mestre Policarpo e a mãe ligada à elite imperial. Já, Pilar, de origem humilde, "era dos mais adiantados da escola" e "dos mais inteligentes". Ao se colocar na posição de aluno pertencente à infância pobre e se constituir capacitado intelectualmente, o narrador do conto desloca o discurso social elitista numa inversão de papéis: não era a sua classe inferior em conhecimentos, mas a classe originária da elite imperial, representada pelo colega Raimundo.

O narrador insiste em sua habilidade intelectual, associando-a a sua estrutura física: "note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro", isto, logo após caracterizar o colega Raimundo como pálido, mole e de inteligência tardia, contradizendo, assim o discurso imperial. Este, conforme assinala José Pires de Almeida, em Instrução pública no Brasil (1580-1889), alertava que, diferentemente da classe inteligente "voltada para o bem", os filhos provenientes da classe miúda apresentavam a forte tendência de serem "fracos, pálidos e mal nutridos" e, por serem "miscigenados", eram ainda possuidores de "um fundo hereditário de depravação que transparecerá nas ocasiões de faltas e maus exemplos". A situação discursiva histórica analisada traz dois efeitos a ela apensos: a comunidade escolar infantil oitocentista se dividia em uma infância superior em faculdades físicas e mentais, representada pelos filhos da elite imperial; e uma infância inferior, desprovida de valores físicos, intelectuais e morais, incluindo aí a classe "miscigenada" dos filhos da massa imperial.

As transferências que ocorrem na narrativa, na troca de papéis entre Raimundo e Pilar, trazem evidências do discurso irônico machadiano em criticar a sociedade hipócrita de seu tempo. A partir do episódio do suborno, que envolve Raimundo e Pilar, questiona-se a onipotência do discurso estatal: os vícios morais do meio escolar oitocentista restringiam-se à infância pobre ou eram manifestações dos filhos da elite imperial?

A escola estava lá, articulada no discurso moralizador do ideário imperial para socializar a infância dita inferior. O mestre-escola, na verdade, utiliza da palmatória como instrumento de força para castigar e desenvolver os bons costumes e a civilidade, quando descobre por meio da delação de um de seus alunos, o ato imoral cometido por Raimundo e Pilar. A ação de Policarpo em sua explosão de raiva é emblemática: no período imperial, a escola significou local de correção, onde se articulavam o discurso da ordem e da moral, e o professor deveria aplicar o castigo necessário, previsto em lei, para assegurá-lo.

O sujeito desencadeador do castigo não foi Pilar, o menino pobre vadio, mas Raimundo, que além de ser filho do professor, tinha suas origens maternas na elite imperial. Essa migração dos sujeitos históricos afeta nossa visão do conto e mais uma vez nos faz reconhecer um sentido já familiar aos leitores de Machado: a exposição irônica da conduta volúvel do estamento senhorial.

"Conto de Escola", funciona, assim, como prática de afrontamento e resistência ao modelo elitista arraigado nas bases da educação brasileira. Além de conferir voz a uma infância hegemonicamente silenciada, a narrativa evidencia a (in)eficácia da escola como instituição socializadora da infância pobre. Pilar, o narrador, era como "outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano". Seu espírito de liberdade vagava alto pelas praias, ruas e morros da capital imperial. Não foi nesses lugares, entretanto, que Pilar recebeu suas primeiras lições de transgressão social – a corrupção, por parte de Raimundo, e a delação, por parte de Curvelo, – mas na Escola de Primeiras Letras no sobradinho da Rua do Costa.

 

* Jornalista. Mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor do curso de Comunicação e Marketing da Faculdade Promove de Sete Lagoas/MG

 

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