Das Águas de Negra Cor – Uma leitura da Lírica de Lívia Natália

Antonio Carlos Sobrinho*

Oxum rora yèyé o!
Àgò.

Oxum era a rainha,
na mão direita tinha,
o seu espelho em que vivia a se mirar.
Vinícius de Moraes, Canto de Oxum.

Dentro do mar tem rio
lágrima chuva aguaceiro
dentro do rio, um terreiro
dentro do terreiro, o que?

Paulo César Pinheiro e Pedro Amorim, Beira-mar.

 

 

Água Negra é a imagem com a qual Lívia Natália enfeixa um total de 29 poemas, compondo assim uma unidade que vem a representar a primeira publicação em livro de sua produção poética.

Decerto, a imagem reivindicada se espraia por todo o conjunto de poemas, reatualizando-se em cada verso. Mas, quais leituras podem ser feitas desta imagem onipresente na lírica de Lívia Natália?

Neste texto, eu procuro dar alguns encaminhamentos – talvez incompletos; por certo complementares – à pergunta acima. São três as leituras que faço e defendo aqui:

 

  1. Água Negra, imagem por meio da qual o eu lírico desce às profundidades de tudo o que já não é senão agônica cicatriz, sutura inapagável a proteger, na epiderme de um presente qualquer, uma dor que se potencia no ato de não mais ferir. Imagem-memória.
  2. Água Negra, imagem da qual emerge um eu lírico fecundado na aquosa negrura pelo mito que o abarca por inteiro, desde o antes dos tempos e sempre, mesmo no mais íntimo de sua humana e situada condição. Imagem-mito.
  3. Água Negra, imagem incontinente, de dentes intangíveis com os quais o eu lírico, ele próprio liquefeito, morde estruturas, transformando-as de forma lenta e consciente tal um borrão na escrita dos versos em que diz de si. Imagem-resistência.

 

Três caminhos, três possibilidades de leitura desta imagem acionada por Lívia Natália na primeira publicação em livro de sua produção poética, Água Negra (2011).

Uma tentativa inicial de compreensão desta imagem-título remete-me, via conotação, ao aspecto turvo das águas do Abaeté, espaço ao qual a poeta baiana se refere, nas poucas linhas biográficas que compõem a orelha da publicação, como aquele em que cresceu.

Neste sentido, talvez seja possível pensar aquela lagoa de águas densamente escuras – tal a memória, insuspeitada superfície a resguardar perigosa e inescapável fundura – a exemplo de um locus memorialístico ao qual a poeta retorna em tentativa não vã de recuperar, por via da consagração poética, o longínquo instante cuja ausência se faz presente: “Um brilho ausente cintila entre as areias brancas de nossa infância”.1

O eu poético revisita uma paisagem da infância, muito provavelmente o Abaeté, cuja lagoa betumosa é circundada por elevações da mais branca areia. Neste retorno, haveria brincadeiras e risos, aconchego morno de um tempo feliz. Entretanto, cenário e eu lírico vestem-se invernais, nas frias cores de uma ausência tão-quase matéria, tão-quase carne, e tão-somente sopro feroz de lembrança dorida. O brilho que se emana de algo por entre as dunas já não advém daqueles olhos iriados de negra cor que antes divisavam águas, mas de seu ocaso:

E ele,

minha irmã,

é seu rastro de ser celeste

que pela terra passou em brasa

e dor.2

 

O pulsar entrevisto naquele branco areal é reminiscente da irmã que falta ao cenário, mas que o compunha quando de tempos infantis. Neste plano, o sofrimento daquela que se foi, aflição de uma vida que se esvai, transubstancia-se no padecimento daquela que (sobre)vive. Por um lado, a dor escrita no verso é, sem margem de dúvida, aquela da falecida irmã; por outro, há uma inscrição de luto, anterior à própria escrita, que jaz no retorno mnemônico daquela que verseja à que, em vida, não mais fulgura.

Assim, a carência fraterna se descortina ubíqua presença. A irmã, brilho ausente, corisca contemporânea e continuadamente na anima do eu lírico, constituindo uma presença terrível, porque imaterial e fugidia, que fustiga: “Tudo na casa antiga desmente/a certeza infeliz de sua ausência”.3

O vocábulo “infeliz” qualifica a certeza da ausência, mas também a quem, vindo das areias brancas da infância e adentrando o espaço-memória da casa antiga, atesta a falta que fotografias e k7s não suprem: o próprio eu lírico.

Atada de forma inescapável às tristes modulações da memória, que se fixam à materialidade do mundo para encenar a ausência que machuca, o que resta à poeta senão escrever? Que lhe cabe, exceto o instante mesmo em que o “prosaico”, marcado por todos os correlatos ao sofrimento, transfigura-se em “estado poético”4, salvaguardando na retentiva que lhe é única, porquanto “árvore da vida que não conhece morte”5, a imagem, ora eternizada, da irmã?

Ela tinha mais cabelos.

Ela era magra,

era um negrume esguio e delicado.

E cantou como uma cigarra:

até o fim.

 

Daqui, da margem dos vivos,

vejo seus olhos pretos divisando águas,

mergulhado,

seu corpo ainda treme.

Algo respira na parede invisível

do seu quarto pendente no céu de pura estrela.6

 

As duas estrofes iniciais do poema “A uma ausente”, por último transcritas, guardam construções relativas às irmãs que, em sequência, se encaminham para aquela anteriormente discutida, a de um brilho que se dimana doutro tempo.

Em primeiro lugar, elas se contrapõem no que concerne aos tempos verbais em que são escritas. Enquanto a primeira faz uso das variações imperfeita e perfeita do pretérito – “tinha”, “era”, “cantou” –, posto que flagra a irmã ausente ainda em vida; a segunda, que já toma por sujeito o eu lírico, tem o presente do indicativo como tempo verbal – “vejo”, “treme”, “respira” – e um particípio passado – “mergulhado” –, com o qual se refere ao corpo trêmulo daquela que já não vive.

Uma resposta lógica, fácil e imediata à mudança dos tempos verbais é a que aponta para o distanciamento entre o momento em que a vida da irmã termina e o instante em que o eu lírico se volta medusado em face de sua lembrança. Outra, para a permanência do ontem na motivação anímica da poeta, cuja cicatriz resulta de ferida mal suturada pelo próprio tempo.

Noutro plano, se a primeira estrofe termina com a palavra “fim”, que vem a ser a própria figuração da morte e sua consequente e inextinguível produção de ausência, os dois últimos versos da segunda acenam diferente. Eles apontam para o movimento de retorno da irmã, conquanto metamorfoseada na presença-ausente daquele brilho, aqui ainda situado em um céu de pura estrela.

O símile parece ingênuo – a irmã morta transfigurada em estrela –, eufemismo para que uma possível criança lide melhor com a súbita ausência daquela que já não vive. Simples preocupação de pais com uma pequena menina, certamente fixada no mais profundo laivo de significação do eu lírico uma vez que “[...] a palavra poética jamais é completamente deste mundo: sempre nos leva mais além, a outras terras, a outros céus, a outras verdades”7. Deste modo, a construção eufêmica, sabe-se lá de qual recôndito psiquismo, emerge no verso. E aqui, já não pode ser lida segundo aquela ingenuidade dicionarizada em Aurélios e Houaiss.

Decerto, o substantivo “estrela”, no verso, significa além do eufemismo e ainda mais além de seu sentido reles, prosaico, de seixo sideral vagante, porém findo. O vocábulo, quando palavra poética, corresponde a uma construção cara à lírica de Lívia Natália: encarna a própria metáfora do que vem a ser a memória.

Afora o tema da irmã ausente, Água Negra comporta outros motivos mnemônicos, por meio dos quais o eu lírico retorna e alude ao que já não é ou está, ao que já não vive – a instantes, não mais banais, em que “[...] deslizamos, estranhamente parados, não para a Eternidade, mas na Eternidade”8, como estrelas rebrilhando para além de si mesmas:

 

As estrelas são apenas memória de luz.

Seu brilho melancólico e alto

é o arremedo triste do que se foi.

Um eco para sempre repetido

- e perdido.

[...]

Somos parco resquício de alegria e dor,

fresta da festa finda,

algo que se arrasta

na poeira das ausências.9

 

Por “Mnemografias”, escritas pelas quais se diz de Mnemosine, deificação grega relativa à memória, intitulam-se os versos acima. Com efeito, eles abordam a ausência – matéria intangível, porém tenaz, que toca a todos os seres – cuja presença é inscrita in animam pelos fios saudosos, melancólicos ou nostálgicos que tecem a rememoração, esta constância anímica que é tão só resíduo do que fora corpo – As estrelas são apenas memórias de luz.

O predicado que cabe às estrelas se reproduz, ainda que desprovido de luminescentes cintilações, naquele “nós” que compreende o eu lírico: Somos parco resquício de alegria e dor.

Ambos, luminescência estelar e humana condição do eu lírico, irmanam-se: não mais são do que memória; em nenhuma outra paisagem existem exceto na poeira das ausências. As estrelas existem apenas na ausência mesmo material de si próprias – o brilho, que encanta e que aponta para a expansão do universo em anos-luz distante, é apenas a negação de uma substância regressa a átomos dispersos, posto que já não se desgarra daquela rocha, um dia existente. O eu lírico, por sua vez, está atado ao que viveu e já não vive, ao que sentiu e já não sente, ao que foi e já não é.

Estrelas:

O grão de brilho puro

rouba sua luz da memória do sol.

E, em sendo lembrança só,

Gira fugidio à orla do céu imenso10.

 

Já não cabe a hipótese de ingenuidade no que concerne ao símile irmã ausente-estrela. Sem prescindir de sê-lo eufêmico, o símile não o é tão somente. Noutro plano que não o da fantasia, a irmã converte-se potenciada naquilo que é deveras: lembrança só, memória de luz, cujo brilho é a sua própria presença ao mesmo tempo em que é também a sua própria ausência.

Da lagoa escura rodeada da branca areia do Abaeté, donde o eu lírico, envolto na poeira de todas as ausências, enreda-se pelos caminhos da memória, reconstituintes imperfeitos da irmã que falta, elaboro esta primeira interpretação da imagem-título: Água Negra, analogia às profundezas abissais e turvas da memória em que o eu lírico se encontra imerso.

No entanto, parece-me certamente redutor encerrar a análise por aqui. Embora o motivo da memória constitua um veio forte na lírica de Lívia Natália, há outras possibilidades igualmente férteis a serem exploradas. Com isso, abro agora uma segunda e uma terceira leituras, imagem-mito e imagem-resistência, que acabam por se imbricar.

Chove muito na cidade.

No asfalto betumoso um sangue transparente,

ora de um rubro desencarnado,

ora encardido de um cinza nebuloso,

é vomitado em cólicas

por toda a parte.

 

Das paredes duras vaza um mais escuro que,

imagino,

seja a água mordendo as estruturas.

 

A água é assim:

atiçada do céu,

infinita no mar,

nômade no chão pedregoso,

presa no fundo de um poço imenso:

 

A água devora tudo

com seus dentes intangíveis.11

 

De acordo com Alfredo Bosi, “[...] a poesia não é liso espelho da ideologia dominante, mas pode ser o seu avesso e contraponto [...]”12. Neste sentido, o conceito de “poesia resistência”13, articulado pelo crítico. Isto é, produções poéticas que, de uma forma ou de outra, acarretam rasuras, senão propriamente nas estruturas sociais, ao menos nos textos que as enformam.

Em meio à chuva torrencial que cai por toda a cidade, as poças que se acumulam sobre o asfalto já não são água, mas sangue, embora desencarnado do rubro em que pulsa a vida ou encardido de nebuloso cinza, em que se avizinha a morte. O tom é nuvioso, crepuscular: A tormenta transmuta-se em cólicas violentas, em vômitos.

No entanto, uma água negra escorre da parede mais dura. O vocábulo utilizado pela poeta é preciso: o verbo “vazar” implica ruptura, quebra, rompimento: água mordendo as estruturas.

O eu lírico reformula aqui, em palavras poéticas, o adágio popular que diz do embate entre água e pedra, do qual, ao fim e ao cabo, o líquido sai vitorioso. É sintomático, porém que à água seja acrescida uma cor específica, revelada negra pelo título, e a pedra seja substituída pelas imagens de duras paredes, que remetem claustrofobicamente a encerramentos, e de estruturas, que vem a ser um termo caro tanto às engenharias quanto às ciências humanas e sociais.

Em face de tais considerações, não é salto desmedido propor a imagem Água Negra na condição daquele “[...] devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite [...]” de que fala Gilles Deleuze14. Tanto mais ante sua compleição indômita e incontinente, subversiva das fundas prisões do poço: A água devora tudo/ com seus dentes intangíveis – os mesmos que mordem/devoram/rasuram estruturas.

Com efeito, à palavra “água” são associadas outras representações que glosam também, de uma maneira ou outra, a clave resistência/devir:

 

Um rio não caminha só,

ele atravessa:

rasga pedras e fere o chão com sua correnteza translúcida.

 

[...]

 

Dentro dessa água doce cabe a violência das tormentas.15

 

Ao que parece, o vocábulo “só” não encena nenhuma condição solitária, mas traz consigo o sentido adverbial de apenas. Assim, o rio não se reduz à caminhada, o que seria uma elaboração prenhe de tranquilidade, imagem algo bucólica, oposta ao devir. O rio atravessa – verbo em que não se projeta somente o deslocamento próprio de qualquer fluente, mas também a potência daquelas águas. Assim é que “rasga” e “fere”, ações com as quais não se diz sem violência: Dentro dessa água doce cabe a violência das tormentas.

Noutro plano, não de todo alheio às águas, há também figurações de resistência/devir na composição feminina do eu lírico:

 

Descobri que, para mim,

ser mulher basta.

Para puxar véus,

levantar saias

pintar as unhas de vermelho feroz –

mesmo que seja só para depois dizer: para.16

 

Véus e saias, por cobrirem o corpo e interporem uma camada de incômodo tecido ao encontro com outro, não são apenas vestimentas de um guarda-roupa feminino, mas assumem aqui a feição de interditos, aos quais este eu lírico mulher, condição-devir suficiente, reage, transgride. Caem os véus, puxados; voam as saias, levantadas. Esquivo à castidade judaico-cristã, este ser feminino então se desnuda e encarna o desejo, sempre tão represado: “Ou para ver a dança des-contínua do seu corpo / sobre o meu (o meu oposto)”.17

As unhas, não à toa vermelhas, cor prenhe dos sentidos relativos ao desejo e ao cerceio, admitem sobre si um matiz feroz – aquele que traduz em esmalte o ímpeto que acarreta a transgressão. Não mais mordidas, mas arranhadas as estruturas. Ao fim do verso, porém, o imperativo que denota limite, que restringe a ação. Seria uma negação dos versos anteriores, não os reafirmasse: na restrição, não se faz presente uma ordem masculina feita interior, disfarçada sob a voz contingente, porém pontiaguda, que espeta a garganta da mulher que diz sim. Ao contrário, uma vez depostos os véus e arribadas as saias, os limites do gozo corpóreo são criados pelo próprio eu lírico em devir: “As senhas do meu corpo / Falo nenhum devassa”.18

Em face do que venho expondo nesta segunda leitura acerca da imagem Água Negra, considero conveniente resgatar o fragmento inicial do prefácio, produzido pela também escritora Mel Adún, para o livro de Lívia Natália:

 

Água Negra é um mergulho para dentro de nós mesmas. Depois de séculos sendo personagens, nos tornamos senhoras de nossas histórias. Sem o imaginário preconceituoso de uma sociedade branca, racista, sexista, homofóbica, judaico-cristã, na tarefa incansável de sair do lugar de submissão e inferioridade historicamente reservado às escritoras negras. A mulher negra como mero objeto de uso e abuso masculino: ora explorada sexualmente, ora máquina insaciável de prazer. Água Negra nos devolve nosso corpo.19

 

Poesia resistência. Poesia devir.

Recupero o fio da meada: eu disse anteriormente que esta segunda configuração da resistência na poética de Lívia Natália, que se atrela à condição feminina do eu lírico, não estaria de todo dissociada da terceira, concernente aos mitos afro-brasileiros que dizem das águas. Reitero, pois: não está. Isto porque os arquétipos Oxum e Iemanjá, notadamente o primeiro, entrelaça e atravessa estas duas leituras. Com efeito, os versos que dizem de vermelhas unhas intitulam-se “Osun Janaína”, fusão das Ìyà omi, isto é, Mães e Senhoras das Águas. “Osun”, em grafia simplificada do Yorubá Òsùn, diz Daquela cujo reino se estende dos rios que fluem e das lagoas que fingem dormir: “No fundo, mais que limo e pedra, / há pulseiras vivas e perfumes feitos de puro mistério”.20

No mais profundo das águas doces e móveis/imóveis do rio/lago, a metonímia – pulseiras, perfume –, que revela uma vaidosa e bela Oxum, arquétipo de certa feminilidade, sempre coberta em ouro e bálsamo.

“Janaína”, por sua vez, é significante e significado que enformam um dos nomes pelos quais atende a Rainha do Mar:

 

Quanto nome tem a rainha do mar?

Quanto nome tem a rainha do mar?

Dandaluna, Janaína,

Marabô, Princesa de Aiocá;

Inaê, Sereia, Mucanã,

Maria, Dona Iemanjá21.

 

Decerto, a presença das Ìyà omi inscreve-se, de uma forma ou de outra, em toda a produção poética publicada em Água Negra. Não à toa, a imagem ubíqua da água, que organiza o livro em três partes: Odu omin, ou seja, Caminho das águas; Marés sem fim e, por último, Desaguar. Noutro extremo, assim como organiza o livro, o faz igualmente com o eu lírico – daí a imbricação água-mulher:

 

Dança violenta e bela na crista de minha alma.

Uma voz de água doce sussurra

nos meus ouvidos

numa língua outra,

de uma maternidade feita de ouro e mistério.

Pisa no meu juízo com seus pés de peixes,

naufrágios

e profundezas.

 

[...]

 

A mim tudo deu e tudo dará,

e entrego dourada e rubra minha cabeça a teus pés,

para que aqui caminhe,

habite,

deite

e viva,

agora e sempre,

dentro desta lagoa funda e branda,

neste rio que corre de mim a mim.22

 

O eu poético, enleado à tessitura narrativa situada no aquém e no além do tempo humano, regressa ao estágio anterior àquela “[...] disjunção entre os estados da prosa e da poesia”23, que se operou por meio da sociedade ocidental moderna e que se perpetua ainda na contemporaneidade. Nestes versos, tal e qual nas sociedades primeiras, o mito é matéria fundante da linguagem do ser e nele se encarna, poeticamente.

Os ritos iniciatórios da tradição religiosa afro-brasileira são recriados por um eu lírico que os vivencia em meio à consagração de seu corpo como morada do Orixá, uma vez que a alma já o era desde o antes da encarnação – rio que corre de mim a mim.

Novamente, o Orixá é identificado por um processo metonímico. “Abebé Omin”, que vem a ser o título deste poema, toma de uma representação mínima da divindade para encená-la, o leque espelhado – abèbè, em língua yorubana.

Oxum era a rainha

na mão direita tinha

um espelho em que vivia a se mirar.24

 

“Omin”, variação omi, água, completa o título relacionando-se ao abèbè, leque espelhado, que A reflete. Não, o objeto direto em maiúscula não constitui descuido: o espelho reflete infindas águas e, refletindo-as, reproduz Oxum em sua composição toda líquido – um espelho em que vivia a se mirar.

Devoto agora alguma atenção ao penúltimo verso de “Abebé Omin”. A divindade, pela qual o mito se revela retornado ao corpo, é deslocada de qual doce e aquoso leito reinava para aquele desta lagoa, com o que o eu lírico diz de si. Liquefeito nas águas do elédá, Orixá ao Qual se é consagrado, também o eu lírico é todo ele de aquífera natureza.

Betumosa como a noite25, eis como a persona poética diz de si, de seu pertencimento étnico-racial e de sua fé escura. O eu lírico, então, que, por descendência mítica, já compartilhava em si daquele mesmo líquido sobre o qual reina Oxum, destaca a negrura deste rio que conforma sua pele – Água Negra.

Água Negra é a imagem em que se imbricam os dois tempos que conformam e identificam a persona poética: o mítico, que a potencia em função do incontido das águas, afinal “a água sempre encontra um meio”26 e o histórico, no qual ela se insere na condição de mulher e negra, no qual resiste, o qual transforma.

Não obstante já em ritmo de conclusão, talvez ainda seja pertinente observar a inicial maiúscula com a qual a poeta grafa “Negra” – termo que, em si, já diz das identificações étnico-racial e de gênero. Por certo, estabelece-se nesta escrita um gesto político, mesmo de resistência, afirmação e rasura: se “reles” perante uma sociedade regida pelos vetores ideológicos do masculino e da branquitude, a dupla condição encenada por Negra é ostentada em verbo maior, como a assemelhá-la e integrá-la àquele grupo seleto de signos aos quais se deve deferência.

Três leituras. E, de um jeito ou de outro, todas convergem para o Abaeté; todas remetem em direção às águas de densa escuridão.

Da memória de uma infância já ida, a Água Negra daquela lagoa, reino de uma Oxum cercada de branquitude arenosa, cuja armação o líquido mordisca, adere indelével à alma menos suspeita da persona poética, também ela Água, também ela Negra, também ela Abaeté.

 

 

REFERÊNCIAS

ADÚN, Mel. Prefácio. In: NATÁLIA, Lívia. Água Negra. Salvador: EPP Publicações e Publicidade, 2011.

BOSI, Alfredo. Poesia resistência. In: ______. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.

BOSI, Alfredo. Sobre alguns modos de ler poesia: memórias e reflexões. In: ______ (Org.). Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 1996.

DELEUZE, Giles. . Platão e o simulacro. In: ______. Lógica do sentido. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. (Estudos).

LOURENÇO, Eduardo. Tempo e poesia. Lisboa: Relógio D’água, 1974.

MORIN, Edgar. A fonte de poesia. In:______. Amor poesia sabedoria. Tradução de Edgar de Assis Carvalho. 7.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

NATÁLIA, Lívia. Água Negra. Salvador: EPP Publicações e Publicidade, 2011.

PAZ, Octávio. A consagração do Instante. In: ______. Signos em rotação. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. 3.ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996.

 

1 NATÁLIA, Lívia. A uma ausente. In: ______. Água Negra. Salvador: EPP Publicações e Publicidade, 2011. p. 71.

2 Idem, ibidem.

3 Idem, ibidem.

4 Os termos “prosaico” e “estado poético” remetem às reflexões de Edgar Morin acerca da “fonte de poesia”, que é o próprio ser humano. Por “prosaico”, Morin refere-se à vivência cotidiana do mundo em sua realidade material e histórica, cada vez mais separada do “estado poético”, que vem a ser o tempo suspenso do mito, que conectaria o ser humano a uma totalidade imaterial que também o constitui. MORIN, Edgar. A fonte de poesia. In: ______. Amor poesia Sabedoria. Tradução de Edgar Assis Carvalho. 7.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

5 LOURENÇO, Eduardo. Tempo e poesia. Lisboa: Relógio D’água, 1974. p. 36.

6 NATÁLIA, Lívia, op. cit., p. 71.

7 PAZ, Octávio. A consagração do Instante. In: ______. Signos em rotação. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. 3.ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996. p. 56.

8 LOURENÇO, Eduardo. Tempo e poesia. Lisboa: Relógio D’água, 1974. p. 35. (Grifos do autor).

9 NATÁLIA, Lívia. Mnemografias. Op. cit., p. 27.

10 NATÁLIA, Lívia. Rastro. Op. cit., p. 13.

11 NATÁLIA, Lívia. Água Negra. Op. cit., p. 39.

12 BOSI, Alfredo. Sobre alguns modos de ler poesia: memórias e reflexões. In: ______ (Org.). Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 1996. p. 37.

13 BOSI, Alfredo. Poesia resistência. In: ______. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.

14 DELEUZE, Giles. . Platão e o simulacro. In: ______. Lógica do sentido. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. p. p. 264. (Estudos).

15 NATÁLIA, Lívia. Ori. Op. cit., p. 29.

16 NATÁLIA, Lívia. Osun Janaína. Op. cit., p. 31.

17 Idem, ibidem.

18 NATÁLIA, Lívia. Voto. Op. cit., p. 57.

19 ADÚN, Mel. Prefácio. In: NATÁLIA, Lívia. Op. cit., p. 10

20 NATÁLIA, Lívia. Ori. Op. cit., p. 29.

21 Peço licença para citar em destaque, por belos e pertinentes, os versos da canção “Iemanjá Rainha do Mar”, gravada por Maria Bethânia no álbum Mar de Sophia, e compostos por Roberto Mendes e Capinan.

22 NATÁLIA, Lívia. Abebé Omin. Op. cit., p. 35.

23MORIN, Edgar. Op. cit., p. 37.

24 Versos de “Canto de Oxum”, composição de Vinícius de Moraes.

25 NATÁLIA, Lívia. Asé. Op. cit., p. 33.

26 Provérbio africano utilizado a título de epígrafe na terceira parte de Água Negra, “desaguar

* Doutorando em Literatura e Cultura pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura do Instituto de Letras da UFBA. Mestre em Estudo de Linguagens pelo Programa de Pós-graduação em Estudo de Linguagens da UNEB. Professor do Centro Universitário Jorge Amado – Unijorge.

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