A menina que não respeitou a tradição ntonjane e o que aconteceu com ela

Os mais velhos são uns dos poucos que ainda contam a história de uma certa filha de um chefe que atingira a idade de observar a tradição ntonjane. Por isso, ela foi colocada numa palhoça onde deveria permanecer até o dia da cerimônia. No entanto, numa certa manhã, algumas amigas a convenceram a ir banhar-se nas águas de um rio que corria bem próximo da aldeia, o que era terminantemente proibido. O dia avançou pela tarde e já entardecia quando elas resolveram sair de dentro d’água e voltar para a aldeia. Nesse instante, surpreenderam-se ao encontrarem Isinyobolokondwana, uma serpente com a pele coberta de manchas e aspecto assustador, deitada exatamente sobre suas roupas.

Isinyobolokondwana era uma criatura enorme; todas ficaram com muito medo e sem saber o que fazer diante dela. Aos poucos, uma ou outra conseguia redobrar a calma e, estimulando as companheiras, todas começaram a entoar uma canção de dizia algo como...

Sinyobolokondwana, Sinyobolokondwana, traga meu manto!

Ao que a grande cobra respondia:

– Pode apanhá-lo e vá embora! Nem olhe para trás e me deixe em paz!

Uma a uma as moças pediram que a serpente lhes trouxesse suas roupas e conseguiram a devida permissão para apanhá-las. A filha do chefe ficou por último e, como era filha do chefe, era extremamente orgulhosa e cheia de vontades, o que significou que ela se recusou a pedir qualquer coisa à serpente.

Pior do que isso somente o canto irônico que entoou, debochando de Isinyobolokondwana, que dizia assim...

Ngoingcingci, Ngoingcingci

Algo sem o menor sentido, apenas uma brincadeira, uma zombaria com a grande cobra, que, como é de se imaginar, ficou com muita raiva e acabou por mordê-la. No momento seguinte, a pele de filha do chefe ficou igualzinha à da cobra. As outras moças, horrorizadas, gritaram e saíram correndo na direção da aldeia. Temerosas das conseqüências de seus atos, apressaram-se em colocar uma delas dentro da palhoça, para que se passasse pela filha do chefe.

Abandonada no meio da floresta e muito assustada, pois naquele momento sua pele em tudo se parecia com a da serpente e, como um mal bem contagioso, aquele aspecto desagradável só fazia se espalhar por todo o seu entender muito bem o que estava acontecendo. Ao mesmo tempo, seu pai, mandou um de seus ajudantes atrás de pedaços de pau para fazer uma grade onde pretendia pendurar a pele do animal. O homem estava cortando alguns galhos quando ouviu uma voz acima de sua cabeça implorando:

– Homem que está cortando lenha, corra até a aldeia e diga a meu pai e a minha mãe que Isinyonolokondwana me mordeu.

O jovem ajudante ouviu a voz lamentosa mas inconfundível da filha do chefe e correu para avisá-lo. Este, desconfiado de que tudo não passasse de uma grande mentira, uma maneira de fugir ao trabalho que lhe confiara, mandou seu filho e mais outro jovem guerreiro para descobri exatamente o que seu ajudante vira e, até mesmo, se ele vira alguma coisa.

– Vou castigá-lo severamente se for mentira – prometeu, ameaçador.

O ajudante foi obrigado a voltar à floresta e reiniciar o trabalho interrompido. Ele cortava lenha quando mais uma vez a voz profundamente infeliz e angustiada da filha do chefe se fez ouvir. O irmão a reconheceu de imediato e, rumando para a árvore no alto da qual ela se encontrava refugiada, convenceu-a a descer e a levou para casa.

O chefe ficou surpreso ao vê-lo naquele estado e enfureceu-se com suas companheiras por tentarem enganá-lo, além de a terem levado ao rio, o que todas sabiam que era proibido. Todas foram castigadas e, em seguida, o chefe deu ordens para que alguns homens levassem sua filha e algumas cabeças-de-gado para um local distante da aldeia, e lá construíram uma cabana onde ela passaria a morar daquele momento em diante.

Passou-se um certo tempo e alguns começaram a perceber que as vacas que haviam levado para ela produziam mais leite que o necessário e o excesso começou a ser derramado num buraco feito no chão. A surpresa aumentou ainda mais quando, sem mais nem menos, o leite começou a jorrar como se fosse uma cascara espirrando para o alto e tudo se transformou em verdadeiro encantamento quando a filha do chefe, curiosa, aproximou-se do buraco e acabou atingida por um dos jatos de leite. No momento seguinte, como uma cobra costuma fazer de tempos em tempos, todos viram se despir daquela pele de aspecto horrível que a cobria, revelando mais uma vez a grande beleza que sempre encantara a todos na aldeia.

Com espanto e emoção geral, o velho chefe derramou-se em lágrimas ao ver a filha voltar para junto de si. Dias mais tarde, um jovem e poderoso chefe que passava pela região a viu e apaixonou-se imediatamente. Imaginando que ela fosse filha de um dos homens que protegiam a palhoça no meio da floresta, ele se aproximou e fez muitas perguntas, e, assim, foi informado de que se apaixonara pela filha do chefe. No mesmo instante, ele o procurou e ofereceu um grande dote com várias cabeças de gado para que o chefe concordasse com o casamento de ambos. Conta-se que ela também se apaixonou pelo jovem chefe e acabou se transformando em sua principal esposa, sendo muito amada e lhe dando muitos filhos fortes e saudáveis que viriam a ser, como o pai, o chefe de sua gente por muito e muito tempo.

(In: Sikulume e outros contos africanos, p. 14-19.)