Memórias da violência:

“Cenas Primordiais” em Um defeito de cor

Adélcio de Sousa Cruz

Resumo

A escrita traz, no Novo Mundo, a marca da violência, o que foi denominado por Cornejo Polar (2002, p. 81) como “cena primordial”. A retomada de tais cenas por narrativas de vozes femininas e afro-brasileiras demonstra a importância das narradoras que re-escrevem a memória pelo “suplemento” das vozes silenciadas no passado. A violência impõe-se como uma linha divisória com a explícita função de marcar o lugar da subalternidade. Ao apropriarem-se das memórias violência, tais escritoras re-significam o “Atlântico Negro” (GILROY, 1993) que, para além dos relatos de viagem dos grandes navegadores, é agora, mais do que nunca, também feminino.

 

Abstract

Writing in the New World implies the sign of violence, what was called “primordial scene” by Cornejo Pollar (2002, p. 81). Such scenes return, into the voices of female narrators whom show the importance of re-writing memory through the “supplemental” silenced voices from the past. Violence imposes itself as a dividing line with the explicit function of halt the subaltern. By appropriating the memories of violence, these female writers re-signify the “Black Atlantic” (Gilroy, 1995) and the voyagers’ narratives from the XVI to the XIX centuries, it is also now a female space, more than ever.

 

1 – Introdução

Vez por outra, surge o argumento que se opõe às lembranças da travessia feita por parte de meus ancestrais, nos tumbeiros. Isso, tumbeiros ou “navios negreiros” como queiram. Por que parte de meus ancestrais? Porque me refiro aos que fizeram a viagem no porão e não aos que, “bravamente”, ocupavam o tombadilho. Não se vai “alocado” num porão por vontade própria. Há um instrumento para se proporcionar isso: a violência. O romance Um defeito de cor, da mineira Ana Maria Gonçalves, vem somar-se ao texto de Maria Firmina dos Reis em Úrsula e ainda à narrativa de Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, formando o que denomino a trilogia das “cenas primordiais” da violência. É claro que não se deve focar unicamente a história dos africanos e seus descendentes no Brasil a partir deste ponto – a viagem nos porões dos tumbeiros –, mas é essencial não deixar que esta cena, assim como tantas outras, sejam varridas para o limbo dos acordos “cordiais”. Segue-se à eliminação da violência histórica brasileira o silenciamento sobre a questão étnica, passo decisivo para a futura concepção da teoria da mestiçagem – o racismo brasileiro de plantão, sempre.

É necessário tratar brevemente dos dois romances que iniciam a trilogia: Úrsula e Ponciá Vicêncio. O primeiro deles é publicado no século XIX e contém todas as características estéticas da época. Porém, a narrativa criada por Maria Firmina dos Reis destaca, além do ponto de vista diferenciado sobre a questão escravocrata, um pequeno grupo de personagens negras representadas de maneira totalmente adversa ao período de outros autores contemporâneos de Maria Firmina: as personagens possuem voz e olhar, além de serem humanizadas pela voz narrativa. É neste romance que a literatura brasileira ganha talvez a primeira descrição da vida de uma mulher africana antes do advento da escravidão que a traz para o nordeste brasileiro. Diferentemente da voz enunciadora de Os escravos, de Castro Alves, quem relata a cena é a personagem Preta Suzana. Apesar de parecer uma mera e ingênua inversão de pontos de vista, isso ocorre no estado do Maranhão, meados do já referido período, promovido por uma mulher afrodescendente que ocupava cargo equivalente ao de professora primária. O romance de Firmina, como já mencionei, repete o esquema romântico do idílio amoroso entre uma jovem branca e seu amado. Contudo, os negros escravizados que, em outros romances não passam de meros “acessórios”, são fundamentais para a realização da trama, pois são eles as vítimas preferenciais da violência física e simbólica.

Já a narrativa de Conceição Evaristo inova a cena literária contemporânea, pois aliada à profundidade com que trata a questão étnica e o legado nefasto do escravismo, sua narrativa é decisivamente marcada pela dicção feminina, desafiando o leitor a indagar durante todo o texto qual seria a voz narrativa que relata a trama: um “narrador” ou uma “narradora”. Outra característica marcante é certo tom de oralidade na escrita, como se a história tivesse sido contada oralmente antes que se tornasse livro. O presente maior fica por conta da própria personagem central, Ponciá, que deixa o interior do Brasil e parte em direção à capital, em busca de melhores condições de vida. Evaristo surpreende ainda ao fazer surgir em suas páginas personagens como Nêngua Kainda, a anciã e sábia – espécie de oráculo; Luandi, irmão de Ponciá; Bilisa, uma prostituta que seria a futura esposa de Luandi, não fosse um acontecimento trágico; o soldado Nestor, guia e “protetor” da família Vicêncio durante a passagem pela cidade, especialmente em relação ao jovem Luandi. O silêncio-ausente de Ponciá faz com que o coração leitor se acelere, ansioso por uma resposta, diante da opressão provocada pela continuidade de um crucial aspecto da escravidão: a família Vicêncio ainda permanecia “propriedade” dos donos de terra. A violência física era operada pelo marido sem nome de Ponciá.

Completando a trilogia, o texto de Ana Maria Gonçalves apresenta ao leitor a narrativa da vida cotidiana africana pouco antes da chegada do colonizador europeu, na costa do Daomé, hoje Benin. A escolha é crucial, pois revela o rompimento temporal provocado pela inserção do ocidentalismo – aqui entendido como o modo de vida criado a partir das navegações dos povos europeus em busca de riquezas e terras. O importante não é a mera transposição do passado colonial para as páginas do romance. Gonçalves faz brotar das páginas uma narradora que possui a violência marcada em sua condição, primeiramente, de gênero, e em seguida devido à cor de sua pele – daí o título do livro de 952 páginas: a expressão “um defeito de cor”, que se refere a uma lei utilizada durante o período colonial pelos portugueses, sempre que necessitavam complementar os quadros da administração e da área militar, incluindo em suas fileiras os pardos, os mulatos e por fim os negros, desde que lhes fosse concedida declaração que lhes dispensava do referido “defeito”.

Narrado em primeira pessoa, a personagem Kehinde irá se transformar durante a travessia, tanto a atlântica quanto àquela das palavras. O seu mundo, a exemplo do título de outro texto de um autor africano, Chinua Achebe, se esfacela de maneira extremamente veloz – se considerada a relação que aqueles povos mantinham com a ideia de temporalidade – e literalmente se despedaça. O motivo aparente da violência que atinge a família da personagem parece ser o mesmo que desaba das páginas de narrativas como as de Paulo Lins, Ferréz e Fernando Bonassi: vítimas preferenciais são mulheres e crianças, em resumo, famílias chefiadas por avós e mães. A diferença do uso da violência pela narrativa de Ana Maria Gonçalves é capital: a voz feminina empresta sua poética à crueldade atemporal que continua a atingir ao mesmo alvo. Contudo, como escreveu Ricardo Aleixo, “quanto mais negro, mais alvo”, certeza-provocação também lançada para o leitor pela voz de criança da personagem criada por Gonçalves. A violência se impõe como motor das jornadas de todas estas personae-viagem, ou seja, cada uma destas vozes recriadas a partir da diáspora africana na parcela brasileira das Américas: Preta Suzana, Ponciá e Kehinde.

O romance é composto de dez capítulos, sem título, entretanto iniciados com provérbios africanos que lhes serve de epígrafe. Cada um destes capítulos é formado por diversas histórias – que somam um total de trezentos e trinta e quatro fragmentos – que constituem fios que desenham a trama narrativa. As epígrafes mais instigantes são: A borboleta que esbarra em espinhos rasga as próprias asas (Capítulo 1); Aquele que tenta sacudir o tronco de uma árvore sacode somente a si mesmo (Capítulo 3); Só quando uma árvore cai alcançamos todos os seus galhos (Capítulo 4); A sola do pé conhece toda a sujeira da estrada (Capítulo 6); Quando não souberes para onde ir, olhe para trás e saiba pelo menos de onde vens (Capítulo 8); Mesmo o leito seco de um rio ainda guarda o seu nome (Capítulo 9) e, finalmente o último deles (Capítulo 10), Exu matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje (Gonçalves, 2006).

Cada uma destas epígrafes corresponde a uma ou mais situações em que a violência passará a afetar de modo decisivo à vida da personae-viagem Kehinde e daqueles que ama. Curiosamente, mesmo por tratar-se de uma narrativa que recria a trajetória de uma africana que foi trazida ao Brasil como escrava e toda a sua luta pela liberdade, a trama não abusa de cenas descritivas de violência explícita. Também não são remoídos pelas palavras da narradora aqueles momentos em que a violência simbólica – esta ocorre com maior frequência – lhe afeta, bem como aos seus. O primeiro dos provérbios alerta o leitor sobre a extrema fragilidade da vida, através da metáfora das “asas da borboleta”. Já o segundo e o terceiro indicam o quão tola é a presunção do ser humano. O quarto e o quinto provérbios relacionam-se diretamente com a importância crucial que a memória possui na constituição da alteridade e da autoestima: as marcas da caminhada encontram-se localizadas no corpo daquele que faz a jornada e, consequentemente, só a ele cabe guardar a informação sobre o ponto de sua partida. Quanto ao último deles, carrega um alerta sobre o poder de nossas ações ao tentarmos modificar o passado. De acordo com minha primeira leitura desta narrativa, “a pedra” lançada por Exu atingiu um “pássaro” muito peculiar: o pássaro do esquecimento.

O conceito de “cena primordial” é tomado de empréstimo a Cornejo Polar (2002, p. 81). De acordo com ele a cena que inaugura o encontro da oralidade das culturas andinas com a escrita dos povos europeus é marcada pela violência, última instância do desencontro provocado pela desculpa da não-aceitação do modo de acreditar num só deus e dobrar os joelhos diante dos emissários do rei de Espanha. A letra, no Novo Mundo, não vem separada da violência, isso parece ser a única lei que prevaleceu sobre todos os povos não-europeus que aqui viviam ou que para este lugar foram sequestrados – especialmente para o caso dos africanos trazidos no bojo dos tumbeiros, a palavra é esta e não há outra. Textos como Úrsula, Ponciá Vicêncio, e mais recentemente Um defeito de cor vêm atuar como um petardo, a lembrar a todos, como apontou Foucault (1979) a respeito da tamanha indignidade que se instaura quando alguém decide falar pelo outro. Tais narrativas, buscam suplementar o silenciamento tão grato ao ocidentalismo. O que leitor irá defrontar ao abrir o livro não serão apenas páginas de sangue e sim sangue na narrativa, nos momentos mais elementares da trajetória das personagens que preenchem as páginas. No caso dos africanos e afrodescendentes no Brasil a “cena primordial” é aquela lançada ao mar da costa africana, a cena que retoma os navegadores “alocando” nos porões dos tumbeiros, culturas tão ricas quanto as narrativas que possibilitaram às três escritoras recriar/produzir. Como a violência instaura-se, na escrita que aportará na baía de Todos os Santos, em Porto de Galinhas e Paraty? As pessoas amontoadas no subsolo das naus eram registradas nos livros e diários de bordo como “peças”. Tal despersonificação não pode ser esquecida. Jamais...

2 – Atitude ficcional ou surpresas da serendipidade¹?

Antes de passarmos ao romance é necessário tratar do prólogo feito pela própria autora. Talvez desavisadamente ou propositalmente, ela parece se tornar personagem de sua criação literária, a exemplo do que Lima Barreto realiza em Recordações do escrivão Isaías Caminha? Não gostaria de afirmar categoricamente sim. O livro de Ana Maria Gonçalves foi fruto de uma serendipidade em terras baianas e ali, justamente, há a forte possibilidade de se tornar parte da própria narrativa ou ato artístico, seja esse qual for. Ao contrário do escritor carioca que diz “apresentar” aos leitores uma narrativa que não foi escrita por ele, Ana Maria se depara com documentos antigos, datados do século XIX, manuscritos originais de fragmentos de uma espécie de diário. A estratégia de Lima Barreto era a de se afastar o mais que pudesse do narrador ficcional, para, ironicamente, valer-se de uma certa “neutralidade” – no caso daquele romance em questão, devido ao tema que trazia aquela “apresentação”: o preconceito racial. De acordo com o prólogo de Um defeito de cor, a escritora teria encontrado os diários de Luísa “Mahin” Gama, a “mitológica” mãe do escritor, advogado e abolicionista Luís Gama. O texto é assinado pela própria Ana Maria que antes sinaliza:

(...) E é bom que a dúvida prevaleça até que, pelo estudo do manuscrito, todas as possibilidades sejam descartadas ou confirmadas, levando-se em conta o grande número de coincidências, como nomes, datas e situações. Torço para que seja verdade, para que seja ela própria a pessoa que viveu e relatou quase tudo o que você vai ler neste livro. Não pela história, que não desejo a ninguém, e logo você vai saber por quê. (Gonçalves: 2006, p. 17)

Apropriando-me do prólogo ousarei mais uma definição para determinadas narrativas literárias: seu componente mais sagaz talvez seja esta torcida – e o duplo sentido que a palavra apresenta: tanto de “desejar” que fosse real quanto de “modificar” o conteúdo – pela verdade. Os leitores, entretanto, não fazem ideia do que irão encontrar nas próximas páginas. Há um fator decisivo para isso: a saturação provocada por lugares-comuns no que diz respeito às narrativas sobre a escravidão no Brasil. A personagem de Kehinde e sua trajetória virão apresentar outros paradigmas a respeito do tema. A pletora de mini narrativas talvez possa nos dar parte da dimensão da complexidade que consumirá a leitura das mais de novecentas páginas. O pacto de leitura está proposto e deve-se mergulhar na fragmentada, porém assombrosa, memória de Kehinde. Mais assombrosa contudo, será a violência pontual e não gratuita que surgirá inicialmente e perpassará a narrativa. Talvez seja ela o maior desafio proposto à narradora e aos leitores por esta atitude ficcional: a sombra dos fragmentos de manuscritos antigos, deles é retirada boa parte dessa história.

3 – Cenas cruciais

As narrativas das escritoras trazem em seu bojo as lembranças da África, sem a intervenção do tráfico de pessoas para o Novo Mundo. Preta Suzana, personagem do romance de Maria Firmina dos Reis, revela fato inédito para a literatura produzida naquele século XIX. A voz narrativa é assumida pela personagem, e a narradora se ausenta, fazendo com que a versão das vozes subalternas seja ouvida em alto e bom tom, mesmo como nos provoca Gayatri Spivak ao afirmar que “o subalterno não pode falar”. A descrição de um tempo em que a liberdade era a regra e, mais importante ainda, todos que ali viviam eram africanos – bantos, jejes, nagôs, hauçás e muitas outras etnias –, e não apenas “negros” como passaram a ser denominados após a captura e transformados em “peças” amontoadas em subsolos das naus. Quero dizer, tumbeiros, porque “naus” foram as do “descobrimento”. Este período pré-embarque está narrado com detalhes nos episódios “Kehinde”, “O destino”, “A viagem”, “Uidá”, e “A morada”.

Como o tema aqui é a violência, destacarei o que denomino a outra cena primordial – o estupro – pois atinge a personagem/narradora tanto em África quanto em terras brasileiras. A literatura brasileira tem sido profícua em tratar do passado e da formação do povo brasileiro a partir da miscigenação. Entretanto, após mais esta narrativa ficará cada vez mais difícil silenciar as páginas convenientemente apagadas da história oficial. A história contada por Kehinde remonta à fragilidade da situação feminina, ainda que nas terras de África. Teria razão o ex-Beatle John Lennon, ao afirmar que a mulher seria o nigger of the world – “crioulo do mundo”, numa precaríssima tradução, pois não há em português uma palavra que possa representar a carga que “nigger” possui em seu original – recebendo por isso todo tratamento aviltante e sendo alvo preferido da violência masculina? Reproduzo aqui o trecho narrado por Kehinde:

A minha mãe ficou quieta, calada, e nem mesmo se mexeu quando outro guerreiro tomou o lugar do que estava dentro dela. Quase ao mesmo tempo, a minha mão e a de Taiwo ficaram sujas com o líquido pegajoso e esbranquiçado que saiu dos membros dos guerreiros e espirrou longe, quase atingindo o riozinho vermelho-escuro do Kokumo, que, àquela hora, já tinha perdido a força, sem conseguir chegar ao tronco do iroco, embora tivesse ficado mais largo. (...) Depois de um tempo, os guerreiros se deitaram para descansar, menos o que ainda estava dentro da minha mãe. Todo o resto permaneceu quieto, calado, e até mesmo o bando de pássaros que costumava passar por cima da casa àquela hora, barulhento e fugindo da noite, devia ter se desviado do caminho, como as formigas fizeram com o riozinho de sangue. (Gonçalves: 2006, p. 23-24)

O fôlego do leitor não deve ir embora, a cena ainda não terminou. Está fragmentada. Falta a chegada dos guerreiros do rei Adondozan que ao verem “o desenho da cobra que engole o próprio rabo” (idem, p. 22) passam a chamar de feiticeira à avó de Kehinde. A partir daí, a vida daquelas mulheres mergulha no redemoinho descrito acima. O irmão mais velho, Kokumo, morre trespassado por uma lança ao tentar defender sua mãe. É com sua morte que surge a metáfora “riozinho de sangue”, que irá acompanhar a narradora por toda a travessia de mares e palavras. O alívio para as crianças gêmeas e a avó que assistem a tudo, completamente indefesas, parece advir do inesperado: o espírito de Kokumo dança e canta acompanhado por outros, os abikus. Ao perceber o ocorrido, a mãe passa “a sorrir e a girar o pescoço de um lado para o outro, acompanhando a brincadeira das crianças” (idem, p. 24). Porém, o estupro ainda não findara e o guerreiro que permanecia sobre a mulher se irrita com o riso e a esbofeteia. Após se acabar “dentro dela, jogou o corpo um pouco para o lado, apanhou a lança e enfiou no sorriso adentro de minha mãe” (idem, p. 24). Agora, enquanto sorria e começa a escorrer mais um “riozinho de sangue”, o espírito da mulher também deixa o corpo inerte, para abraçar o espírito de Kokumo.

Se o leitor achou exageradamente cruel a descrição do episódio que empurra a avó e duas meninas em direção à cidade de Uidá, deve se preparar para o fragmento “Posse” (idem, p. 168-172), no qual Kehinde conhece, em seu próprio corpo, a violência impetrada, desta feita, pelo senhor branco. E o estupro se repetirá, tendo como cenário um pequeno barracão nas propriedades de um senhor de engenho, na ilha de Itaparica, Salvador, Brasil... O dono de Kehinde havia fracassado na primeira tentativa, mas não falha uma segunda vez. Captura o escravo que impedira a “posse”, tira-lhe literalmente os olhos, coloca-o no mesmo cômodo do barracão em que violenta a menina e depois, ainda não saciado, estupra também ao escravo cego que já se esvaia em “riozinhos de sangue” pelo corpo torturado após ter sua fuga abortada.

Persistia entre tantas outras atrocidades presentes no sistema sociocultural e político do Brasil colônia, o direito à “primeira noite” de cada noiva. O dono das terras era também o “proprietário” da noite de núpcias de cada escrava que se casasse dentro dos padrões cristãos. É claro que as “sinhazinhas” e os padres faziam vista grossa às “escapulidas” do dono da “casa grande”. Caso a mulher engravidasse, o máximo que ocorria era o senhor ganhar mais uma “peça”. Os requintes de crueldade da cena do que foi denominado fragmento – esse talvez seja o melhor termo para nomear as micro narrativas que compõem todo o livro2. Diferentemente de Ponciá Vicêncio, nem todas estas mini histórias podem ser lidas separadamente, como um miniconto. Arrisco dizer que pelo grande número delas e à própria sequência arquitetada para a narrativa, ficaria difícil precisar quantas poderiam ser lidas independentemente da trama do romance.

O ir e vir das ondas da ilha do Frade fez recordar outra “cena primordial”, desta feita proporcionada pela violência simbólica. Kehinde se recusa a ser batizada e salta na água antes que o escaler que trazia o padre chegasse ao navio. A personagem escapa, assim, num salto, do apagamento de sua identidade africana, mesmo sendo obrigada a adotar em Salvador, no mercado de escravos, o nome ocidental que fora dado à sua irmã – Luísa (Gonçalves: 2006, p. 72): “Mesmo quando adotei o nome de Luísa por ser conveniente, era como Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e ao secreto”(idem, p. 73). O fato curioso é que durante a maior parte da narrativa, lê-se apenas o nome africano da personagem, como metáfora para a voz que era silenciada nas ruas daquela Salvador do século XIX.

Cabe agora retomar e explicitar o conceito personae-viagem que mencionei na primeira parte desse ensaio. Não se pode ler Kehinde – assim como a Ponciá – fora de sua jornada. Ao contrário da Preta Suzana, limitada pelas condições do romance, as personagens criadas por Ana Maria Gonçalves e por Conceição Evaristo seriam um complemento mútuo: a “pedra” contemporânea Ponciá passa a ser denominada Kehinde ao ser atirada na etapa do passado escravocrata de seus ancestrais aqui no Brasil. O Exu do provérbio africano seria, assim, representado através das vozes narrativas elaboradas por estas escritoras. A violência primordial recebia, “ainda que tardio”, um contragolpe. Personae-viagem implicaria, então: na presença simultânea de temporalidades; no componente essencial da jornada, representada pela diáspora africana e pelo “Atlântico Negro”, nestes casos específicos; na ausência de dicotomias simplificadoras – representadas no cenário à volta da personagem Preta Suzana, do período romântico oitocentista de Maria Firmina dos Reis; e, por fim (melhor seria, por ora), na trajetória marcada pela violência explícita e simbólica.

4 – Violência e memória: breves observações finais

Este breve olhar sobre a trilogia da violência primordial, especialmente tratando-se de escritoras afrodescendentes, talvez permita alguns apontamentos. Primeiramente, vale lembrar Michel Maffesoli (1987, p. 22) que analisa o termo violência como significado de dissidência. Discenso esse que revela a utilização estética da violência não como mero recurso e sim pelo potencial de criação e resposta à opressão de gênero e etnia – adaptando-se a ideia de Maffesoli ao caso dessas narrativas.

Mesmo levando em conta as limitações do texto de Maria Firmina dos Reis, ele seria o passo inicial – não origem no sentido estrito – mas um aceno de possibilidade ao que fora realizado por Conceição Evaristo e, mais recentemente, por Ana Maria Gonçalves. As personae-viagem Ponciá e Kehinde realizam a tarefa de lembrar aos leitores que a violência “se trata de uma estrutura constante do fenômeno humano” (Maffesoli: 1987, p. 13). Mais além, complementam-se na “pedra” que afeta diretamente a trajetória do “pássaro” do esquecimento.

A personagem criada por Gonçalves, contudo, parece provocar uma tensão ao que Patterson (1982) denominou “morte social” e que foi por mim (CRUZ, 2002) utilizado como conceito para análise de dois romances de Lima Barreto (Clara dos Anjos e Recordações do escrivão Isaías Caminha). Kehinde representaria assim uma nova possibilidade de leitura da alteridade do “Atlântico Negro”: uma personagem-narradora do século XIX com uma versatilidade narrativa de uma Sherazade criada no século XXI, pois tece uma rede que abarca um oceano de histórias. Se a consciência, no entender de Du Bois (1994) é “dupla”, tal duplicidade se expande e se multiplica de possibilidades ao sabor da voz de Kehinde.

 

 Referências

CRUZ, Adélcio de Sousa. Lima Barreto: a identidade étnica como dilema. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte, Faculdade de Letras/UFMG, 2002.

DU BOIS, W. E. B. (William Edward Burghardt). The souls of black folk. 1903 unabridged text – Dover Publications: New York, 1994.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003.

FERRÉZ. Manual prático do ódio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder: conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze. In Microfísica do poder. 20 ed. Rio de Janeiro : Edições Graal, 1979.

GILROY, Paul. The Black Atlantic: modernity and double consciousness. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1993.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. O homem cordial. In: Raízes do Brasil. 26 ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 139-151.

LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

MAFFESOLI, Michel. Dinâmica da violência. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Edições Vértice, 1987.

PATTERSON, Orlando. Slavery and social death: a comparative study. Harvard University Press; Cambridge, Massachusetts and London, 1982.

POLAR, Cornejo. O condor voa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. 4 ed. Org. e posfácio de Eduardo de Assis Duarte. Florianópolis: Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004.

 

1 “Serendipidade então passou a ser usada para descrever aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a qual já tínhamos de estar, digamos, preparados.” (Gonçalves: 2006, p. 9)

2 As micro narrativas que compõem o livro de Ana Maria Gonçalves somam um total de 334 (trezentos e trinta e quatro) fragmentos. O volume delas salienta o caráter memorialístico que trabalha a partir de uma seleção de acontecimentos considerados capitais pela personagem-narradora.

 

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