Entre a mensagem e a comunicação:

A “oralitura” de Mãe Beata de Yemonjá

Pedro Henrique Souza da Silva*

Nascida na Bahia, descendente direta de africanos oriundos da cidade de Ketu, Beatriz Moreira Costa – ou Mãe Beata de Yemonjá – reside em Nova Iguaçu-RJ, onde fundou o Ilê Omi Oju Aro, casa de candomblé até hoje dirigida por ela. Suas obrigações vão desde consultas e festejos religiosos a “contação” de histórias, sendo essa última atividade, de suma importância na elaboração dos seus livros. Aproveito-me da habilidade da ialorixá em contar histórias, para deixá-la narrar como se deu seu nascimento, em Iguape, pequena comunidade do Recôncavo Baiano:

Minha mãe chamava-se do Carmo, Maria do Carmo. Ela tinha muita vontade de ter uma filha. Um dia, ela engravidou. Acontece que, num desses dias, deu vontade nela de comer peixe de água doce. Minha mãe estava com fome e disse: “Já que não tem nada aqui, vou para o rio pescar”. Ela foi para o rio e, quando estava dentro d’água pescando, a bolsa estourou. Ela saiu correndo, me segurando, que eu já estava nascendo. E eu nasci numa encruzilhada. Tia Afalá, uma velha africana que era parteira do engenho, nos levou, minha mãe e eu, para casa e disse que ela tinha visto que eu era filha de Exu e Yemanjá. Isso foi no dia 20 de Janeiro de 1931. Assim foi o meu nascimento. (YEMONJÁ, 2002, p. 11).

Desde o nascimento, a escritora teve sua vida cercada por mitos do candomblé. Destaco as circunstâncias que a trouxeram ao mundo, nascida da fome de sua mãe numa encruzilhada, ou seja, na casa de Exu. Assim, a menina Beatriz passa sua infância, num ambiente composto por ex-escravos e ex-escravas – como “Tia Afalá” – com suas histórias míticas, suas rezas e cantos. Aprendera a ler, antes mesmo de iniciar seus estudos, já que o pai a proibia de frequentar as aulas.

A ialorixá publicou dois livros, Caroço de Dendê: a sabedoria dos terreiros, como ialorixás e babalorixás passam conhecimentos a seus filhos (2002), reúne alguns dos itáns, narrativas míticas originárias da diáspora negra nas Américas, que trazem consigo, além dos ensinamentos religiosos, uma parcela do imaginário universal. Composto por 43 histórias curtas, que vão desde as narrativas em que Exu, Ogum e Xangô aparecem como personagens, como em “Samba na casa de Exu”, “A quizila de Ogum com o quiabo” e “Mais uma história com Xangô e o quiabo”, àquelas em que o universo maravilhoso dos contos de fada, com seus animais falantes e encantamentos, é presente, como em “A fofoca do cágado”, “A lagartixa sabida”, “O bem-te-vi falador” e outras.

Por sua vez, Histórias que minha avó contava (2004) agrupa os “causos” ouvidos, não necessariamente nos terreiros, mas sobretudo nas rodas de crianças em torno dos mais velhos – pais, avós, tios e outros –, num costume antigo de séculos e que remonta às origens da civilização. A narradora resgata uma série de histórias de diferentes fontes. Como se vê em “A barata e o tacho de azeite”, na qual está inserido o refrão popular “quem quer casar com a dona Baratinha, que tem dinheiro na caixinha”, já em “O Saci Pererê e o lenhador” a lenda manauara é resignificada pela performance da escritora. Ou ainda, na narrativa “Cantiga de roda” em que a toada “nega do balaio grande”, pertencente ao cancioneiro popular, é registrada.

Oralitura e ancestralidade

Dilma de Melo Silva, ao escrever o prefácio de Histórias que minha avó contava (2004), lembra a saudação dos griots que – à sombra de um baobá – começam sua narração da seguinte maneira: “não é de minha boca, é da boca de A que o deu a B que o deu a C, que o deu a D que o deu a E, que o deu a F, que o deu a mim, que o meu esteja melhor na minha boca que na dos ancestrais.” (SILVA, apud YEMONJÁ, 2004. p. 6).

Assim, a palavra falada aponta para uma África marcada pela transmissão oral do conhecimento, que chega até os tempos de hoje graças às marcas deixadas em séculos de diáspora negra nas Américas. As histórias narradas por Mãe Beata constituem um dos elos da corrente que liga as duas extremidades do Atlântico. A essas escritas marcadas pela diáspora, a ensaísta Leda Martins dá o nome de “Oralitura”.

É importante, pois, ressaltar a etimologia do termo da autora, a “oralitura” conserva em si seu valor de “letra”, literatura. Portanto, é entendida como “rasura da linguagem, alteração significante, constitutiva da alteridade dos sujeitos, das culturas e de suas representações simbólicas.” (MARTINS, 2001, p. 83). Dessa forma, essas manifestações culturais se inserem no corpus da literatura, não para substituir o conteúdo em voga, mas sim para funcionar como suplemento – no sentido derridiano do termo – e evidenciar as escritas apagadas, mantidas em segredo no palimpsesto. Martins afirma ainda:

O termo oralitura, da forma como o apresento, não nos remete univocamente ao repertório de formas e procedimentos culturais da tradição linguística, mas especificamente ao que em sua performance indica a presença de um traço cultural estilístico, mnemônico, significante e constitutivo, inscrito na grafia do corpo em movimento e na velocidade. (MARTINS, 2001, p. 84).

Logo, a oralitura existe enquanto performance que irá trazer à baila mitos e saberes constituintes do arcabouço cultural de um determinado coletivo. Assim, Exu, Ogum, Iemanjá, Xangô e outros mitos aparecem recriados nos itáns e se comportam como personagens criados pela ialorixá. Tais mitos estão inseridos num tempo em que tudo é passado, presente e futuro, como numa espiral em que tudo volta. Acerca disso, Leda Martins desenvolve a ideia de um “tempo espiralar”. Cito:

Essa percepção cósmica e filosófica entrelaça, no mesmo circuito de significância, o tempo, a ancestralidade e a morte. A primazia do movimento ancestral, fonte de inspiração, matiza as curvas de uma temporalidade espiralada, na qual os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estão em processo de uma perene transformação. Nascimento, maturação e morte tornam-se, pois, eventos naturais, necessários na dinâmica mutacional e regenerativa de todos os ciclos vitais e existenciais. Nas espirais do tempo, tudo vai e tudo volta. (MARTINS, 2001. p. 84).

A ancestralidade, então, ocupa um lugar central nessas comunidades. Tudo, na mitologia iorubá, é uma retomada do passado, como nos lembra Reginaldo Prandi: “para os iorubás antigos, nada é novidade, tudo que acontece já teria acontecido antes. Identificar no passado mítico o acontecimento que ocorre no presente é a chave da decifração oracular.” (PRANDI, 2001. p.18). Para ilustrar a forte presença desse aspecto nas histórias de Mãe Beata, lembro à narrativa “O cachimbo da tia Cilu”, onde um rapaz que trabalhava, como caixeiro viajante, ao retornar para casa encontra com “Tia Cilu” fumando seu cachimbo numa noite de tempestade; questionando sua mãe sobre o comportamento da senhora, o caixeiro recebe a seguinte resposta da mulher já em lágrimas: “– Hoje foi o último dia do axexê de Tia Cilu.” (YEMONJÁ, 2002. p. 32). A narração então acaba com um dos ensinamentos característicos das narrativas do livro: “Este conto mostra uma verdade: para nós, iniciados, não existe a morte. Somos ancestrais, e Tia Cilu era uma ancestral.” (YEMONJÁ, 2008. p. 32).

Diáspora negra e “memória em disputa”

Se a construção de memória nacional acontece por meio de disputas, como nos lembra Michael Pollak em seu texto Memória, Esquecimento, Silêncio, a memória dos escravos e seus descendentes encontrou na figura de Mãe Beata de Yemonjá um dos seus principais pilares de sustentação. Personalidade influente na comunidade negra realiza trabalhos com pacientes soropositivos, além de ser conselheira do MIR (Movimento Inter-Religioso), integrante do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e, há 13 anos, presidente de honra da ONG CRIOLA. Assim, destaco a ialorixá ativista, que irá – em certa medida – brotar nas histórias narradas em Caroço de Dendê.

Vejamos o que a escritora diz acerca da situação do negro e das religiões afro-brasileiras: “nós, negros, estamos precisando muito disso, de saber as nossas histórias. Precisamos saber que nós somos capazes, nós, negros, que nós das religiões afros temos história, temos saber?” (YEMONJÁ, 2002, p. 15). Então, podemos mensurar a importância desses textos para além da fronteira do literário, pois eles ultrapassam esse limite e alcançam status de ferramenta protetora de uma cultura estigmatizada por preconceitos moldados historicamente na sociedade brasileira.

Retorno ao texto de Michael Pollak que afirma: “a referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis.” (POLLAK, 1989. p. 7). Logo, lembrar o passado é uma maneira encontrada pelos negros para se defender dos históricos apagamentos e branqueamentos da cultura nacional, pautada em valores eurocêntricos.

Os orixás, transcriados pela narradora, serão – muitas vezes – porta-vozes de um grito de reivindicação do direito de inserção das memórias e da cultura negra no discurso da memória nacional. Cito a narrativa “Exu e os dois irmãos”:

Vocês sabem que Exu não gosta de ver ninguém em paz, nem muito feliz. Para a pessoa adquirir tudo isso tem de fazer um acordo com ele, senão nada vai bem. E foi o que aconteceu com um homem que tinha um sítio junto com seu irmão. Os dois eram muito religiosos. E Exu dizia – Agora, vejam! Esses dois negros, sendo das minhas raízes, só vão rezar! Como pode? Será que eles acham que os mitos de nossos ancestrais não vão lhes ajudar e não têm força? Eu vou fazer eles verem, eles vão ter que me procurar. (YEMONJÁ, 2002, p. 99).

Exu, então, mistura a plantação dos irmãos – que dividiam o sítio ao meio –, onde havia sido plantado feijão, Exu plantou milho e onde havia milho feijão. Isso fez com que os irmãos brigassem e Exu – depois de rir muito – reaparece para os irmãos e diz:

– Olha, eu vou fazer vocês se unirem e acabarem com esta contenda. Eu sou Exu. Eu quis mostrar para vocês dois que os mitos das suas raízes, do país de que vocês chegaram até aqui, têm os mesmos valores que os outros, e talvez até mais, pois são milenares. Como vocês acham que os outros, não os da sua cultura, podem ter mais força? De Hoje em diante, vocês vão voltar ao que eram e a ter tudo. (YEMONJÁ, 2002, p. 100).

É possível perceber através da fala do orixá, o desejo por ocupar igual lugar no imaginário coletivo brasileiro. Vemos também, a luta de uma memória subalterna frente a um discurso hegemônico construído pela memória oficial, que reservou aos mitos de matriz africana uma posição de apagamento.

Entre Exu e Iemanjá

“Além de fontes de inspiração divina” – como afirma Giovanna Pinheiro em seu texto “As heranças africanas na narrativa de Mãe Beata de Yemonjá: mitologia, autoria, oralidade” - os dois orixás são uma importante chave de leitura para os textos presentes em Caroço de Dendê. De acordo com a mitologia Iorubá:

Um mensageiro chamado Exu andava de aldeia em aldeia à procura de solução para terríveis problemas que na ocasião afligiram a todos, tanto os homens como os orixás. Conta o mito que Exu foi aconselhado a ouvir do povo todas as histórias que falassem dos dramas vividos pelos seres humanos, pelas próprias divindades, assim como por animais e outros seres que dividem a Terra com o Homem. (...) Assim fez ele, reunindo 301 histórias, o que significa, de acordo com o sistema de enumeração dos antigos iorubás, que Exu juntou um número incontável de histórias. (PRANDI, 2001, p. 17).

Sobre Iemanjá o sociólogo afirma: “a senhora das grandes águas, mãe dos deuses, dos homens e dos peixes, aquela que rege o equilíbrio emocional e a loucura, talvez o orixá mais conhecido no Brasil. É uma das mães primordiais e está presente em muitos mitos que falam da criação do mundo”. (PRANDI, 2001. p. 22).

Cabem a esses orixás, respectivamente, as funções da mensagem e da comunicação. E a partir desses aspectos, podemos dizer que Mãe Beata de Yemonjá – como filha das duas entidades – se comporta como Exu, pois recolheu um grande número de histórias ouvidas nos terreiros. Histórias essas que contavam a origem dos orixás, de sacerdotes e suas relações com os deuses, que refletiam valores necessários a um filho-de-santo. E como Yemanjá, a ialorixá é responsável por fazer a comunicação entre o passado e o presente da cultura afro-brasileira, através do registro e transmissão dessas histórias dos terreiros até locais antes negados a essa cultura, como por exemplo, o universo letrado dos livros.

Logo, entre a mensagem e a comunicação, entre Exu e Iemanjá, entre o Mito e a Ficção, está a oralitura de Mãe Beata de Yemonjá.

Referências

CARDOSO, Vânia. Mito e memória: a poética afro-brasileira nos contos de Mãe Beata. Introdução. In: YEMONJÁ, Mãe Beata de. Caroço de dendê. 2 ed. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2002.

EVARISTO, Conceição. Mãe Beata de Yemonjá. In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Vol. 2, Consolidação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

FERNANDES, Alexandre de Oliveira. Notas para uma leitura Derridiana de Exu. Disponível em: <http://www.pgletras.uerj.br/palimpsesto/num12/estudos/palimpsesto12estudos02.pdf>. Acesso em 14 abr. 2013.

MARTINS, Leda. Oralitura da memória. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org). Brasil afro-brasileiro. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

PINHEIRO, Giovanna. As heranças africanas na narrativa de Mãe Beata de Yemonjá: mitologia, autoria, oralidade. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/data1/autores/97/maebeatacritica01.pdf>. Acesso em 14 abr. 2013.

PRANDI, Reginaldo. Mitologias dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

POLLAK, Michael. “Memória, Esquecimento e Silêncio”. Disponível em: Acesso em: <http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf>. Acesso em 20 mar. 2013.

SILVA, Glória Cecília de Souza. Os ‘Fios de Contos’ de Mãe Beata de Yemonjá: mitologia afro-brasileira e educação. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2008.

SILVA, Dilma de Melo. Apresentação a Histórias que minha avó contava. São Paulo: Terceira Margem; CESA, 2004.

YEMONJÁ, Mãe Beata de. Caroço de dendê: a sabedoria dos terreiros. 2 ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2002.

YEMONJÁ, Mãe Beata de. Histórias que a minha avó contava. São Paulo: Terceira Margem, 2004.

* Graduado em Letras, FALE / UFMG.

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