Tsui’goab ou A batalha contra a morte

 

Há muitos anos o povo Kói, que vive no grande deserto no sul da África, conta a história de um homem que viria a ser conhecido como Tsui’goab. Naqueles tempos, vivia-se uma grande seca. Não chovia fazia muitos e muitos meses e, como todos os homens da aldeia, Tsui’goab estava preocupado.

– Quando será que teremos chuva novamente? – se perguntava, o sol castigando a terra e os homens, a água cada vez mais escassa com a comida. Para onde quer que olhasse, não conseguia sequer avistar uma nuvem. Os poços secavam e todos eram obrigados a ir cada vez mais distante para encontrar qualquer animal para caçar e saciar a fome das crianças, que choravam noite adentro, as barrigas vazias, os corpos que eram apenas pele e osso.

Quase todo gado morrera. As plantações haviam se transformado em galhos e folhas secas que se misturavam à poeira quando o vento quente soprava do deserto e varria as cabanas silenciosas. Apenas um poço sobrara depois de tantos meses sem chuva, mas a cada dia que passava os baldes eram obrigados a serem descidos cada vez mais baixos para encontrar o líquido precioso.

Vivia-se um grande dilema: beber a água e saciar a sede ou dá-la ao gado. Mas, se dessem ao gado, sofreriam terrivelmente e, pior, não teriam como regar as plantações. Sem gado e sem colheita, morreriam de fome.

O sol, antes olhado com admiração e encantamento, transformara-se no grande inimigo, destruidor de tudo e de todos. Tsui’goab chorava, atormentado pelas dúvidas e pela dor de ver aqueles que amava sofrerem tanto sem poder fazer nada para ajudá-los.

Certo dia, um desconhecido entrou na aldeia logo depois de uma pavorosa ventania que soprou por horas no deserto. Acabou sendo levado e acolhido na casa dos mais velhos, pois, apesar do sofrimento da provação a que eram submetidos pela seca, hospitalidade era hospitalidade e todo visitante sempre se via bem recebido e convidado a partilhar do pouco que tinham.

Apesar de ter o rosto escondido por um capuz e o corpo coberto por uma longa capa, Tsui’goab pôde perceber que era um homem extremamente saudável, musculoso e aparentando grande força física, diferente de todos por aquelas bandas, quase sempre magros e da aparência envelhecida.

– De onde vem? – quis saber, os olhos observando-o com desconfiança.

– De perto e de longe – respondeu o desconhecido.

– A seca anda muito grande e espalhou-se para bem longe...

– É verdade...

– Deve ter visto a morte muitas vezes pelo caminho...

– Por onde quer que eu vá, a morte me acompanha...

– Mas, apesar disso, me parece bem saudável. Bastante saudável, na verdade... – O homem sorriu misteriosamente, mas nada disse, o que levou Tsui’goab a perguntar: – Tem alguma explicação para isso?

– Explicação? Que explicação?

– Qual o seu segredo?

– Segredo? Do que está falando, homem?

– Já esteve outras vezes nesta aldeia, não é verdade?

Os olhos do desconhecido brilharam de modo estranho.

– Sim e não – respondeu, a voz sumida.

Tsui’goab levantou-se num solto e o desafiou:

– Vamos! Tire seu capuz e mostre-nos o seu rosto, pois não há mais o que esconder! Todos sabemos muito bem quem você é!

O desconhecido sorriu, fazendo pouco-caso das palavras de Tsui’goab.

– Sabem mesmo?

– Ouvimos quando disse que vem de longe e de perto e bem sabemos que a morte está por todo lado. Por isso a viu por onde passou, pois a verdade é que você é a Morte.

O desconhecido despiu o capuz e a capa e admitiu:

– É verdade. Eu sou Gaunab e há muitos que me chamam de Morte.

– Deixa-me muito feliz por estar aqui em forma humana – afirmou Tsui’goab.

– É verdade? – desdenhou aquele que se apresentava como a Morte. – E posso saber por quê?

– Assim eu terei alguma chance de tentar salvar meu povo.

– Do que fala? Enlouqueceu? A falta d’água e de comida tirou-lhe o juízo?

– Pelo contrário, nunca estive tão feliz...

– Não entendo...

– Somos uma gente orgulhosa e nenhum de nós tem medo de enfrentar a Morte. Mas como enfrentar o que sabemos existir mas não vemos?

– Enlouqueceu...

– Agora temos a oportunidade. Apresenta-se diante de mim em forma humana, a forma mais cruel, aquela que se alimenta da dor dos infelizes e dos ventres vazios e inchados, dos lábios ressequidos pela sede e das nuvens de moscas que perseguem os corpos daqueles que irão morrer.

– Não tem medo de mim?

– Fico feliz em tê-lo agora diante de mim...

– Por quê? Deseja morrer? Quer que eu o leve comigo?

– O que quero é desafiá-lo para um duelo – afirmou Tsui’goab. – Um combate leal...

A Morte sorriu.

– Acha mesmo que pode me derrotar?

– Tentarei e, se ganhar, espero arrancar de você uma promessa...

– Que promessa?

– A de que partirá daqui pra sempre e deixará meu povo viver em paz.

Gaunab, que se dizia ser a Morte, sorriu.

– Então é isso? Sonha banir-me? É disso que fala? Banir a Morte?

– É!

– Mas e se a derrota for sua? O que ganharei?

– Levará minha vida e a de todos que encontrar no seu caminho de destruição.

– Não parece um grande prêmio, não é mesmo? Mais cedo ou mais tarde, eu ficarei com a vida de todos...

– Aceita meu desafio?

– Acredita que serei leal?

– Certamente, pois você é a Morte e seu único adversário é a Vida. A grandiosidade de ambos impede que sejam desleais. Não há como ser diferente.

– Pois então aceito seu desafio! – e, dizendo isso, Gaunab, aquele que se apresentava como a Morte, atirou-se sobre ele e os dois rolaram pelo chão.

A batalha estendeu-se por dias. Rapidamente a notícia espalhou-se pela aldeia.

– Tsui’goab está lutando contra a Morte! – gritavam.

Em muito pouco tempo, todos rumaram para aquele local. Não houve homem sadio ou doente, forte ou fraco, que não se dispusesse a ir até lá para encorajá-lo. Gaunab, mais forte, parecia vencer a batalha, mas, um pouco depois, todos viam Tsui’goab, que lutava com a força dos desesperados e por aqueles que amava, se superar e a luta se prolongava por dias.

Gaunab tinha a vontade de vencer, mas Tsui’goab era mais rápido e conhecia mais golpes, pois desde que se entendia por gente lutara contra tudo e contra todos para continuar vivo. À Morte interessava vencer e era por isso que lutava. Tsui’goab lutava com a força maior que alimentava o espírito humano, que era o amor e a solidariedade para com todos que sofriam naquele deserto. Por isso era bem mais feroz e muito mais determinado.

Perdeu-se no tempo a duração da luta. Ninguém mais se lembrava. Falava-se em horas, mas havia quem garantisse que se estendera por semanas inteiras. No entanto, uma coisa era certa: ao fim do poderoso combate, Gaunab, aquele que se apresentava como a Morte, jazia estendido no chão, empoeirado, ferido e inegavelmente vencido.

– Estou morrendo... – gemeu, os olhos enormes, como se não acreditasse no que dizia. – Você derrotou a Morte...

– Porque lutou com lealdade – admitiu Tsui’goab.

No entanto, orgulhosa, a Morte não podia nem queria se dar por vencida. Num golpe ágil e cruel, deu um pontapé no joelho de Tsui’goab, partindo-o com um som assustador. Ele tombou gritando de dor e desmaiou ao cair por terra.

Muitas vozes soavam em seus ouvidos quando Tsui’goab finalmente voltou a si. Achou estranho, pois, apesar de ouvi-las nitidamente, não via ninguém.

– Tsui’goab derrotou a Morte – disse alguém – e estamos muito agradecidos. No entanto, a Morte tem muitas faces e a verdade é que ainda está entre nós.

Como Tsui’goab ainda não era seu nome, ele estranhou a menção de tal nome por aquelas vozes que reconheceu serem de sua gente.

– Mas nunca nenhum homem lutou contra a Morte e venceu e temos que ser gratos – afirmou outra voz. – Devemos reconhecer tão grande bravura e cobri-lo de presentes.

Foi nesse instante que aquele que viria a ser conhecido a partir daquele dia como Tsui’goab esfregou os olhos com força e percebeu algo surpreendente: não se encontrava entre os seus, dentro da aldeia, mas antes flutuava bem alto sobre ambos. Estava no céu. Desesperou-se e tentou tocá-los. Nesse momento, esfregou os dedos no corpo e, para sua surpresa ainda maior, deles começou a sair água.

Seus olhos encheram-se de lágrimas, que caíram sobre a terra. Via, de um momento para o outro, a terra tornar-se mais escura à medida que a água caía de seus dedos e de seus olhos. Ele ia molhando a terra com a chuva – chuva que criara. Rostos molhados levantavam-se para o céu e gritavam agradecidos pela água que retornava para salvar-lhes as vidas.

Daquele dia em diante, ninguém mais o chamou ou o reconheceu por outro nome que não fosse Tsui’goab, um deus da chuva, o que significava “joelho ferido”.

(Lendas Negras, p. 06-21).