As heranças africanas na narrativa de Mãe Beata de Yemonjá

Mitologia, autoria, oralidade

 

Giovanna Soalheiro Pinheiro*

 

E, enquanto os homens tocavam seus tambores,

Vibrando os batás e agogôs, soando os xequerês e adjás,

Enquanto os homens cantavam e davam vivas e aplaudiam,

Convidando todos os humanos iniciados para a roda do xirê,

os orixás dançavam e dançavam e dançavam.

Reginaldo Prandi

 

A memória cria a corrente de tradição

Que passa um acontecimento de geração em geração.

Walter Benjamin

 

O mito e o sagrado

A mitologia africana dos orixás é tão admirável e bela quanto a mitologia dos deuses gregos e romanos, no entanto, é pouco difundida e, menos ainda, analisada em nosso meio acadêmico. Os mitos da cultura européia foram contados e recontados em séculos de expansão cultural do ocidente. A cultura africana, por sua vez, ficou em segundo plano e, somente com a emergência dos estudos culturais, tornou-se mais manifesta, relativizando uma tradição que, até então, apregoava somente o estudo dos cânones universais. A literatura de Beatriz Moreira Costa – Mãe Beta de Yemonjá – arquiteta-se, sobretudo, a partir de uma expressão oral, centrada na tradição da memória coletiva circundada por elementos pertencentes à cultura e ao substrato mítico-religioso afro-brasileiro. Segundo Mircea Eliade:

O mito conta uma história sagrada, ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. (ELIADE, 1972, p. 11).

A estrutura mítica nos remete diretamente ao contato comunicativo com o espaço sagrado, visto que, para o homem religioso, não existe coesão espacial sem hierofania, ou seja, sem uma ligação direta com os deuses. O mito é uma necessidade cósmica para a explicação da essência dos seres e das coisas presentes no universo. Eliade revela que a palavra mito "é hoje empregada tanto no sentido de 'ficção' ou 'ilusão', como no sentido – familiar sobretudo aos etnólogos, sociólogos e historiadores de religiões – de ‘tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar’."(ELIADE, 1972, p. 8) É por essa razão que o sagrado mostra-se em criações da Mãe-Natureza. Não são as rochas, as flores, os bichos e as vegetações que são idolatrados, mas sim o que eles simbolizam para as sociedades. Nota-se, desse modo, que nas obras de Beata Yemonjá, Caroço de dendê e Histórias que minha avó contava, temos a mitologia dos orixás pontuando grande parte de suas narrativas, ora em planos primários, ora em secundários. Na composição da escritora, podemos observar um elo entre a narração popular e o objeto mágico-religioso, o que configura tanto os mitos de criação e de origem, quanto as narrativas moralistas, as quais visam aos ensinamentos de toda a comunidade.

Observemos o conto “Caroço de dendê”, que deu nome ao seu primeiro livro:

Quando o mundo foi criado, o caroço de dendezeiro teve uma grande responsabilidade dada por Olorum, a de guardar dentro dele todos os segredos do mundo. No mundo Ioruba, guardar segredos é o maior dom que Olorum pode dar a um ser humano. É por isso que todo caroço de dendê que tem quatro furinhos é o que tem todo o poder. Através de cada furo, ele vê os quatro cantos do mundo para ver como vão as coisas e comunicar a Olorum. E mais ninguém pode saber desses segredos, para não haver discórdia e desarmonia. É por meio dessa fórmula que o mundo tem seus momentos de paz. Existe também o caroço de dendê que tem três furos, mas a esse não foi dada a responsabilidade de guardar os segredos. Existe uma lenda que diz que Exu, com raiva desta condição que Olorum deu ao coco de dendezeiro de quatro furos, quis criar o mesmo poder de ver tudo à sua moda, com brigas e discórdias. Ele chamou o coco dendê de três furos e disse:

─ Olhe, de hoje em diante, eu quero que você me conte tudo o que vê.

Aí o dendê lhe respondeu:

─ Como? Se eu só tenho três olhos e não quatro, como meu irmão, a quem Olorum deu este poder?

─ Ousas me desobedecer, dendê? – disse Exu aborrecido.

─ Sim! Tu não és mais do que aquele que é responsável pela minha existência e a tua ─ respondeu o coco de dendê.

Dizendo isto, sumiu. Exu, desta vez, não foi feliz na sua trama. (YEMONJÁ, 2002, pág 97).

Temos, na história acima em primeiro plano, isto é, na base da estrutura narrativa, o mito da criação do universo. Na cultura Ioruba, explica-nos a narradora, a alegoria do caroço de dendê, de três e de quatro furos, deve ser associada à paz no universo em harmonia com a revelação e com os segredos do planeta. Olorum tem o controle do mundo, cabendo ao homem e aos outros orixás o respeito às regras por ele impostas.

Olorum ou Olodumare ─ O Deus supremo ─ é o orixá que simboliza o céu, tendo como atributos a totalidade, a perfeição e a universalidade. Observa-se, no relato acima, que essas qualificações são responsáveis pelo conhecimento total dos segredos do universo, expresso na figura do caroço de dendê de quatro furos. Exu, por sua vez, é aquele que descerra os caminhos e, por essa razão, é sempre o primeiro orixá a ser invocado nas aberturas dos trabalhos e nas oferendas. Figura a energia dinâmica, o fluido vital e ainda provoca algumas discórdias entre os homens e o mundo sagrado. Está associado, ao mesmo tempo, com o processo comunicativo, por entremear as relações entre os humanos e as divindades. A ele é dada, além disso, a majestosa habilidade nas adivinhações. Ao final do conto, podemos notar fins moralizantes, na medida em que Exu é censurado devido às suas armações. Embora possamos identificar a associação desse orixá à mensagem e à comunicação, expressas na figura do caroço de dendê de três furos, percebemos uma personagem astuciosa e, até mesmo, titubeante na urdidura de suas tramas. Aliás, ele é uma das figuras mais retratadas na obra de Mãe Beata de Yemonjá, fundamentalmente em Caroço de dendê. Ora aparece como intermediador no contato comunicativo entre homens e deuses, ora como protetor, porém é justamente a sua função de mensageiro que sintetiza toda a literatura oral da contadora de histórias.

No conto “Oko”, há a história mítica que relata a origem das plantações e a criação do ferro. No início da criação do mundo, não existia nada plantado e um homem com o nome de Oko, que remete àquele que nada fazia, recebeu o encargo de disseminar as árvores e vegetações necessárias à sobrevivência do seres humanos. Oko, em suas andanças, encontrou um “molequinho" que vivia sempre debaixo de uma palmeira remexendo a terra. Esse molequinho era Ogum, inventor do ferro e das ferramentas que auxiliam o homem, tais como as enxadas, o arado e a foice. Oko, orixá da colheita, da lavoura e das plantações, passou a cultivar a terra juntamente com Ogum. Tal mito, recriado por Mãe Beata, encontra ressonância em diversas obras sobre mitologia africana. No entanto, o que realmente nos interessa, são os relatos sobre a criação e a origem do universo e dos objetos nele inseridos. A rememoração das narrativas mágicas pereniza o imaginário religioso das comunidades às quais se referem e, sobretudo, resgata os valores e a importância de determinados seres e elementos, responsáveis pela sobrevivência e moralização do homem inserido no seu meio. O mito não somente explica como algo passou a existir, mas também educa os homens no que tange ao cuidado com a Mãe-Natureza e às normas que governam uma comunidade.

Para os povos de origem africana, segundo atesta Reginaldo Prandi, os orixás são deuses que receberam de Olodumare ou Olorum – o Deus supremo – a missão de criar e reger o universo. Cabe, dessa forma, a cada um deles, a responsabilidade de organizar a natureza, a vida em comunidade e os valores morais da existência humana. Os relatos observados na narrativa de Beata de Yemonjá perpassam toda uma tradição mítica africana: Yemanjá, Nanã, Olorum, Ossâin, Xangô e Ogum são alguns dos personagens pintados em sua obra. É importante ressaltar, por fim, que há uma confluência de gêneros, não sendo possível delimitar as histórias sagradas das ficcionais, isto é, não se pode estabelecer parâmetros de separação entres os mitos e os contos profanos, uma vez que temos o entrecruzamento dialógico de ambos, quer em primeiro plano, quer em segundo.

Memória coletiva e oralidade

Na obra de Mãe Beata, a memória e a tradição mítica resguardam e revelam os primeiros heróis dos povos de origem africana, a transformação de homens em deuses, os sonhos, o amor, o ódio, o nascimento das árvores, das águas, dos montes e, por fim, a gênese do universo e dos valores imanentes a toda e a qualquer sociedade. Não pode e não deve haver civilização sem história folclórica, sem narrativa oral, sem lendas e sem mitos, visto que, por meio destes, passamos a legitimar a nossa própria organização antropológica. Organização que nos remete à literatura oral, a mais acolhedora infância, e que congrega as manifestações mítico-folclóricas mantidas pela tradição.

Essa literatura é o espelho em que vemos a nossa imagem sócio-cultural transfigurada. João Ribeiro já dizia: “O folclore é, pois, uma pesquisa de psicologia dos povos, das suas idéias e seus sentimentos comuns, do seu inconsciente, feito e refeito secularmente, e que constitui a fonte viva donde saem os gênios e as individualidades de escol”. (apud CASCUDO, 2004, p. 7). Nesse contexto, compreende-se por tradição, do latim tradere, traditio, a transmissão de um conhecimento, através da ação de divulgar a cultura popular ágrafa, mantida na memória, como evidencia Câmara Cascudo.

Mãe Beata de Yemonjá, enquanto ialorixá, sacerdotisa-chefe de uma comunidade de terreiro, reestrutura, em Histórias que minha avó contava e Caroço de Dendê, a narrativa oral da cultura afro-brasileira, enredando e reunindo os mitos da tradição. Na realidade, a contadora de histórias procura expor a sua visão de mundo, por meio de uma voz coletiva afro-descendente, tendo como fio condutor a vivência nos terreiros de candomblé. A sua escrita é mantenedora da tradição das contadoras africanas que, na sociedade colonial, andavam pelas casas-grandes e senzalas narrando as suas histórias.

Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala, fala sobre as superstições e canções de acalanto enriquecidas nas vozes das escravas africanas, amas-de-leite dos meninos brancos. Fala sobre as negras contadoras de histórias que embaralhavam as suas tradições narrativas aos contos portugueses, fazendo dessa arte de contar, de lugar em lugar, uma verdadeira profissão:

Foram as negras que se tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias. Há o akpalô fazedor de alô ou conto; e há o arokin, que é o narrador das crônicas do passado. O akpalô é uma instituição africana que floresceu no Brasil na pessoa de negras velhas que só faziam contar histórias às outras pretas, amas dos meninos brancos. José Lins do Rego, no seu Menino de engenho, fala das velhas estranhas que apareciam pelos bangüês da Paraíba: contavam histórias e iam-se embora. Viviam disso. Exatamente a função e o gênero de vida do akpalô. (FREYRE, 2005, p. 413).

Mãe Beata de Yemonjá apregoa, conforme Dilma de M. Silva, a “tradição africana da palavra narrada”, e defende a conservação de idéias, valores e imagens, cultivando as glórias guerreiras e sociais dos africanos (apud YEMONJÁ, 2004, p. 6). Sua literatura é a rapsódia de algumas das lendas afro-brasileiras que compõem o substrato mítico-religioso dos povos descendentes dos Iorubanos e outras etnias. Ou seja, há a compilação de narrativas mais ou menos extensas, acerca das habilidades religiosas e artísticas que configuram a identidade e os valores morais desses povos.

Em sua obra Literatura oral no Brasil, Câmara Cascudo também faz um estudo referindo-se à construção das narrativas orais dos povos negros:

Toda África ainda mantém seus escritores verbais, oradores das crônicas antigas, cantores das glórias guerreiras e sociais, antigas e modernas, proclamadores das genealogias ilustres. São os akpalô kpatita, ologbo, griotes. Constituem castas, com regras, direitos deveres, interditos, privilégios. De geração em geração, mudando de lábios, persiste a voz evocadora, ressuscitando o que não deve morrer no esquecimento. (CASCUDO, 1984, p. 143).

É exatamente nesse perfil que se enquadra a fala de Beata de Yemonjá, posto que a inclusão afro-descendente na literatura oral do Brasil tem, na sua apresentação textual, forte mecanismo de divulgação desses valores. O enredo é sempre circundado por orixás, essencialmente Exu e Yemonjá, o mensageiro e a comunicação, que juntos compõem a tradição oral africana. Também nele estão presentes nomes, objetos, mitos, contos, ervas, mezinhas e tantos outros elementos que indicam o continente artístico e cultural dos afro-brasileiros. A produção de Mãe Beata configura-se do mesmo modo como uma manifestação da memória, capaz de expressar a vivência das comunidades de candomblé nesse contar histórias, transmitindo conhecimento a crianças e adultos com muita energia.

Em outro livro, Histórias que a minha avó contava, a escritora combina os elementos da tradição oral africana à tradição oral tipicamente indígena. Quase todos os contos são plenos de animais, construindo pequenas fábulas, repletas de ensinamentos “que implicam em sabedoria do viver”, segundo atesta Teresinha Bernardo. É o que acontece, por exemplo, em “A lagoa encantada”:

Em cachoeira de Paraguaçu existia um candomblé antigo que chamavam de Candomblé das Velhas. Elas eram muito respeitadas. Do lado do terreiro havia uma lagoa que todos diziam ser encantada. Ali morava a Cobra Cauã, um encostado que quando se manifesta no corpo de uma pessoa se enroscava como cobra. Dizem que tem muita força, assim como Oxumarê. Hoje já não existe mais esse candomblé, pois o progresso naquela região foi tomando todo o espaço e até a lagoa encantada desapareceu.

Muitas coisas importantes da nossa história estão se perdendo, mas a fé do povo negro não se acaba. (YEMONJÁ, 2004, p. 29).

Oxumarê, em forma de serpente, simboliza o arco-íris que liga o céu à terra, fecunda o solo e suscita as grandes riquezas. É senhor do movimento, do revolver incessante da vida e da eterna renovação. Há lendas brasileiras que, de certa forma, podem se assemelhar à expressa pela voz narrativa de Beata de Yemonjá. Cobra Norato, por exemplo, personagem apropriado por Raul Bopp e também estudado em Lendas brasileiras, de Câmara Cascudo, possui um imponente espírito guerreiro, protegendo a natureza e os habitantes da região norte do país.

Em outros contos de Mãe Beata, pode-se perceber a presença do sincretismo religioso, como, por exemplo, em “O vagalume”, onde há a presença de personagens bíblicos ─ Jesus Cristo, São José e a Virgem Maria ─, corporificados nas figuras de orixás africanos: Oxalá e Yemanjá.

Percebemos, em “O vendedor de orobôs”, a presença de Xangô, senhor dos raios, do fogo e da pedra, o qual simboliza o caráter, a justiça, o amor e a verdade. Castiga pesadamente os mentirosos, como acontece no texto em questão:

Existia um homem que trabalhava na feira vendendo orobô mais era muito avarento e queria ficar rico rápido. Certa feita, chegou uma senhora e pediu seis orobôs, o que fez ele, pegou três de verdade e três sementes quaisquer e entregou para a inocente senhora.

Quando ela entregou a sua Yá mãe, esta logo percebeu e disse: ─ Filha, você foi enganada, mas deixe esse malandro, Xangô vai cobrar a ele.

Passados alguns dias, ela foi à feira e como quem não queria nada, encontrou o vendedor de orobôs, muito doente dos olhos, quase sem enxergar. Então ela disse: ─ Olha, aquela senhora para quem você vendeu os orobôs falsos na semana passada, é filha de Xangô, isso é castigo do rei, você parta um orobô em banda e passe nos olhos, pedindo perdão a ele, pois os orobôs são os olhos de Xangô e é através deles que ele vê todas as nossas ações, as boas e as más, para nos julgar (YEMONJÁ, 2002, p. 15).

A oralidade é constante em nosso cotidiano, sendo muitos os seus caminhos, o mito, por exemplo, é um grande parceiro de tal tradição verbal, visto que, como foi dito nos parágrafos acima, serve como fonte pedagógica e ética. Nos textos de Mãe Beata, podemos observar os deuses africanos em consonância com os princípios moralizantes. A grande maioria dos seus contos, a exemplo do citado acima, apregoa o modo como os indivíduos devem se comportar em sociedade, sendo sempre guiados por deuses que julgam o comportamento humano, punindo-o conforme seus atos. Nesse sentido, fica claro, ao lermos a sua obra, que os ensinamentos advindos das narrações são, em grande medida, precedidos por cometimentos imorais, mas que não definem arbitrariamente o caráter do agente. É como se, por intermédio dos orixás, todos tivessem uma segunda oportunidade, mas não sem antes receberem determinado castigo.

A oralidade em questão

Os componentes verbais que caracterizam a literatura marcada pela oralidade permanecem no plano do contexto social. Portanto, cada comunidade, com suas inerentes tradições, revela-se por meio de lendas e mitos pronunciados de geração em geração. A estética oral se fundamenta no próprio processo do diálogo e da transmissão; não se fixa, portanto, no plano escrito, seguindo as regras da literatura tida como universal. Segundo Lourenço J. da Costa Rosário, em A narrativa africana de expressão oral, o termo literatura oral carrega em si um paradoxo, pois a literatura se encontra intimamente relacionada à forma escrita, mas, segundo ele, tal paradoxo é apenas aparente:

Temos para nós que ainda assim, a designação mais próxima da legítima será a da Literatura Oral, apesar do aparente paradoxo semântico. Nela está contido o essencial, a característica literária de um acto criativo verbal e a sua transmissão na oralidade que faz com que se deva reger por conceitos muito próprios em termos de teoria literária. (ROSÁRIO, 1989, p.52).

A língua e o narrador da oralidade estão mais centrados nas normas e nos valores coletivos e isso ultrapassa em muito o âmbito da chamada “criação artística”. Essa produção visa à transmissão de heranças culturais e, sendo assim, os preceitos estéticos do texto canônico não devem ser tomados como referência para os valores e os paradigmas aplicáveis à leitura de tais construções. A textualidade de base oral segue estruturas apropriadas à sua natureza: na passagem para a forma escrita, a linguagem oral adequa-se ao novo contexto de expressão, sem perder suas marcas de origem.

As histórias de Beata de Yemonjá expressam, portanto, os valores coletivos, culturais e religiosos, os quais são rememorados, por meio de sua voz evocadora, capaz de transmitir o conhecimento para todos os membros de suas comunidades. Recriar a tradição é fundar novamente a existência transitória do homem no mundo, é eternizar as suas glórias, é fazer do passado o presente e, sobretudo, construir uma sociedade profundamente ligada aos seus ancestrais. É essencialmente isso que propaga a oralidade nas obras da sacerdotisa de Exu e Yemanjá. Guiada por esses orixás, representantes da comunicação e da mensagem, Mãe Beata é responsável pela realização de uma escrita que objetiva o resgate das tradições africanas, a fim de perpetuar a expressão sócio-cultural de toda uma coletividade.

Autoria

O conceito de autoria é muito complexo e mesmo paradoxal, se aplicado à obra de Beata de Yemonjá. Seria ela a autora de seus textos, ou a obra é o fruto de uma coletividade; ou ainda, no processo de rememoração estaria a sacerdotisa “inspirada” pelos seus orixás de cabeça?

A primeira questão a ser analisada está em consonância com a intencionalidade. Intenção que aqui não será entendida simplesmente no nível interpretativo, mas, especialmente, no âmbito da formação sócio-cultural da escritora. Sabe-se que a contadora de histórias descreve as tradições e heranças presentes na memória cultural comunitária. Neta de portugueses e negros escravizados passou a infância rodeada pela presença de mãe Afalá e por outras mulheres de origem africana, notadamente, pela avó paterna, mulher que, segundo Mãe Beata em seus relatos, “tratava de todos no engenho com suas ervas e mezinhas”. (YEMONJÁ, 2002, pág, 12).

É possível notar, ao longo do texto, que há a expressão de um continente sócio-cultural e religioso, o qual depende, consideravelmente, da experiência da escritora. Percebe-se que, nesse sentido, não é possível desvencilhar a criatura (autora) de sua criação (a obra), uma vez que os seus conhecimentos, enquanto mãe de santo nos terreiros, arquitetam seu processo de construção textual. Não há aqui a finalidade de reduzir a obra a uma interpretação biográfica, até mesmo porque há uma transmissão e um diálogo que estruturam o processo de construção narrativa, como apropriação e reprocessamento da memória discursiva comunitária. Desse modo, a voz autoral associa-se às vozes memoriais presentes nos textos. No prefácio ao livro Caroço de dendê, afirma Vânia Cardoso:

As histórias de Mãe Beata dão voz a uma parte importante da memória afro-brasileira, expressando uma sensibilidade que reflete esteticamente a cultura do “povo de santo”. A dinâmica da transmissão oral destas histórias dentro das comunidades-terreiro e a interação entre contadores e ouvintes no dia-a-dia dos terreiros nos levam a pensar nos contos de Mãe Beata como, de certa forma, uma criação coletiva destas comunidades, individualizadas pela sua criatividade como contadora de histórias. (YEMONJÁ, 2002, p. 12-13).

Nota-se, de tal modo, que a sabedoria é adquirida por meio de um processo dialógico – uma interação entre comunidade dos terreiros e a tradição oral africana – fazendo com que a autoria seja de caráter essencialmente coletivo. Na realidade, os seus contos devem ser examinados levando-se isso em consideração, apesar de apresentarem especialidades próprias ao modo de expressão da autora.

Uma última abordagem refere-se à inspiração da narradora no seu constante contar de histórias: Exu e Yemanjá, orixás que simbolizam a mensagem e a comunicação, seriam fontes divinas que vão ao encontro da oralidade presente na obra de Mãe Beata. Da mesma forma que as Musas moviam Homero e Hesíodo, nas narrações dos grandes feitos heróicos e na genealogia dos deuses, os orixás africanos movimentariam o processo de constituição das lendas e dos mitos das religiões afro, fazendo com que toda uma tradição cultural e religiosa seja rememorada e reedificada, por meio dos textos da escritora.

É preciso mencionar que os contos são as vozes de um povo, de um tempo e de um espaço em constante processo de transformação. Encadeados dialogicamente, formam esse imaginário coletivo e essa memória resguardada. Mãe Beata de Yemonjá é figura central na luta pelo reconhecimento e pela valorização da cultura afro-brasileira, uma vez que sua literatura é a difusão inabalável de uma tradição pouco compreendida e menos ainda propalada pelo cânone nacional. Como disse a própria escritora: “nós, negros, estamos precisando muito disso, de saber as nossas histórias. Precisamos saber que nós somos capazes, nós, negros, que nós das religiões afros temos história, temos saber”.(YEMONJÁ, 2002, p. 15).

A literatura oral de Beata de Yemonjá expressa não somente a cultura africana, mas abre passagem para a análise de tal tradição mágico-religiosa, que é, antes de tudo, admirável pela beleza e subjetividade que carrega em si. Os mitos, na narrativa da escritora, são, na verdade, parte indispensável no que tange à formação histórica dos povos de origem africana. Falam sobre a criação do mundo, sobre a transformação de homens em deuses e, especialmente, explicam a existência do presente com base na rememoração de um tempo e de um espaço enigmáticos. A oralidade, assim como o conceito de autoria, é parte integrante desse universo, pois em se tratando de uma tradição da palavra narrada, transmutada de geração em geração, não se pode falar em uma construção individual, isolada do seu contexto sócio-cultural.

Referências

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CASCUDO, Luís da Câmara. Lendas Brasileiras. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

COSTA, Beatriz Moreira. Histórias que a minha avó contava. São Paulo: Terceira margem, 2004.

ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. São Paulo: Global, 2005.

PRANDI, Reginaldo. Mitologias dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

RIBEIRO, José. Orixás africanos. Rio de Janeiro: Espiritualista, 1968.

ROSÁRIO, Lourenço Joaquim da Costa. A narrativa africana de expressão oral: Transcrita em português. Luanda: Editores Lisboa: Instituto de cultura e língua portuguesa, Angolê, 1989.

FERNANDES, Frederico Augusto Garcia Fernandes (Org.). Oralidade e literatura: manifestações e abordagens no Brasil.Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2003.

YEMONJÁ, Mãe Beata de. Caroço de dendê: a sabedoria dos terreiros. Rio de Janeiro. Pallas, 2002.

YEMONJÁ, Mãe Beata de. Histórias que a minha avó contava. São Paulo: Terceira Margem, 2004.

* Graduada em Letras pela UFMG.

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